Friday, November 28, 2008
DEPOIS DA COLHEITA
"Um pressentimento. Assim é que há-de chegar a seiva
ao ponto mais alto das árvores, a esse limite humedecido
pela noite? Não sei, mas acabaram os frutos por ficar
mais próximos. A sua curva inclina-se. Mostra-nos
uma cor que desconhecíamos antes. Estendemos
um dos braços e recolhemos o que se encontrava
ainda ausente, um corpo simples que lhe fica prometido
a partir de si mesmo. Com esse gesto tudo amadurece."
Fernando Guimarães, Lições de Trevas. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 47.
Tuesday, November 25, 2008
SINAIS DE FUMO
"Não haverá oficina para as minhas noites.
Vejo-as deitar fumo
como o alcatrão ainda quente
dos meus olhos fundamentalmente
sem trânsito,
ouço-as trémulas ao embaterem
nos ombros da sentinela de gesso
que me guarda o sono.
Não haverá mecânica para estes metais
soldados a frio, armados
sobre a estação
sinistra
onde os anjos fazem transbordo
e seguem, sentados, para o forno
da vida eterna.
Mas eu tenho uma têmpora ferida
pela pata marcial de um leopardo
e sangro o meu instinto
na concepção de uma biologia
mais vulnerável
e perigosa,
e uso a noite para este fim
e para este apenas
- e é de lava e sombra
a substância profana
em que tão avariadamente
trabalho.
Não haverá uma oficina
e os seus elevadores, não haverá
um martelo - não me corrijam,
esta vida vai em sobre-aquecimento
dos seus interiores,
perplexa, marginal,
honesta.
E se a virem parar no meio de uma estrada,
inflamada e contorcida,
é porque aí
encontrou
o mais justo câmbio
de vento
para as suas noites.
Não a reboquem, ponham-lhe flores,
e sigam, sentados, para o forno
da vida que vos coube."
Vasco Gato, Omertà. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, pp. 65-66.
Sunday, November 23, 2008
CRIPTOGÂMICOS 1
"Não havia nenhum remédio. Ficavam de olhos colados às vidraças dos cafés a ver o tédio comer os passeios. Traziam os filhos, traziam tudo. Uma goma mortífera escorria-lhes pelas pálpebras. Olhavam uns para os outros atónitos de sono, imóveis no pavor de acordarem e serem fulminados pelo simples fulgor de uma pupila..."
Eduardo Valente da Fonseca, Os Criptogâmicos. Porto: Livraria Paisagem, 1973, p. 31.
Thursday, November 20, 2008
FADIGA DE METÁFORAS
"Já me cansa, senhor, ter sido feito
metáfora ou provérbio de má sorte;
ser mera imagem pouco me aproveita
quando me alcança o bico predador,
e ainda à dor banal se me acrescenta
o sofrimento de não ser real.
É verdade que a morte se embaraça
na trança irregular da minha tela;
mas nem isso me traz grande vantagem
se o que sobra de mim é só o efeito
de uma ilusão nos olhos de quem passa
e se entretém a ver uma miragem.
Antes queria ter lugar à mesa
onde se senta a gente prazenteira,
comer o mesmo pão que a vida amassa,
e sem ardor simbólico nenhum
ouvir na voz comum uma ligeira
ária de amor ao fim da refeição.
Sombra de um verso, não sei como possa
ter bom sucesso neste meu projecto
de te fazer meu cúmplice leitor;
uma vírgula mais talvez mudasse
o sentido do mundo, mas duvido
que uma tão ténue pausa chegue ao teu ouvido.
Se o meu desgosto é ser, na grande Teia,
mensagem virtual ou sopro vago,
talvez me queiras tu dar o teu rosto,
e eu no teu corpo me transforme em alma."
António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 27-28.
Tuesday, November 18, 2008
HABITAR O TEMPO
"Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante; e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante."
João Cabral de Melo Neto, "A Educação Pela Pedra", in Poesia Completa (1940-1980). Lisboa: IN-CM, 1986, p. 156.
Sunday, November 16, 2008
GENTE ESTRANHA 1
"era uma gente estranha que se podia mutilar até restar o mínimo. não significava que fossem pobres quando tinham só a cabeça, podia ser que se desenvencilhassem dos braços porque lhes causavam transtorno, como um peso ali pendurado a balançar, quantas vezes sem préstimo algum, pensavam assim os preguiçosos. claro, havia quem trocasse os seus braços pelos braços de outro, e a gente que aparecia na televisão podia dividir-se em ínfimos bocados, que um dedo de um músico famoso podia ser troca pelo corpo inteiro de um culturista anónimo verdadeiramente perfeito"
valter hugo mãe, a educação das pedras, Porto: Edições Éterogémeas, 2005, p. 4.
Wednesday, November 12, 2008
ESTAÇÃO DOS HELENISMOS
(altar de Zeus, museu Pergamon, Berlim)
"É o vazio da Física e do Barroco (há sempre mais um quark ou coisa assim). Não está lá ninguém, pois não? Para Roma é perigoso pensar se o Inferno tem um fim. E é de pensar, uma vez que Deus é infinitivamente misericordioso. E Deus é o criador do Inferno, uma vez que é o criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Deus pode acabar com o Inferno. Acho que o que é perigoso é achar que há questões perigosas. Jesus faz perigar a noção de perigo."
Adília Lopes, "Irmã Barata, Irmã Batata", in Caras Baratas - Antologia, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 221.
Sunday, November 9, 2008
O PÁSSARO - HOMENAGEM A 'TIPPI' HEDREN
"How do you know but ev'ry Bird that cuts the airy way,
Is an immense world of delight, clos'd by your senses five?"
(Como não saber que as Aves que sulcam o ar/São vastos mundos de gozo fechados pelos cinco sentidos?)
William Blake, A União do Céu e do Inferno, trad. João Ferreira Duarte. Lisboa: Relógio D'Água, 1991, pp. 24; 59.
Tuesday, November 4, 2008
AQUILO A QUE CHAMAMOS O BEM
"O mal é fácil. Há uma infinidade dele. O bem, quase único. Mas um certo género de mal é tão difícil de encontrar como aquilo a que chamamos o bem e com frequência se faz passar com a marca do bem este mal particular. É preciso mesmo uma extraordinária grandeza de alma para a ele chegar da mesma maneira que se chega ao bem."
Blaise Pascal, Pensamentos, 408, trad. Américo Carvalho. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1998, p. 162.
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