Saturday, April 30, 2016

ENERGIAS



"Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a causa dos seguintes erros:
1. Que o Homem possui dois princípios reais de existência: um Corpo e uma Alma. 
2. Que a Energia, chamada o Mal, provém apenas do Corpo e que a Razão, chamada o Bem, provém apenas da Alma.
3. Que Deus há-de atormentar o Homem na Eternidade por ter seguido as suas Energias."


William Blake, A União do Céu e do Inferno, trad. João Ferreira Duarte, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 21. 

Friday, April 29, 2016

RUIM FIGURA



"A quem não basta a vida, a quem procura
as luzes escondidas de outra noite
deixo dedicatória e pronta fuga
da treva que nos ronda até à morte. 

Mas já não sei mentir. Ruim figura. 
Durou o nosso enredo uma só noite.
Teu corpo eu aprendi nessas escuras
sombras a que não chega nem a morte. 

A quem não basta a vida, a quem engana
essa réstea de luz dentro da noite
deixo dedicatória e abro os olhos:
que tudo nos é dado de repente. 

E num feixe de sombras imprecisas
arde o que resta a quem não basta a vida."


Luís Filipe Castro Mendes, "Modos de Música", in Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 269. 

Thursday, April 28, 2016

TUMULTO



"Nós próprios experimentamos o peso súbito de uma civilização que no entanto nos orgulha muito. Temos sede de uma outra verdade, e atribuímos a nossa fadiga a um qualquer erro ligado ao privilégio da razão. Somos levados a depreciar os valores derivados do trabalho, que os interditos simbolizam, de ora em diante racionalizados mas análogos aos que eles começaram por ser: pondo regras às forças sexuais, limitando as desordens que anunciam o poder da morte; numa palavra, opondo-nos ao tumulto das paixões que se liberta da animalidade sem freio."

Georges Bataille, O Nascimento da Arte, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2015, p. 96. 

Wednesday, April 27, 2016

PRAGAL



"Minha vida é um pragal, 
flor que toco esfolha-se;
que em meu caminho fatal
alguém vai semeando o mal
só para que eu o recolha."


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 127. 

Tuesday, April 26, 2016

ASSOMO



"Debrucei-me nos fundos precipícios
que há na terra e no céu, 
e seu fim avistei, com os olhos
ou com o pensamento. 

Mas, ai!, de um coração cheguei ao abismo
e inclinei-me um momento, 
e minha alma e meus olhos se turvaram:
tão fundo era e tão negro!"


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 111. 

ESPAÇOS



"«Deitava-me ali numa rede, a espreitar por entre os ramos para os espaços infinitos mais além, imaginando-me no deserto como Saint-Exupéry a cavalgar sobre o seu planeta, vagueando entre as estrelas...» Claramente inspirado pelo Principezinho, continua, falando sobre nuvens: «Quão numerosas e inesperadas são as possibilidades que elas sugerem! Agora formam misteriosas catedrais - quase de certeza as catedrais de Saint-Exupéry»"

Philip Jodidio, Oscar Niemeyer, Colónia: Taschen, 2016, p. 8. 

Thursday, April 21, 2016

BUT BEHOLD, WE WILL WATCH THEM FALL



"Gonzalo - Os Céus o guardam destas feras! Porque ele, seguramente, está na ilha."



William Shakespeare, A Tempestade, trad. rev. João Grave, Porto: Lello & Irmão, s.d., p. 62. 

Wednesday, April 20, 2016

PSEUDOS



"Sócrates - Ora, o que é verdadeiro é liso e divino, e mora no alto, entre os deuses, enquanto o que é falso mora cá em baixo, entre os homens comuns, é rude e semelhante ao bode; pois é aqui, na vida trágica, que mais se encontram os mitos e as falsidades."

Platão, Crátilo, 408c, trad. Maria José Figueiredo, Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 78. 

Tuesday, April 19, 2016

HABITÁCULO



"senhor / constrói a minha casa aqui
onde nada dura onde o fruto cessa o aroma
onde a ave cega redesenha o seu caminho
e o amor um tentáculo de algas daninhas
e as folhagens grudadas na pele dum corpo
de divino carvão

senhor / o meu inimigo agora é visível
e ele tem os olhos moídos e nervosos
as sandálias inglórias e espessas de lama 
ele vem de uma longa caminhada
ele não precisa de descanso
ele recebe afeto do vil metal
ele é comprado e isto basta

senhor / o meu corpo não requer apenas abrigo
requer o brilho abatido de uma água fria
uma tarde promíscua e rasgada de sol
para que não praguejem contra a ternura
para que não acendam fogueiras no irracional

a minha casa será aqui onde me deitarei
por mais este dia"


Flávio Caamaña, Aquedutos, São Paulo: Patuá, 2016, p. 40. 

Sunday, April 17, 2016

SACRUM



"se você não tem um segredo
não beba este copo de leite
não entre nesta lista dos deuses
não acenda o fósforo do incêndio

se você não tem um segredo
não oferte tudo o que tem
faça por merecer se já merece
deixe o jumento arriar a cabeça

se você não tem um segredo
um pequeno prego que seja
escondido na dobra do seio

um devaneio na curva do dedo
um pente abeirado no púbis
uma cólica na axila esquerda"


Flávio Caamaña, Aquedutos, São Paulo: Patuá, 2016, p. 53. 

Friday, April 15, 2016

APREENDER



"Na verdade, o objecto visível é apreendido por um órgão, enquanto a palavra o é por outro. Logo, a palavra não indica a maioria dos objectos reais, tal como nenhum deles revela a natureza dos outros. Ora, tendo sido estas as aporias encontradas em Górgias, desaparece, com base nelas, todo o critério de verdade; de facto, nem existindo o ser, nem sendo possível conhecê-lo, nem sendo ele passível de ser dado a conhecer a outrem, não poderá existir nenhum critério". 

Górgias, "Sobre o Não-Ser", in Testemunhos e Fragmentos, trad. Manuel Barbosa e Inês Ornellas e Castro, Lisboa: Colibri, 1993, p. 35. 

Thursday, April 14, 2016

PHYSIS



"Tanto a defesa como a acusação não estabelecem um decreto sobre a morte. Com efeito, a Natureza, no dia em que surgiu, condenou à morte, com um voto claro, todos os mortais."

Górgias, "Defesa de Palamedes", in Testemunhos e Fragmentos, trad. Manuel Barbosa e Inês Ornellas e Castro, Lisboa: Colibri, 1993, p. 50. 

Wednesday, April 13, 2016

PERFURO


"Mais tarde, volveu o olhar para longe dos ciganos e dos guardas, alheio à sua presença; depois aproximou-se do homem de Plevlje e disse quase confidencialmente, numa voz tersa e mansa, como se falasse para um amigo:
- Por amor de Deus, faz com que me perfurem bem o corpo para que não sofra como um cão."


Ivo Andric, A Ponte Sobre o Drina, trad. Fernando Moreira Ferreira e H. Silva Letra, Lisboa: Publicações europa-América, 1962, p. 48. 

Monday, April 11, 2016

RESTER



"M. de O. - On cherche à toucher au mystère, mais nous ne pouvons pas aller au-delá. Vraiment, la réalité meurt et, pour subsister, il faut qu'elle revienne sous la forme d'un mythe. Cela, oui, reste."

Antoine De Baecque, Jacques Parsi, Conversations avec Manoel de Oliveira, Paris: Cahiers du Cinéma, 1996, p. 55. 

Sunday, April 10, 2016

SENTAREI




"Quando me sentarei ao sol
Despido
Líquen vivendo
Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem
Mão leve sobre a fronte
Da doença?

Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?"


Daniel Faria, "Explicações das Árvores e de Outros Animais", in Poesia, ed. Vera Vouga, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 111. 

Saturday, April 9, 2016

AUTOUR




"M. de O.  - Il y a des choses que nous écartons: elles nous semblent compliquées et dangereuses. Nous existons avec tout ce que est autour de nous, qui existe autor de nous et que nous ne voyons pas."


Antoine De Baecque, Jacques Parsi, Conversations avec Manoel de Oliveira, Paris: Cahiers du Cinéma, 1996, p. 54. 

Friday, April 8, 2016

AGON



"M. de O. - L'agonie commence au moment où nous naissons. C'est une lutte constante, permanente. Le mot «agonie» nous vient des Grecs. Il s'applique à la lutte et aux athlètes. Dès que nous venons à la vie, la mort nous accompagne tout le temps pour ne pas laisser passer la moindre occasion. Elle est terrible, impitoyable."


Antoine De Baecque, Jacques Parsi, Conversations avec Manoel de Oliveira, Paris: Cahiers du Cinéma, 1996, p. 36. 

Wednesday, April 6, 2016

SENSÍVEL



"Seja onde for, implicam o que a arte teve constantemente por objectivo: a criação de uma realidade sensível que modifica o mundo no sentido de uma resposta ao desejo de prodígio implícito à essência do ser humano."

Georges Bataille, O Nascimento da Arte, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2015, p. 49. 

Tuesday, April 5, 2016

EXUBERÂNCIA


"Se a vida não tivesse levado estes homens a um nível de plena exuberância, de alegria, eles não teriam conseguido representá-la com esta força decisiva. Mas é sobretudo claro aos nossos olhos que ela os agitava humanamente; esta visão da animalidade é humana naquilo que a vida, por ela encarnada, ali se transfigura; é bela, e por esta razão soberana para lá da imaginável miséria."

Georges Bataille, O Nascimento da Arte, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2015, p. 34. 

Monday, April 4, 2016

MEDIR



"O prestígio que se liga, pensemos nós o que pensarmos, à revelação do inesperado. É sobretudo neste sentido que falamos do milagre de Lascaux; porque em Lascaux a humanidade juvenil mediu pela primeira vez a extensão da sua riqueza. Da sua riqueza, isto é, do poder que tinha de chegar ao inesperado, ao maravilhoso."

Georges Bataille, O Nascimento da Arte, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2015, p. 21. 

Sunday, April 3, 2016

FURTIVO



"Entra furtivamente
a luz
surpreende o sonho inda imerso                   
                                  na carne."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 143.

Saturday, April 2, 2016

INFEROS



"Sente-se que aquela região deve ser habitada por espíritos. Pensa-se apenas em coisas leves, onduladas, transparentes: em linhas puras, em sensações simples - e a nós, homens inquietos e nervosos, corroídos pelas aflições da realidade e pelas dores do trabalho, a primeira ideia que nos vem é a de esquecer, ficar ali esperando a vida, como a esperavam as antigas almas dos poemas de Homero nas serenas e nubladas regiões inferiores!"


Eça de Queiroz, O Egipto - Notas de Viagem, Lisboa: Livros do Brasil, 2000, p. 26. 

RESPLENDOR



"O mar, o céu, os montes, a luz, penetram-nos, vivem em nós, embalam-se e resplandecem na nossa alma."

Eça de Queiroz, O Egipto - Notas de Viagem, Lisboa: Livros do Brasil, 2000, p. 26.