Thursday, February 28, 2008

QUE FAREI ?

"Que farei
quando já nenhum palheiro mendigar para a minha existência,
quando o feno arder em aldeias húmidas,
sem coroar a minha vida?
Que farei
quando a floresta crescer apenas na minha fantasia,
quando os regatos só já forem artérias vazias e lavadas?

Que farei
quando já das ervas não vier qualquer mensagem?
Que farei
quando estiver esquecido por todos, por todos...?"


Thomas Bernard, Na Terra e no Inferno, trad. José A. Palma Caetano, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 49

Sunday, February 24, 2008

PUXAR O MUNDO SOBRE MIM, COMO UM VÉU

(museu arqueológico, Istambul)


Todo-o-Mundo

Só, senta-se debaixo de uma macieira

O que me querem provar com o facto de se envelhecer? Não afaga igualmente este ar tépido e suave o homem como o rapaz de doze anos? E se me inclino para trás a olhar fixamente através das folhas para o céu - não é este sentimento de vertigem tão sedutor e terrível como sempre foi? Não sou eu este jovem, desde que esteja sozinho? Em todo este esplendor sinto igualmente como se brilhasse como as folhas das árvores, como a pedra cintilante no outeiro, e que toda a escuridão submergiu na orla do céu. Pode ser, vivi horas amargas - onde estão agora? Lá onde estão as noites duras de Inverno. Sinto-me como se fosse capaz de puxar o mundo sobre mim como um véu e de envolver-me nele, sentir tudo o que há nele, pressentir tudo, amar tudo. Quando em rapaz tinha esta sensação adormecia logo, talvez hoje seja de novo assim.



Hugo von Hofmannsthal, Jedermann (Todo-o-Mundo), trad. João Barrento, Lisboa: Livraria Estante Editora, 1986, p. 56

Thursday, February 21, 2008

LAMENTAÇÕES 3 E 4

1

"O silêncio é o que tememos,
Há um Resgate na Voz -
Mas Silêncio é Infinidade.
Não tem sequer uma face."


(Silence is all we dread.
There's Ranson in a Voice -
But Silence is Infinity.
Himself have not a face.)

2

"Suave como o massacre dos Sóis
Mortos pelos sabres do anoitecer."


(Soft as the massacre of Suns
By Evening's Sabres slain)


Emily Dickinson, 80 Poemas de Emily Dickinson, trad. Jorge de Sena, Lisboa: Ed. 70, 1979, pp. 142-145.

Tuesday, February 19, 2008

CIDADES VISÍVEIS, INFERNOS E OUTROS LUGARES CONFESSÁVEIS

"E já o Grão Kan folheava no seu atlas os mapas das cidades que nos ameaçam nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilónia, Yahoo, Butua, Brave New World.
Diz - Tudo é inútil, se o último local de desembarque tiver de ser a cidade infernal, e é lá no fundo que, numa espiral cada vez mais apertada, nos chupará a corrente.
E Polo: - o inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe um lugar."


Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, trad. José Colaço Barreiros, 10ª ed., Lisboa: Ed. Teorema, 2006, pp. 165-166.

Friday, February 15, 2008

POUR REAL LIFE DOWN ON ME



"Nós lamentamos os mortos, como se eles sentissem a morte, e os mortos estão em paz. Mas, a dor a nenhuma outra comparável é o sentimento incessante da destruição total, quando a nossa vida perde todo o sentido, quando o coração diz para consigo, tu tens de sucumbir e de ti não ficará qualquer rasto; não plantaste nenhuma flor, não construíste nenhuma cabana para poderes dizer: deixo um rasto na terra. Ai! e a alma pode estar sempre cheia de aspiração àquele que abriga o desalento!
Continuava à procura de algo, mas não ousava abrir os olhos diante das pessoas. Tinha momentos em que até o riso de uma criança eu temia."


Friedrich Hölderlin, Hipérion ou o Eremita da Grécia, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 64.

Wednesday, February 13, 2008

LAMENTAÇÕES 2


"J'ai perdu ma force et ma vie,
Et mes amis et ma gaieté;
j'ai perdu jusq'à la fierté
Qui faisait croire à mon génie.

Quand j'ai connu la Verité,
j'ai cru que c'était une amie;
Quand je l'ai comprise et sentie,
J'en étais déjà dégoûté.

Et pourtant elle est éternelle,
Et ceux qui se sont passés d'elle
Ici-bas ont tout ignoré.

Dieu parle, il faut qu'on lui réponde.
Le seul bien qui me reste au monde
Est d'avoir quelquefois pleuré."


Alfred de Musset, in Ripert, Pierre, Dictionnaire Anthologique de la Poésie Française, Paris: MaxiLivres, 1998, p. 159.

Sunday, February 10, 2008

LAMENTAÇÕES 1



"Trinta raios convergem para o meio
mas é o vazio do centro
que faz avançar o carro.

Molda-se a argila para fazer vasos,
mas é do vazio interno
que depende o seu uso.

Uma casa é fendida por portas e janelas,
é ainda o vazio
que a torna habitável.

O Ser dá possibilidades,
mas é pelo não ser que as utilizamos."


Lao Tse, Tao Te King, trad. António Melo, 6ª ed. Lisboa: Ed. Estampa, 2000, p. 23.

Saturday, February 9, 2008

OS OLHOS DAS CRIANÇAS



"Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo.
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

O amor, o medo, o ódio, a mesma morte.
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.

São terríveis.
Porque a vida é isto."


Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, in Poesia-III, Lisboa: Ed. 70, 1989, pp. 64-65.

Friday, February 8, 2008

ELOGIO DA DISTÂNCIA (LOB DER FERNE)


"Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço."


Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde - Antologia Poética, trad. João Barrento e Y. K. Centeno, 2ª ed., Lisboa: Ed. Cotovia, 1996, p. 13.