Monday, March 31, 2008
SEGUNDA-FEIRA DE PASCOELA
"Em verdade, ele viveu em tempos de trevas.
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: Eu sou
A luz, não mentem."
Heiner Müller, O Anjo do Desespero, trad. João Barrento. Lisboa: Relógio D'Água, p. 21.
Thursday, March 20, 2008
SEMANA SANTA 3
"Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviavam águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso."
Franz Kafka, Parábolas e outros Fragmentos, selecç. e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 89.
Wednesday, March 19, 2008
SEMANA SANTA 2
"- Sou, como direi?, sou um homem religioso.
- No entanto...
- Claro, não acredito em nada disso... nessas coisas... imortalidade da alma... Deus, o barroco Deus teológico... o bem comezinho, o mal comezinho... Detestável, tudo isso, as crenças e virtudes da baixa religiosidade.
- Talvez creia - disse eu - que vida e morte se abram uma para a outra, se alimentem, mutuamente. Que seja cada uma delas uma espécie de duplo da outra. Se animem e, por assim dizer, se justifiquem e signifiquem entre si.
- Quer exprimi-lo desse modo? - as mãos traçam subtilmente um gesto de irónica concessão. - Talvez seja isso... Aos vinte e cinco anos fui viajar. Estive em muitos países. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa que o amem, precisa amar. Um pouco repugnante, não? Mas pode-se amá-lo, assim repugnante."
Herberto Helder, Os Passos em Volta, 9ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 141.
Tuesday, March 18, 2008
SEMANA SANTA 1
"Se a palavra perdida perdida é, se a palavra proferida proferida é
Se a ensurdecida, emudecida palavra
Está emudecida, ensurdecida;
Inerte é a palavra emudecida, o Verbo ensurdecido,
o Verbo sem palavra, o Verbo dentro
Do mundo e para o mundo;
E fez-se luz nas trevas e
Contra o Verbo o mundo perturbado ainda rodopiava
Em torno do Verbo silencioso.
Ó meu povo, que fiz eu de ti."
(...)
Rogará a irmã velada por
Aqueles que caminham nas trevas, que te escolheram
e se te opõem,
Aqueles que se dilaceram no corno de entre estação e
Estação, tempo e tempo, entre a
Hora e a Hora, a palavra e a palavra, o poder e o poder,
Aqueles que esperam
Nas trevas? Rogará a irmã velada
Pelas crianças que junto aos portais
Se recusam a partir e não sabem rezar;
Rogará por aqueles que escolheram e se opõem
Ó meu povo, que fiz eu de ti."
T. S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, pp. 21-23.
Sunday, March 16, 2008
MAR DA TRANQUILIDADE
"Todo o meu ser se cala e escuta, quando o meigo sopro do ar me roça o peito. Perdido na azul distância, ergo muitas vezes o olhar para o éter e mergulho-o no mar sagrado, e é como se um espírito familiar me abrisse os braços, como se a dor da solidão se diluisse na vida divina."
Friedrich Hölderlin, Hipérion ou o Eremita da Grécia, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 23.
Sunday, March 9, 2008
AND DEATH SHALL HAVE NO DOMINION
"E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio."
Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, pp. 39-39.
Thursday, March 6, 2008
LONG WAY TO RUIN
"Estou cansado...
Com as árvores entabulei conversas.
Com as ovelhas sofri os horrores da seca.
Com os pássaros cantei nas florestas.
Amei as raparigas da aldeia.
Ergui os olhos para o Sol.
Vi o mar.
Trabalhei com o oleiro.
Engoli o pó da estrada.
Vi as flores da melancolia no campo do meu pai.
Vi a morte nos olhos do meu amigo.
Estendi a mão para as almas dos afogados.
Estou cansado..."
Thomas Bernard, Na Terra e no Inferno, trad. José A. Palma Caetano, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 181.
Monday, March 3, 2008
TEMPOS DE MORTE, ESPERANÇA DE VIDA
(museu arqueológico, Istambul)
"A morte é um mal. Assim os deuses
o entendem. Se o não fosse,
também eles morreriam."
Safo, 67 (201 L-P), trad. Albano Martins, in O Essencial de Alceu e Safo, Lisboa: IN-CM, 1996, p. 56.
Saturday, March 1, 2008
IMPRESSÕES A POSITIVO
"os sons repartem-se pelas coisas, ficam sobre elas a escondê-las. O mundo é um grande lugar subtraído.
Está calada. Todos os sons frente ao seu olhar calado.
- não há alegria na criação de personagens. Digo: é contra a alegria: escrevo as palavras que prolongam a ausência, escrevo para continuar a morrer, para não acabar de morrer: eis a eternidade: a da voz que me usa e se distancia de mim. Nada percebo do que diz: sou o sítio de uma voz que me exclui. De vez em quando, esqueço-me. De vez em quando, lembro-me. Só a dor é vigilante. E o sono que me olha."
Está calada. Todos os sons frente ao seu olhar calado.
- não há alegria na criação de personagens. Digo: é contra a alegria: escrevo as palavras que prolongam a ausência, escrevo para continuar a morrer, para não acabar de morrer: eis a eternidade: a da voz que me usa e se distancia de mim. Nada percebo do que diz: sou o sítio de uma voz que me exclui. De vez em quando, esqueço-me. De vez em quando, lembro-me. Só a dor é vigilante. E o sono que me olha."
Rui Nunes, Grito, 2ª ed., Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 42.
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