"Entre aqueles que se tinham ido refugiar na penumbra, encontrava-se a personagem principal da nossa história. Para a conhecermos mais profundamente, melhor seria contemplá-la à luz clara do sol, pois na semi-escuridão, a sua silhueta afilada perder-se-ia na sombra das colunas de mármore da sala; e se o brilho da luz não a favorecia demasiadamente aos olhos dos amantes do belo baseado nos cânones clássicos da beleza, pelo menos apresentava-o tal como era na realidade. Seria difícil encontrar entre os homens, figura mais oposta ao vulgarmente estabelecido como tipo característico do galã convencional. Podia-se ver nele o cínico, o cómico, podia ainda fazer de porteiro, de criado, inclusivamente de pirata. Decerto nenhum realizador lhe daria o papel de galã, ainda mesmo dispondo-se ele a cortar as barbas pretas e onduladas, e tão majestosamente compridas que ultrapassavam os joelhos. Porém, semelhante sacrifício por nada deste mundo seria capaz de o fazer porque elas eram a guarda avançada da sua personalidade, serviam de chamariz para certas mulheres que arrastadas pela curiosidade particular do sexo, sentiam o desejo de apreciar de perto a sua cor de ébano, de contemplar os arabescos pelas voluptas que os pêlos por um requinte de gosto, faziam, ao terminar, à maneira de Sardanápalo."
Manuel de Lima, Um Homem de Barbas, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1973, pp. 26-27.