Friday, April 30, 2021

ANIVERSÁRIO

 



"Escondo-me na minha flor, 
Para que, murchando em teu Vaso, 
tu, insciente, me procures - 
Quase uma solidão."


Emily Dickinson, 80 Poemas de Emily Dickinson, trad. Jorge de Sena, Lisboa: Edições 70, 1979, p. 83. 

Thursday, April 29, 2021

DOOR-SLAB



"O passado e o presente murcham... Já os enchi e esvaziei, 
E vou encher a minha prega futura. 

Ei, tu que me ouves aí em cima! Que tens a dizer-me?
Olha-me no rosto enquanto respiro a tarde, 
(Fala com franqueza, mais ninguém te ouve, e eu só fico mais um minuto).

Contradigo-me?
Muito bem, então contradigo-me, 
(Sou imenso, contenho multidões).

Dirijo-me aos que estão perto, espero no umbral.

Quem fez o seu trabalho do dia? Quem acabará primeiro a sua ceia?
Quem quer passear comigo?

Falarás antes de me ir embora? Tirarás a prova demasiado tarde?"



 Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 143. 

Wednesday, April 28, 2021

O PONTO

 


"Psiquicamente, nós somos criados pelos nossos sonhos. Somos criados e limitados pelos nossos sonhos pois são eles quem desenha os últimos confins do nosso espírito. A imaginação funciona na cúpula, como uma chama, e é na região da metáfora de metáfora, na região dadaísta, onde o sonho, como o entendeu Tristan Tzara, é o ensaio de uma experiência, quando o sonho transforma as coisas já previamente transformadas, que se deve buscar o segredo das energias mutantes. É preciso pois cada um de nós encontrar maneira de se instalar no ponto de onde se divisa o impulso original, tentados sem dúvida por uma anarquia pessoal, mas apesar disso dependente da sedução alheia. Para se ser feliz é preciso pensar-se na felicidade de um outro."


Gaston Bachelard, A Psicanálise do Fogo, trad. Maria Isabel Braga, Lisboa: Litoral Edições, 1989, p. 118. 

Tuesday, April 27, 2021

DIÁRIO

 


"Lembro-me que um dia desenvolveste esta ideia, que nós, homens, não caímos na morte de repente, antes avançamos gradualmente para ela. Morremos diariamente, já que diariamente ficamos privados de uma parte da vida; por isso mesmo, à medida que nós crescemos a nossa vida vai decrescendo. Começamos por perder a infância, depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo que decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte."


Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 24, trad. J. A. Segurado e Campos, 6.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 93. 

Monday, April 26, 2021

LE FLANC ENFANT D'UNE SIRÈNE

 



"À nuvem tormentosa mudo
Rocha de basalto e de lavas
No meio dos ecos escravos
Por uma trompa sem virtude


Que sepulcral naufrágio (tu
O sabes, espuma, e aí babas)
Um só supremo entre os salvados
Destrói o mastro já desnudo


Ou aquilo que em furor por falta
De qualquer perdição mais alta
Todo o vão abismo espraiado


Na cã tão branca que ondeia
Terá de avareza afogado
O flanco em flor de uma sereia"


Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 163.

Sunday, April 25, 2021

DILUCIDADO

 



"O nada é um carteiro vegetal, 
a clínica encerrada e misteriosa,
o tacto diluído que repousa, 
o gozo do dilúvio universal.

A tarde do estio mineral
que salta envolta no mundo, ela é a fossa
onde tudo sonha, furiosa, 
esfumado tudo, eterno sal. 

O nada é a ebriedade de estar perdido, 
o abandono da geometria, 
cisne da fronteira devorada.

Humana pedra, lago convertido
em solidão, a máquina vazia. 
Tudo dilucidado: isso é o nada."


Jesús Lizano, Mundo Real Poético, selec. e trad. Carlos d'Abreu, Lisboa: Barricada de Livros, 2019, p. 125. 

Saturday, April 24, 2021

O PRESENTE

 


"Nós tanto nos torturamos com o futuro como com o passado. Muitos dos nossos bens acabam por ser nocivos: a memória reactualiza a tortura do medo, a previsão antecipa-a; apenas com o presente ninguém pode ser infeliz!"

Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 5, trad. J. A. Segurado e Campos, 6.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 12. 

Wednesday, April 21, 2021

PACIÊNCIA

 



"O que ia acontecer? Ela nada sabia disso, mas, tendo levado toda a sua vida a esperar, a sua impaciência confundia-se com a esperança de participar num cataclismo geral em que, ao mesmo tempo que os seres, seriam destruídas as distâncias que separam os seres."


Maurice Blanchot, Thomas o Obscuro, trad. Manuel de Freitas, Silveira: E-Primatur, 2021, p. 50. 

Monday, April 19, 2021

CORTEJO

 



"O seu próprio prazer tornou-se muito grande. Tornou-se tão grande, tão impiedoso, que o sofreu com uma espécie de terror e que, ao levantar-se, momento insuportável, sem receber do seu interlocutor um sinal cúmplice, se apercebeu de toda a estranheza que havia em ser observado por uma palavra como um ser vivo, e não apenas por uma palavra, mas por todas as palavras que se encontravam nessa palavra, por todas aquelas que a acompanhavam e que por sua vez continham em si mesmas outras palavras, como um cortejo de anjos abrindo-se sem fim até ao olhar do absoluto."


Maurice Blanchot, Thomas o Obscuro, trad. Manuel de Freitas, Silveira: E-Primatur, 2021, p. 26. 

Sunday, April 18, 2021

DIÁFANA

 



"Ao subir a pequena escada de minha casa paro a pensar se será mesmo real, 
A madressilva da janela convence-me mais do que toda a metafísica dos livros. 

Contemplar o amanhecer!
A luz débil desvanece as sombras imensas e diáfanas, 
O ar agrada ao meu paladar."


Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, trad. José Agostinho Baptista, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p. 65. 

Saturday, April 17, 2021

DEVANEIO

 



"Devaneio repugnante. Em breve a noite lhe pareceu mais sombria, mais terrível do que qualquer outra noite, pensamento que já não se pensava, do pensamento tomado ironicamente como tema por algo que não o pensamento. Era a própria noite. Imagens que faziam a sua escuridão inundavam-no. Ele não via nada e, longe de ficar abatido, fazia dessa ausência de visão o ponto culminante do seu olhar. O seu olho, inútil para ver, adquiria proporções extraordinárias, desenvolvia-se de um modo desmesurado e, estendendo-se pelo horizonte, deixava a noite penetrar no seu centro para aí receber o dia."


Maurice Blanchot, Thomas o Obscuro, trad. Manuel de Freitas, Silveira: E-Primatur, 2021, pp. 15-16. 

Friday, April 16, 2021

A FORMA

 



"O dia encerra-se nas pálpebras
da casa, com o limite da tua pele. 

Tenho, neste hiato em que te atento, 
a consolidação da forma."



André Osório, observação da gravidade, Lisboa: Guerra & Paz, 2020, p. 60. 

Thursday, April 15, 2021

BRILHO

 



"Eu acredito que no início da origem do mundo não brilhou 
um tipo diferente de dias, nem tiveram um movimento diferente: 
aquilo era a Primavera. A grande Primavera conduzia
o mundo e os Euros retinham os seus sopros invernais
quando as primeiras manadas beberam a luz e a raça 
terrena dos homens levantou a cabeça dos duros campos 
e os animais foram lançados nos bosques e os astros no céu. 
Seres tão delicados não podiam aguentar esse esforço
se sossego tão grande não se espraiasse entre o frio e o calor
e a amabilidade do céu não recebesse as terras."


Vergílio, Geórgicas, II, 336-342, trad. Gabriel A. F. Silva, Lisboa: Cotovia, 2019, p. 61. 

Tuesday, April 13, 2021

ANIMAL

 


"Infindáveis voos
de aves a gritar, pairando
baixo sobre as águas, 
de longe parecem ilhas
à deriva, há baleias à roda
do barco cuspindo alto para o ar
esguichos em todas as direções
da bússola. Chamisso, que
mais tarde, na expedição de Romanzov,
foi tomado de espanto diante desse mesmo
quadro gigantesco, ficou com a ideia
de que talvez se pudesse domesticar
aqueles animais e - como gansos em
terra maninha - guiá-los pelo mar fora, 
por assim dizer, com uma vara, como um rebanho. 
Criar os juvenis num fiorde, escreveu ele, 
passar-lhes sob as barbatanas peitorais
uma coleira com picos suportada por bolsas de ar, 
fazê-las desaprender a mergulhar, 
tentar experiências. Se as baleias servem para
puxar ou empurrar, para atrelar ou
carregar e como, se se deve arreá-las ou
dirigi-las e como será o cornaca
destes elefantes do mar, tudo isso
se descobrirá a seu tempo. Aliás, no princípio, 
Chamisso diz também que a máquina a vapor
foi o primeiro animal de sangue quente
saído das mãos do homem."



W. G. Sebald, Do Natural - um poema elementar, trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal Editores, 2012, pp. 58-59. 

Monday, April 12, 2021

O TEMPO O DIRÁ

 



"Ela principiou a rir-se, balançando-se para a frente e para trás na bergère, observando-o. 
- Será verdade que não quer, Ralph? Não quer? Pois bem, eu deixá-lo-ei em paz por mais algum tempo, mas o seu dia de juízo está a chegar, não tenha dúvida. Não agora, talvez não nos próximos dois ou três anos, mas chegará. Serei como o Demónio e oferecer-lhe-ei... Não digo mais nada! Mas não duvide de que o farei. Você é o homem mais fascinante que já conheci. Atira a sua beleza ao nosso rosto, desdenhoso da nossa sensatez. Mas eu encostá-lo-ei à parede, vítima da sua própria fraqueza, fá-lo-ei vender-se por qualquer prostituta pintada. Duvida?
Ele inclinou-se para trás, sorrindo. 
- Não duvido de que o tente. Mas não creio que me conheça tão bem como julga. 
- Acha que não? O tempo o dirá, Ralph, e só o tempo. Estou velha; o tempo é a única coisa que me resta. 
- E o que pensa que me resta a mim? - perguntou ele. - O tempo, Mary, nada mais que o tempo. O tempo, a poeira e as moscas."


Colleen McCullough, Pássaros Feridos, trad. Octávio Mendes Cajado, s. l.: (sic) idea y creación cultural, 2008, p. 97. 

Sunday, April 11, 2021

MEMENTO

 



"Virá naturalmente o tempo em que o agricultor, 
lavrando a terra nesses territórios com o recurvo arado, 
encontrará lanças consumidas pela áspera ferrugem
ou com as pesadas enxadas baterá em capacetes ocos
e se pasmará com os grandes ossos nos sepulcros escavados."


Vergílio, Geórgicas, I, 493-497, trad. Gabriel A. F. Silva, Lisboa: Cotovia, 2019, p. 45. 

Saturday, April 10, 2021

ANIVERSÁRIO

 



"Mesmo os que sabem o que é o som da água sobre o toldo
A madrugada, a amêndoa
A névoa húmida, o barro do poço
No pensamento
Perdem o frágil o poder da vegetação

A mão que parte do dilúvio entra por mim como um focinho na água
Isto escrevo como se fosse capaz de gerar uma palavra inundada
Uma gota no deserto
Como se a sede me ensinasse a caminhar sobre a palavra"


Daniel Faria, Poesia, 2.ª ed. de Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 334. 

Thursday, April 8, 2021

RENOVO

 



"Doentia, a primavera expulsou tristemente
O inverno, a estação da arte calma, o lúcido
Inverno, e este meu ser que um sangue morno imunda
De impotência se estira em um bocejo lento.

O meu crânio amolece em crepúsculos brancos
Sob o ferro em tenaz, como um túmulo antigo,
E eu, triste, eis-me a errar pelos campos seguindo
Um sonho belo e vago, entre a seiva estuante,

Depois cedo ao odor das árvores, cansado,
Com a face a cavar uma fossa ao meu sonho,
E mordendo os torrões onde crescem lilases,

Aguardo, a abismar-me, o meu tédio a evolar-se...
- Entretanto o Azul, sobre a sebe e o alvor,
Ri das aves em flor ao sol a chilrear."


Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 49. 

Wednesday, April 7, 2021

LES FLEURS



"Do oiro do velho azul, em avalanches, desde
A origem e da neve eterna como os astros
Outrora desprendeste os cálices pendendo
Para a terra tão jovem e virgem de desastres,


O gladíolo fulvo e com perfil de cisne
E o louro divinal das almas exiladas
Rubro como o artelho puro do serafim
Corando do pudor das auroras pisadas,


O jacinto, o mirto adorável de ardor
E a rosa, carnação viva de uma mulher,
Herodíade em flor, cruel, do claro horto,
Aquela que o esplendor dum sangue feroz rega!


Fizeste a branca luz em soluços dos lírios
A rola sobre um mar de suspiros que aflora
No incenso azul dos horizontes lívidos
Ascendendo a sonhar para a lua que chora!


Hossana sobre o sistro e alçando o turíbulo,
Nossa senhora, hossana a florir destes limbos!
E que o eco se vá por celestes vigílias
Êxtase dos olhares e cintilar dos nimbos!


Ó Mãe, que concebeste no seio justo e forte,
Cálices a balançar numa futura ânfora,
Grandes flores a abrir a balsâmica Morte
Para o poeta exausto a quem a vida fana."



Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 47.

Tuesday, April 6, 2021

A CONFIANÇA




"Não convém confiar muito em projectos, pois a Fortuna tem as suas próprias razões."


 Petrónio, Satyricon, 82.6, trad. Delfim F. Leão, Lisboa: Livros Cotovia, 2016, p. 138. 

Monday, April 5, 2021

PERDA

 



"O síndico acendia o seu cachimbo com uma brasa, a servente escaldava uma lebre na água fervente de um grande caldeirão, e por uma janela aberta, podiam ver-se as fiandeiras conversando no silêncio do pátio ensombreado por um olmo. Perante as conhecidas imagens interrogava-me se, em épocas passadas, os homens teriam a nostalgia do passado, como eu, nesta manhã de estio, a nostalgia - por tê-los conhecido - de certos modos de vida que o homem perdera para sempre."


Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos, trad. António Santos, 3.ª ed., Lisboa: Edições 70, 2004, p. 39. 

Sunday, April 4, 2021

LUZ

 




"A noite é que retira lentamente
de algum lugar a sombra para a termos
à nossa volta como se nos desse 
um abrigo indeciso e tão sereno

que nele vemos qual era o controno
do que pode existir e se resume
a uma evidência pura que há num rosto
ao reparamos nele. É o que nos une

a esta imagem secreta, porque vinha
na mesma direcção, como se fosse 
tudo o que se recebe nesta súbita

distância a percorrer enquanto ao longe
se vê que é como a sombra a nossa vida, 
agora iluminada pela morte."

Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 88.

Saturday, April 3, 2021

VINDA

 






"Vem para aqui, belo rapaz! Eis que para ti as Ninfas
trazem lírios em cestos cheios. Para ti a alva Náiade,
colhendo pálidas violetas e as flores das papoilas,
junta o narciso e a flor do endro de odor agradável.
Então, entretecendo-as com cássia e com outras ervas perfumadas,
pinta os jacintos flexíveis com calêndulas douradas."



Vergílio, Bucólica II, 45-50, trad. Gabriel A. F. Silva, Lisboa: Livros Cotovia, 2019, p. 34.

Friday, April 2, 2021

PAIXÃO

 



"Tal sofrimento não se pode exprimir. Nessa tortura moral, Jesus alcançou-nos o dom da força para podermos resistir, no extremo abandono, quando se quebram todos os laços da família ou convívio. Nessa provação venceremos, se unirmos o nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus."


Ana Catarina Emmerich, A Paixão de Jesus Cristo, 2.ª ed.,  s. trad., Apelação: Paulus Editora, 2004, p. 256. 

Thursday, April 1, 2021

O DESAMPARO

 



"Vi figuras de anjos em volta dele. Quando, porém, a escuridão se tornou mais densa e o terror pesava já sobre todas as consciências, ficou Jesus abandonado de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto pode sofrer um homem, aflito e esmagado pelo desamparo completo, sem consolação divina ou humana, no deserto da provação e num infinito martírio."


Ana Catarina Emmerich, A Paixão de Jesus Cristo, 2.ª ed.,  s. trad., Apelação: Paulus Editora, 2004, p. 256.