Saturday, July 31, 2021

VOLUPTAS

 


"Entre aqueles que se tinham ido refugiar na penumbra, encontrava-se a personagem principal da nossa história. Para a conhecermos mais profundamente, melhor seria contemplá-la à luz clara do sol, pois na semi-escuridão, a sua silhueta afilada perder-se-ia na sombra das colunas de mármore da sala; e se o brilho da luz não a favorecia demasiadamente aos olhos dos amantes do belo baseado nos cânones clássicos da beleza, pelo menos apresentava-o tal como era na realidade. Seria difícil encontrar entre os homens, figura mais oposta ao vulgarmente estabelecido como tipo característico do galã convencional. Podia-se ver nele o cínico, o cómico, podia ainda fazer de porteiro, de criado, inclusivamente de pirata. Decerto nenhum realizador lhe daria o papel de galã, ainda mesmo dispondo-se ele a cortar as barbas pretas e onduladas, e tão majestosamente compridas que ultrapassavam os joelhos. Porém, semelhante sacrifício por nada deste mundo seria capaz de o fazer porque elas eram a guarda avançada da sua personalidade, serviam de chamariz para certas mulheres que arrastadas pela curiosidade particular do sexo, sentiam o desejo de apreciar de perto a sua cor de ébano, de contemplar os arabescos pelas voluptas que os pêlos por um requinte de gosto, faziam, ao terminar, à maneira de Sardanápalo."


Manuel de Lima, Um Homem de Barbas, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1973, pp. 26-27. 

Friday, July 30, 2021

O TEMPO (para a memória de Pedro Tamen)

 



"Por fim, esta ideia do Tempo tinha para mim um derradeiro valor, era um aguilhão, dizia-me que era tempo de começar se é que queria alcançar o que por vezes sentira no decurso da minha vida, em breves relâmpagos, do lado de Guermantes ou nos meus passeios de carruagem com a senhora de Villeparisis, e que me fizera considerar a vida digna de ser vivida. Quanto mais digna de ser vivida me parecia agora, afora que achava que ela, antes vista no meio das trevas, podia ser iluminada, podia ser reconduzida à sua verdade depois de ser constantemente falseada, podia ser enfim realizada num livro!"


Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - O  Tempo Reencontrado, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 361. 

Thursday, July 29, 2021

À MINHA VOLTA

 




"O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado, 
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta."


Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 205. 

Wednesday, July 28, 2021

A HONRA

 



"Com ar triunfante, o senhor von Pasenow olhou à roda: «Pois é, tem de haver outra vez ordem aqui. Ninguém tem o sentido da honra...», depois, mais baixo, para o médico: «Sabe, Helmuth tombou pela honra. Mas não me escreve. Talvez esteja ainda ressentido...», pôs-se a pensar, «ou então este senhor pastor esconde-me as cartas. Quer guardar o seu segredo para si, não quer que lhe espreitemos o jogo. Mas, à primeira desordem no cemitério, vai para o olho da rua, esse homem de Deus. Vai, que eu garanto.» - «Mas, senhor von Pasenow, no cemitério está tudo na melhor das ordens.» - «Na aparência, senhor notário, na aparência, é tudo para nos deitar areia para os olhos, só não é tão fácil de descobrir porque não entendemos a língua deles; estão ostensivamente escondidos. Nós outros só ouvimos o silêncio deles, mas estão constantemente a fazer-nos queixas. Por isso é que todos têm tanto medo e, quando tenho um convidado, sou eu próprio que tenho de o levar à porta, eu, um velho», um olhar hostil perpassou por Joachim, «alguém sem honra não consegue, evidentemente, arranjar coragem para isso, prefere ir esconder-se no estábulo das vacas.»"

Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 119. 

Tuesday, July 27, 2021

ESCURECER

 



"Começava a escurecer; nas clareiras de neblina apareciam as estrelas. O Escorpião subia acima do horizonte acidentado. E Antares, o sol vermelho, também lá estava quase a sumir-se. A sudeste via-se o Covil do Grande Cão. Uma após outra, a marcarem posições, as estrelas eram como chagas abertas no seu próprio ser, desdobramentos múltiplos daquela angústia, daquele olho sem pálpebras. Quem sabe se as constelações seriam monstruosidades de um divino delírio? Um desastre que parecia atingir o universo inteiro. Como se estivesse a viver a preexistência de uma impensável catástrofe, apoiou-se um momento no rebordo da janela e sentiu a terra condenada, também, entontecida pelo ritmo espasmódico de um voo, rumo à Borboleta de Hércules."


Malcolm Lowry, Lunar Caustic, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1985, p. 33. 

Monday, July 26, 2021

ACOLHER


"Elisabeth não ignorava que a paixão que os pais punham em celebrar as várias festas do ano em que havia troca de presentes, em festejar os dias de aniversário e estarem sempre a pensar em novas surpresas, possuía um significado mais profundo e tinha uma relação mais profunda, embora difícil de entender, com coisas novas; é certo que Elizabeth não sabia que todo o coleccionador vai além das coisas que reuniu, vai até ao infinito, com o carácter absoluto e sem falhas da sua colecção, que nunca é atingido, nunca é atingível e, contudo, é incessantemente procurado, não sabia que, ao diluir-se na sua colecção, ele espera também atingir o seu próprio absoluto e a abolição da sua morte, Elisabeth não o sabia, mas rodeada por toda aquela quantidade de coisas belas e mortas, reunidas e amontoadas em torno de si, rodeada por tantos quadros belos, pressentia, no entanto, que os quadros estavam pendurados nas paredes como se servissem para as reforçar e como se todas as coisas mortas servissem para acolher, talvez também esconder e proteger, algo muito vivo, algo a que ela própria estava tão ligada que, por vezes, não podia deixar de pensar que, quando chegava um novo quadro, era um irmãozinho, algo que tinha de ser objecto de cuidados e de que os pais cuidavam como se  vida em comum de todos disse dependesse; pressentia a angústia que subjazia a tudo isso  que, com a festa, procurava silenciar o quotidiano, que é o envelhecer, uma angústia que assegurava constantemente a si própria - uma surpresa sempre experimentada de novo - que eles estavam vivos e nascidos e definitivamente juntos e que o seu círculo se fechara para a eternidade."


Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, pp. 76-77. 

 

Sunday, July 25, 2021

ARRASTADO

 


"A chuva mergulhava suavemente no rio, gotejava baixinho nas folhas dos salgueiros. Havia uma canoa semi-afundada na água junto à margem; sob um pequeno pontão de madeira, desaguava um fio de água, precipitando-se mais rápido nas águas tranquilas do rio, e Joachim sentiu-se também arrastado para longe, como se a ânsia que o possuía fosse um fluir macio e amenos do seu coração, um curso de água a respirar, temendo dissolver-se no sopro de uma boca amada e desaparecer como num lago de silêncio incomensurável. Era como se o Verão estivesse a derreter-se, com a água a embrandecer, a gotejar das folhas, gotas de orvalho a pender das ervas."

Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 46. 

Saturday, July 24, 2021

EM REDOR

 




"depois, disseste que a vida se propagava em transcendente vertigem
e que a seiva ao penetrar os poros do estrume fecundaria a visão
eu perguntava, que dom seria aquele?
o do cego assistindo à projecção dum filme mudo

ambos conhecíamos o sabor do sangue e das açucenas tardias
mas, o tempo atropelou tudo em redor
esquecemos os objectos íntimos e o que estávamos ali a fazer
das palavras restavam os pedúnculos ocos na respiração dum recente medo

viajámos sem rumo
abandonei-te à transgressão do voo e do açúcar
e quando regressámos um ao outro
consentiste-me que roubasse aos deuses o silêncio
e a luminosidade do monólogo"


Al Berto, "Sete dos Ofícios", in O Medo, 5ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 184. 

Friday, July 23, 2021

ESTATUTO


"Mas, como vimos, o tempo de Carlos Magno, caracterizado pela busca de uma edição autêntica da Bíblia e pela reforma da escrita, assenta os fundamentos de uma civilização. Encontramos a exegese, de um lado; por outro, a arte de ler e de escrever. A Idade Média será o tempo do Livro e dos livros. Isto suscita uma outra transformação, cujos efeitos os historiadores só agora calculam: o estatuto da imagem muda. A imagem passa a reflectir a relação com o Livro e os livros que então se instaura."

Jacques Le Goff, Em Busca da Idade Média, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 2004, p. 57. 

Wednesday, July 21, 2021

AS OBRAS

 



"Filetas respondeu:
- É um deus, minhas crianças, jovem, belo e com asas. Também ama a juventude, procura a beleza e permite que as almas voem. O seu poder ultrapassa o de Zeus. Domina os elementos, domina os astros, domina os seus pares, mais do que alguma vez conseguirão dominar as cabras e os carneiros. Todas as flores são obras de Eros, estas plantas são criações suas. É graças a ele que os rios correm e que os ventos sopram."


Longus de Lesbos, Dafnis e Cloé, II, trad. Sandra César (a partir da versão francesa), Queluz: Coisas de Ler Edições, 2002, p. 45. 

Tuesday, July 20, 2021

ÚNICO

 


"O lugar onde se está e o momento em que se está são aspectos da mesma realidade; e cada lugar como cada momento são não apenas um todo mas um todo único, porque a cada lugar do mundo, por mais exíguo, corresponde um «céu» e uma orientação, e esse céu e essa orientação correspondem a um momento único. Poderíamos inclusive dizer que todo o lugar e todo o momento são sempre únicos, e diferentes de todos os outros, ou que todo o lugar é topos e todo o momento é kairos, princípio e fim, intensidade estática, paroxismo, embora só recebam a respectiva investidura graças à consciência única aí centrada, aí intencionalmente investida."

Lima de Freitas, "Orientações: notas para uma hermenêutica das direcções do espaço", in A Simbólica do  Espaço - Cidades, Ilhas, Jardins, coord. Yvette Kace Centeno e Lima de Freitas, Lisboa: Editorial Estampa, 1991, p. 260. 

Sunday, July 18, 2021

TRÂNSITO

 




"aqui te faço os relatos simples
dessas embarcações perdidas no eco do tempo
cujos nomes e proveito de mercadorias
ainda hoje transitam de solidão em solidão"


Al Berto, "Salsugem", in O Medo, 5ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 299. 

Saturday, July 17, 2021

PODER

 



"E se não há razões para temer os boatos, também não as há para sentir medo por coisas que só receamos em função dos boatos que sobre elas ocorrem. Em que podem boatos injustos lesar um homem de bem? Não deixemos, pois, que a má opinião que se faz da morte nos leve a julgar mal dela. As pessoas que falam mal da morte ainda a não experimentaram, e condenar o que não se conhece é pelo menos ousadia. Tu sabes, afinal, como muita gente há a quem a morte pode ser útil, quanta gente há a quem ela liberta das aflições, da miséria, das angústias, dos suplícios, do tédio. Não existe ninguém que possa ter poder sobre nós quando temos a morte sob o nosso poder!"


Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, 91, trad. J. A. Segurado e Campos, 6.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, pp. 461-462. 

Friday, July 16, 2021

SOB AS ESTRELAS

 



"Também penso no que será correr entre uma multidão. 
Penso no que será descer de uma montanha. No que será prostrar-se diante de um homem. No que será dizer «purifica-me»."


Daniel Faria, Sétimo Dia, 3:4., Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 88

Thursday, July 15, 2021

ANIVERSÁRIO

 



"Penso também nas planícies. Estendo o meu corpo debaixo dos lençóis e sinto o meu coração escaldar. Uma sarça sanguínea no coração do homem. Sinto o fogo que funde a matéria mineral da aliança."


Daniel Faria, Sétimo Dia, 3:7., Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 91. 

Wednesday, July 14, 2021

DA CONDIÇÃO

 


"Hoje, quando me dirigi para lá por volta do meio-dia, avistei debaixo das romãzeiras e dos mirtos, um menino que tinha nas mãos bagas de mirto e romãs; era branco como o leite, louro como a chama, luzia como se tivesse saído do banho. Estava nu e sozinho; divertia-se a colher tudo o que encontrava, como se o jardim lhe pertencesse. Tentei agarrá-lo, temendo que na sua imprudência me partisse os mirtos e as romãzeiras. Mas ele escapou-me com desembaraço e facilidade, quer deslizando por entre a enorme quantidade de rosas, quer dissimulando-se por entre as papoilas. E, no entanto, quantas vezes me dei ai trabalho de correr atrás dos cabritos, quantas vezes me cansei a perseguir vitelos. Porém, desta vez, tratava-se de alguém com uma agilidade incrível. Cansado, pois já sou velho, apoiei.me no cajado e, cuidando de que não fugisse, perguntei-lhe de que casa vizinha viera e o que colhera nos jardins dos outros. Não me respondeu, mas, colocando-se perto de mim, começou-se a rir muito delicadamente, atirando-me, ao mesmo tempo, bagas de mirto. Não sei como foi, mas o seu encanto fez desaparecer a minha cólera. Então pedi-lhe para me dar um abraço e para não ter medo; jurei-lhe, no meio das bagas de mirto, que o deixaria ir embora, que lhe ofereceria maçãs e romãs e até que lhe permitiria, doravante, colher os frutos e cortar as flores, na condição de me dar um beijo."


Longus de Lesbos, Dafnis e Cloé, II, trad. Sandra César (a partir da versão francesa), Queluz: Coisas de Ler Edições, 2002, pp. 42-43. 

Tuesday, July 13, 2021

EVOCAÇÃO

 


"Ora, por muito pouco que nos interroguemos sobre as condições objectivas do simbólico, por exemplo, somos levados a prestar o máximo de atenção ao fenómeno da evocação. Tudo se passa, com efeito, como se certos objectos e certas imagens beneficiassem, devido a uma forma ou a um conteúdo particularmente significativos, de uma capacidade lírica ainda mais nitidamente marcada do que é habitual. Comummente válida, se não mesmo universalmente, essa capacidade, pelo menos em certos casos, parece fazer parte essencial do elemento considerado e poder, por conseguinte, aspirar, como ele, à objectividade."

 


Roger Caillois, O Mito e o Homem, trad. José Calisto dos Santos, Lisboa: Edições 70, s.d., p. 31. 

Monday, July 12, 2021

VERDE-URTIGA

 



"A cor verde-urtiga daquela permanente de criada camponesa não pretende, com certeza, conferir a devida dignidade àquele seu silêncio e àquela ofendida solidão de santa. E, de facto, as velhas da casa olham-na preocupadas e suspirantes: cúmplices entre si, e unidas por aquela espécie de desgraça, ou melhor, de fatalidade, perante a qual são impotentes. 
Mas Emilia, absorta algures, com os olhos foscos que nada olham, come, com lentas colheradas, a comida verde da sua escandalosa penitência."


Pier Paolo Pasolini, Teorema, trad. Ana Tanque, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 104. 

Sunday, July 11, 2021

ADÂMICO

 


"Séculos e séculos regressando com frequência,
Indestrutível, vagueando imortal, 
Robusto, fálico, com possante ventre inicial, perfeitamente puro, 
Eu, o cantor dos cantos adâmicos, 
Atravessando o novo jardim, o Oeste, chamando as grandes cidades, 
Em delírio, assim pressagio o que é gerado, oferecendo-o, oferecendo-me, 
Banhando-se, banhando os meus cânticos no Sexo, 
Descendência das minhas entranhas."


Walt Whitman, Folhas de Erva, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 102. 

A BELEZA CERRADA




"O poeta não se submete, é uma raiz
A pressentir o coágulo a penetrar 
no cérebro, sempre que a treva alastra. 

O poeta olha fixamente para trás 
e para a frente, sobre as imagens
evolui para que a sua sede
se estenda como uma particularidade

grave, um ferro a atravessá-lo, 
a beleza cerrada, um último 
predomínio do que, humanamente, 

é conciliável com o irreconciliável. 
Porque o poeta ama e odeia, em simultâneo, 
no poema."


Amadeu Baptista, Atlas das Circunstâncias, Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2012, p. 28. 

 

Friday, July 9, 2021

OS VOTOS

 



"Tu próprio, como me informaram os que foram testemunhas, saudaste o deus em Delfos precisamente por esta forma e dizem que escreveste:

Alegra-te e conserva feliz a vida de um tirano.

Por mim não quereria exprimir tais votos a um homem, quanto mais a um deus: a um deus, porque os meus desejos seriam incompatíveis com a natureza divina que está para além do prazer e da dor; a um homem, porque a maior parte das vezes prazer e dor são fontes de desgostos, pois provocam na alma um espírito pesado, o esquecimento, a parvoíce e a insolência."


Platão, "Carta III", in Cartas, 4.ª ed., trad. Conceição Gomes da Silva e Maria Adozinda Melo, Lisboa: Editorial Estampa, 2002, p. 25. 

Thursday, July 8, 2021

PAIRAR

 



"Os Deuses fizeram, em volta da taça, 
seus gestos secretos. E o vento silvou...

Os Deuses fizeram, em volta da taça,
sinais reservados. E a chuva tombou...

Os Deuses ficaram, em volta da taça, 
hirtos e calados. E o fogo assomou...

Os Deuses fizeram, em volta da taça,
um círculo fechado. E a névoa pairou..."


Augusto Ferreira Gomes, Quinto Império, Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003, p. 42.

Wednesday, July 7, 2021

UNICIDADE

 



"Paulo percorria aquela estrada sem história, naquela identificação completa entre luz do sol e consciência de estar a viver. 
Mas como tudo estava limpo, puro, incontaminado! Naquele vazio vital e ardente não eram sequer concebíveis as obscuridades, as tortuosidades, as confissões, os contágios, o fedor da vida. Precisamente porque ali não havia variedade, mas apenas unicidade: o azul profundo do céu, a obscuridade da areia, o contorno do horizonte, as inúmeras elevações e depressões do terreno, não eram formas que se opunham umas às outras, excluindo-se reciprocamente, ou prevalecendo reciprocamente, ora uma, ora outra: não, eram uma forma única, e como tal, sempre omnipresente também."


Pier Paolo Pasolini, Teorema, trad. Ana Tanque, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 69. 

Tuesday, July 6, 2021

FATALIDADE

 



"Ocorreu-me responder ao profeta que a Arte tinha alma mas o homem não. Todavia, receio bem que ele não me tivesse compreendido. 
- Não digas isso, Harry. A alma é uma terrível realidade. Pode ser comprada e vendida e trocada. Pode ser envenenada ou aperfeiçoada. Eu sei que cada um de nós tem uma alma. 
- Tens a certeza disso, Dorian?
- A certeza absoluta. 
- Ah, então deve ser uma ilusão. As coisas de que temos absoluta certeza nunca são verdade. É essa a fatalidade da Fé e a lição do Romance."


Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 267.

Monday, July 5, 2021

SECURA




"Em Roma, na Sistina, 
Coberta de símbolos cristãos, 
Está uma caixa escarlatina
Onde secam antigos narizes:

Narizes de ascetas da Tebaida,
Narizes de cónegos do Santo Graal
Onde a noite lívida se coagulou
E o antigo cantochão sepulcral. 

Na sua secura mística, 
Todas as manhãs se introduz 
A imundície cismática 
Que em pó fino se desfez."



Arthur Rimbaud, Obra Completa, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 239. 

 

Sunday, July 4, 2021

FRATERNIDADE

 



"A manhã vai avançada, o sol é já forte. As árvores perderam o seu mistério: aquele seu sentido de fraternidade (estão fechadas novamente no seu simples silêncio selvagem e inexpressivo, oprimidas por algo maior que elas e a que oferecem, humildes, a sua rendição)."


Pier Paolo Pasolini, Teorema, trad. Ana Tanque, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 48. 

Saturday, July 3, 2021

ESQUECIMENTO (CARTOGRAFIA)

 




"Sou apenas
mais um nome
para o caderno 
de esquecimentos.

A vida esquece sempre
a necrologia 
do dia seguinte. 

Por isso, 
assumo sempre 
a pose fantasma para a fotografia.

Somos todos homens
de costas para a memória, 
e por vezes
nem o nome nos resta."


Nuno F. Silva, Linguagem do Abandono, s.l.: Idioteque, 2018, p. 44. 

Friday, July 2, 2021

CONGRAÇAR

 




"Não há dias propícios para os fulgores
mortais. Vem-se à terra por uma vereda
acrisolada, com as mãos ininterruptas, 
e faz-se a boca diagrama das casas, 

sapiência de ver e de sentir, caladamente. 
Depois, há só como pensar em tudo em volta
e ver os córregos, as nuvens mansas, a prata
dos telhados, sendo por essa liturgia do silêncio

que há-de ir-se um homem em busca das palavras, 
para as sentir e ampliar nos campos e na infância, 
enquanto a terra revolve os seus cilícios

de treva e de raízes, a congraçar na cabeça
uma rede de brilhos opacos e translúcidos
em cada pedra."



Amadeu Baptista, Atlas das Circunstâncias, Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2012, p. 7. 

Thursday, July 1, 2021

CANÇÃO

 



"Porque a vida é breve 
E muitas são as penas
Que vivendo e sofrendo cada qual geme, 
Após nossos desejos
Os anos consumimos e passamos; 
Pois quem o prazer de si afasta
Para viver em ânsias e cuidados
Não conhece os enganos
Do mundo, nem de que estranhos males
E por que estranhos casos
Opressa seja grã parte dos mortais. 
Para esquivar enfados
A vida solitária escolhemos, 
E sempre em festa e júbilo, 
Formosos jovens e alegres ninfas, estamos.
Agora aqui viemos 
Com os nossos acordes
Só para honrar esta
Alegre festa e amena companhia. 
Também aqui nos trouxe 
Aquele que vos manda
Em quem se vejam juntos
Todos os bens da alma.
Por tal graça superna, 
Por tão feliz estado, 
Podeis estar contentes, 
Gozar e agradecer a quem vo-lo tem dado."



Nicolau Maquiavel, A Mandrágora, 3.ª ed.,  trad. Carmen González, Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 17.