Friday, March 23, 2007

OFÍCIO DOS MORTOS - SUSPIROS EM DOIS FRAGMENTOS

I.
"Os mortos reluzem nas cavernas, os nossos mortos
de corpo fechado pela perfeição das lágrimas.
Seus órgãos sustidos têm o peso
das jóias.
Porque a infância é uma visão terrífica, hipnótica.
Um transe, os olhos que se tornam secretos, o extremo lunar da casa
- pedra queimada no centro
da terra."

II.
"A energia das lunações reflui nos nervos
do espelho,
e a queimadura brilha
a pique - flor pulmonar moldada, e em baixo
as estrelas pontiagudas
das mãos."


Herberto Helder, Ou o poema contínuo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 324-325.

Monday, March 19, 2007

LOUVOR DA OBSCURIDADE





"Conjugar a impessoalidade (universal) e a circunstância (singular) é o mistério das letras. É ele que constitui a relação literatura-vida. O discurso poético não é alheio ao que há de silêncio, de não-linguagem, na sua circunstância, e por isso há nele uma inflexão sem regra, misteriosa. Não se deve por isso acusá-lo de obscuridade - ser obscuro é a sua condição."


Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003, p. 80.

Thursday, March 15, 2007

A DOR DE SER DISTANTE (para T.)

"C'est presque l'invisible qui luit
au-dessus de la pente ailée;
il reste un peu d'une claire nuit
à ce jour en argent mêlée.

Vois, la lumière ne pèsent point
sur ces obéissants contours,
et, là-bas, ces hameaux, d'être loin,
quelqu'un les consoles toujours."



("É quase um invisível que brilha,
rasando a colina alada;
sobra ainda um pouco de noite,
numa liga de claridade prateada com o dia.

Vê, a luz nem sequer pesa
sobre os obedientes contornos de além
e, lá longe, há sempre alguém que consola
os lugarejos da dor de ser distante.")


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 172-173)

Saturday, March 10, 2007

IMAGEM DAS PALAVRAS

"Uma longa sucessão de cantos para alcançar
a convicção
e a exorbitância. As palavras são as imagens
das palavras. O texto não é mais eterno
do que o contexto.
Uma álea de cimento, uma figura nova
entre as áleas de terra.

Depois da estrofe banho-me de sol assim como
teogonis bebia pelo seu escudo. Desde há muitos séculos
o Ocidente
está obcecado pelo sentido do indivíduo
e o da solidão.
Uiva, em intenção do meu nome, o mastim, que eu
como parte integrante do meu ser observo
na iluminura"


Fiama Hasse Pais Brandão, "Obra Breve", Lisboa: Teorema, 1991, p. 224.

"Ribeira Negra"(1987), Júlio Resende - pormenor.

Sunday, March 4, 2007

RAZÃO BENDITA: SÍMBOLO DE GARANTIA



"Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme - e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!"

Antero de Quental, "A Fada Negra" in Poesia Completa, Lisboa: D. Quixote,2001, p. 332.