Wednesday, November 29, 2023

SUSTO

 



"Há susto, há pesar, 
há tudo aquilo que faz de ti um animal quase belo.

Tão inactivo, levado pelas águas escuras, 
sozinho estás sem olhar a quem, 
a não ser que te chegue o apetite, 
a atenção aos estalos da morte. 
No canto lamacento, encolhes o corpo frio, 
até que alguém tenha sede.
Aí, a tua cauda subtil ameaça movimento. 

Os olhos húmidos de ternura e a emergência
criam uma estranha fisionomia. 
Deploras a solidão que inventaste, 
no fundo, não queres matar. 
Se possível, apenas morder um pouco as carnações.
Mas a carcaça gira onde acaba a tua amargura."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 49. 

Monday, November 27, 2023

SKILFULNESS

 


"Este elemento de especificação e de individualização, ligado ao de uma habilidade - uma skilfulness - sobre-humana, constitui as bases indispensáveis para a instauração do mito (que, por sua vez, virá a encarnar-se dentro de um ritual preciso). Ritual que poderá ser inconsciente e espontâneo, ou então perfeitamente institucionalizado, que poderá derivar de uma cuidadosa preparação ou de uma feliz improvisação, mas que, seja como for e onde quer que seja, não poderá faltar."


Gillo Dorfles, Novos Ritos, Novos Mitos, trad. A. J. Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70, s.d., p. 23. 

Sunday, November 26, 2023

REX

 



"Louvado sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas, porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos,
- velho ao fim da guerra com uma cabra -
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvado sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!"


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 67.

Saturday, November 25, 2023

LINHA DE AR

 



"Não sei que furor me assalta ao meio-dia.
Despeço-me da minha espessura,
e um vento eleva-se dos meus mais ínfimos trejeitos.

Estremecem os membros finos, ser quase
e apenas uma linha de ar. Todo este bailado
arrebatado mas imperceptível,
todo este pavor acumulado,
como terminará o meu sobressalto?

Que me torço, que me desloco sem sair do lugar,
e os contornos dos objectos esbatem-se diante de mim.

Bato contra a janela, por terra caio, repouso triste
na mesa ocupada por clips, aparas, flores mortas.

Como um vidro, lentamente arrefece
a minha firmeza. Num instante concretizo-me
Depois, pouco a pouco, retorno ao ágil tormento."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 39.

Friday, November 24, 2023

ESTIMA PELO AR BATIDO

 



"Que dizer da estima pelo ar batido,
pela onda, pelo excesso da matéria
confirmado na ruga da deslocação?

Irrompem no meio, entre substâncias.
Tudo muda o seu jeito de ser
a propósito dum balançar tão seu.

E descerram um vocábulo redondo,
como promessa convincente.
Mas não se diz nada;
o sossego ganha neste lugar.

Como amam a impressão sensível
do trânsito, o vórtice, a ligeireza.
Cresce neles o gosto pelo momentâneo
e pouco fazem com o corpo acidentado.

Sim, desejam a façanha, a pirueta,
o salto mortal, entoar uma palavra,
criar uma tempestade, finalmente lançados
contra os que os comem.

Porém tudo cai esquecido
e uma vez mais mordem o anzol."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 27.

Thursday, November 23, 2023

LOGOS SPERMATICOS


 

"Ainda hoje apreciamos com íntima admiração o poder evocador destes versos do poeta grego que tantas vezes teve o pressentimento profundo da essência da  divindade. Impressiona-nos vivamente a imagem de Júpiter Olímpico, concebida por Fídias depois da leitura destes versos. Era uma centelha daquele «Logos spermaticos», do verbo criador e eterno, espalhado por todo o universo, cuja revelação humanizada, os arautos de Cristo vinham agora anunciar."


Josef Holzner, Paulo de Tarso, trad. Maria Henriques Oswald, Lisboa: Editorial Aster, 1958, p. 219

Tuesday, November 21, 2023

EM REDOR DE SI

 



"Um banco num jardim público.
Sentada no banco uma rapariga. Ela tem o prazer de olhar o jardim em sua volta. Outras vezes agrada-se em meditar, talvez sobre o que vê. Como se em realidade houvesse dois jardins: um em redor de si e outro no seu íntimo, e ela estivesse alternadamente em ambos.
A sombra das árvores faz aqui o ar apetecível."


José de Almada Negreiros, Poemas, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 139.

Monday, November 20, 2023

MORAR (para a memória de Sara Tavares)

 



"Se subir aos céus, lá Vos encontro,
se descer aos Infernos, igualmente.
Mesmo que me aposse das asas da aurora
e for morar nos confins do mar,
mesmo aí, a Vossa mão me conduz,
Se eu disser «ao menos as trevas me cobrirão,
que a luz sobre mim seja qual noite»."


Sl 140, 9-12.

Sunday, November 19, 2023

SOBRESSALTO

 


"A janela estava aberta; os galos pareciam rasgar o nevoeiro, de que os pinheiros retinham entre os ramos diáfanos farrapos. Campo banhado de aurora. Como renunciar a tanta luz? O que é a morte? Não se sabe o que é a morte. Teresa não está certa do nada. Teresa não está absolutamente certa de que não haja ninguém. Teresa odeia-se por sentir um tal terror. Ela, que não hesitava em precipitar nele um outro, detém-se em sobressalto diante do nada. Como a sua cobardia a humilha! Se existe esse Ser (e, num breve instante, revê a opressiva festa do Corpo de Deus, o homem solitário esmagado sob uma capa dourada, e o que ele trazia nas mãos, e aqueles lábios que mexiam, e o seu ar de dor...) Já que Ele existe, que desvie a mão criminosa antes que seja demasiado tarde; - e se é sua vontade que uma pobre alma cega transponha a passagem, possa Ele, ao menos, acolher com amor esse monstro, sua criatura."


François Mauriac, Teresa Desqueyroux, trad. Nataniel Costa, 2.ª ed., Lisboa: Estúdios Cor, 1958, pp. 126-127. 

Saturday, November 18, 2023

DA VELHA ÁRVORE DE OUTONO


"Oh, a queda das folhas,
A morte lenta das flores,
A sombra sem fim das noites
E o dia esfacelado!

E, no entanto, cada folha
Fala-me da felicidade,
E voa alegremente
Da velha árvore de outono.

E ver-me-ão sorrir
Às coroas de neve,
Às brancas florações
Que devastam as rosas.

E ouvir-me-ão cantar,
Quando a noite desfalecente
Anunciar tristemente
O dia escuro e deserto."


Emily Brontë, O Vento da Noite, trad. Lúcia Nogueira, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 58.

Friday, November 17, 2023

ESCURECE

 




"A noite escurece à minha volta,
Sopra o vento frio e violento;
Mas detém-me o encantamento
E eu não posso, não posso ir.

Curvam-se as árvores enormes
Os seus ramos nus pesados com a neve;
A tempestade desce rápido,
E ainda assim eu não posso ir.

Nuvens sobre nuvens acima de mim,
Não há vida sob os meus pés
Mas nada sombrio pode mover-me:
Eu não vou, não posso ir."


Emily Brontë, O Vento da Noite, trad. Lúcia Nogueira, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 7.

Wednesday, November 15, 2023

MAIS RICA

 



"A realidade do universo mítico parece infinitamente mais rica e vital que o quotidiano actual. Senão, como explicar o fascínio que exerceram e exercem ainda estas narrativas? Não o tivessem elas, e decerto já teriam sido esquecidas!"


José Trindade Santos, Antes de Sócrates - Introdução ao estudo da Filosofia Grega, Lisboa: Gradiva, 1985, p. 66. 

Monday, November 13, 2023

PROVAÇÕES

 


"Mas é necessário uma grande força anímica para esperar pelo chamamento de Deus. Não é o homem inferior e nervoso que sabe esperar: para esse, ou é demasiado cedo ou demasiado tarde. O santo, que soube exercitar-se na mais severa disciplina interior, esse sabe esperar pela hora de Deus. Para ele, o momento marcado por Deus é aquilo a que a Sagrada Escritura chama «kairós», isto é, o momento preciso, que os gregos simbolizam num rapaz de cabelos encaracolados, em veloz carreira. É bom lembrarmo-nos de que na vida dos santos há épocas de provação, de inactividade aparente e de procura ansiosa, às apalpadelas, em busca da vontade de Deus. Através destas provações, tornam-se mais acessíveis e ficam mais ao alcance da nossa realidade, mais perto de nós e da terra."


Josef Holzner, Paulo de Tarso, trad. Maria Henriques Oswald, Lisboa: Editorial Aster, 1958, p. 87. 

Sunday, November 12, 2023

FLORESCÊNCIA

 



"E não desconfies das coisas criadas devido à sua diversidade, por medo de atribuir a Deus um baixo estatuto e uma glória insuficiente.
    Pois a Sua Glória é uma - criar todas as coisas; e esta [sua] criação é como se fosse o Corpo de Deus.
    Mas nada existe que, pelo ser do Criador, seja considerado mau ou vil.
    Estas coisas são paixões que acompanham o processo de criação, como a ferrugem o bronze e a sujidade o corpo; mas nem o ferreiro que trabalha o bronze cria a ferrugem, nem os procriadores do corpo a sujidade; nem Deus [cria] o mal.
   É a continuidade do estado de criação que causa a perda, por assim dizer, da florescência; por isso Deus criou a mudança, como uma purificação da génese."


Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum, Tratado Catorze, 7, trad. Carla Ribeiro, s.l.: Alma dos Livros, 2023, pp. 132-133.

Saturday, November 11, 2023

MARTINHO




"É vão buscar os mortos
sob os ciprestes,
mesmo que em nós sangrem ainda
palavras e olhares que eles nos deram:
como tentar colher o esplendor de um rosto
que, por muito o termos amado, destruímos,
debatendo as mãos cegas
entre a neve que o lembra sobre os cedros."


José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 177.

Friday, November 10, 2023

IMANIFESTO

 



"Ora, se fosse manifesto, não existira. Pois tudo o que se manifesta está sujeito a transformações, por se ter tornado manifesto. Mas o Imanifesto é eterno, pois não deseja tornar-se manifesto. Existe sempre e manifesta todas as outras coisas.
Sendo Ele mesmo imanifesto, sempre existente e sempre manifestando, não se torna pessoalmente manifesto. Deus não é Ele mesmo criado; ao pensar a manifestação, pensa todas as coisas manifestas.
Ora, «pensar a manifestação» lida unicamente com as coisas criadas, pois fazê-lo é nada mais do que criar."


Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum, Tratado Cinco, trad. Carla Ribeiro, s.l.: Alma dos Livros, 2023, pp. 43-44.

Thursday, November 9, 2023

FRUTOS (para a memória de Manuel Gusmão)

 



"Eram tempos de míngua, em tempo de guerra
de guerrilhas, mas nós não morríamos
e, recuando, gritávamos-te:

Frutos havia, sim, ó amada! nesse verão:
Como a tâmara - esse casulo oriental
dissolvendo a polpa corrompida
em redor da sua óssea semente em vão
erguida; ou as nozes - ondas crespas
encrespando um mar imóvel e rilhando
os dentes, inexistentes. E se preferires,
serão figos, ficos secos - formas passas
do fruto; pequenas capelas auriculares escondidas
no bosque; doce matéria para os dedos moldarem,
modeladas já, moldáveis ainda."


Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Caminho, 2008, p. 16.

Wednesday, November 8, 2023

MISERICÓRDIA



"Ele não sustenta o sistema revoltante do pecado original; não tenta provar-nos que o Deus que protege os valdevinos, que ajuda os imbecis, que oprime as crianças, que brutaliza os velhos e que castiga os inocentes é um Deus sumamente bom; ele não exalta os benefícios de uma Providência que inventou essa abominação inútil, incompreensível, injusta, inepta, o sofrimento físico; longe de tentar justificar, à semelhança da Igreja, a necessidade de tormentos e tribulações, exclama, na sua misericórdia indignada «Se um Deus criou o mundo, eu não gostaria de ser esse Deus; a miséria do mundo partir-me-ia o coração.»"


J.-K.  Huysmans, Ao Arrepio, trad. Daniel Jonas: Maldoror, 2023, p. 89. 
 

Monday, November 6, 2023

PALAVRA

 


"E porque empreguei a palavra de guerra, e esta palavra de guerra não passa hoje de um simples ruído que as pessoas instruídas fazem com as suas bocas, porque agora, ao empregá-la, é uma palavra séria e carregada de sentido, saber-se-á que falo a sério e que não são vãos ruídos que faço com a minha boca."


René Daumal, A Guerra Santa, trad. António Barahona, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 41.

Sunday, November 5, 2023

AFLITOS

 


"O seu desprezo pela humanidade recrudesceu; finalmente chegou à conclusão de que o mundo era composto por sacripantas e imbecis. Decididamente não tinha nenhuma esperança de descobrir em outrem as mesmas aspirações e as mesmas aversões, nenhuma esperança de se associar a uma inteligência que se comprazesse, como a dele, numa estudiosa senescência, nenhuma esperança de se juntar a um espírito picuinhas e burilado como o seu, próprio de um escritor ou de um letrado."


J.-K.  Huysmans, Ao Arrepio, trad. Daniel Jonas: Maldoror, 2023, p. 12. 

Saturday, November 4, 2023

ÉPOCA


 

"Como ele próprio costumava notar, a natureza já tivera a sua época: ela esgotara definitivamente pela uniformidade enjoativa das suas paisagens e céus, a paciência condescendente dos homens refinados. No fundo, que vulgaridade de especialista confinado à sua tarefazita, que miudeza de lojista consagrado a um só produto para exclusão de todos os outros, que vitrina monótona de pradarias e de árvores, que agência banal de  montanhas e oceanos!"


J.-K.  Huysmans, Ao Arrepio, trad. Daniel Jonas: Maldoror, 2023, p. 29. 

Friday, November 3, 2023

VOZ

 


"Voz de vivo que fala com os mortos - a minha voz era sombria e soturna. Minhas mãos, primeiro erguidas sobre a fronte, e cingidas ao peito, depois, interpretavam a agonia despedaçadora, que me repassava as fibras do coração. A minha vida já não era um exclusivo do céu; era sentimento puro, que nasce em terra impura, e que mal posso dizer-vos, se na região da bem aventurança é pungente e doloroso como cá neste contínuo esperar e desesperar..."


Camilo Castelo Branco, Delitos de Mocidade, 4.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934, p. 148. 

Thursday, November 2, 2023

OS MORTOS

 



"A hora dos sepulcros ergueu-se da terra.
A estrela da manhã alveja os horizontes.
Finados! As lágrimas dos tristes não se cansam com o dia. Temo o riso aviltador dos homens. A horas mortas eu serei convosco."



Camilo Castelo Branco, Delitos de Mocidade, 4.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934, p. 158.

Wednesday, November 1, 2023

TODOS OS SANTOS

 


"Os deuses tinham feito o mundo como uma espécie de reservatório gigantesco de bens de consumo e de uso, que se podiam adquirir pelo trabalho; criaram homens para assegurar esse trabalho e assim fornecer-lhes tudo aquilo de que precisavam para a sua vida opulenta, feliz e sem preocupações: templos magníficos, banquetes diários, festas, vestuário sumptuoso, jóias, estátuas e imagens fascinantes que os representavam..."

 

Jean Bottéro, No princípio eram os deuses, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2006, pp. 60-61.