" - Os bichos comem a gente.
Ele tocou-lhe com a mão.
- Mas a gente não é só isso, entende? Dentro desse corpo, Virgínia, há como que um sopro, isso é o que a gente é de verdade. E isso não morre nunca. Com a morte, esse sopro se liberta, vai-se embora varando as esferas todas, completamente livre, tão livre... o corpo se apaga como uma lâmpada, esfria como... - e Daniel fez uma pausa, vagando o olhar em redor. - Exactamente como um ferro de engomar que você desliga: assim que a tomada é arrancada, o ferro vai esfriando, esfriando, e se transforma apenas num peso morto, sem calor, sem vida. A diferença é que o calor do ferro eléctrico se perde quando é desligado, ao passo que esse calor das suas mãos, esse brilho dos seus olhos, esse sopro esse alento... - Calou-se. Apertou um pouco os olhos que reflectiam uma intensa paz: - Ah, meu bem, se eu pudesse fazê-la entender! Triste é o que está acontecendo agora e não o que vem depois."
Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 71.
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