Sunday, May 23, 2021

ARTE POÉTICA

 



"Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto 
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
Um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha, 
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte,
e depois entrar num canteiro do poema, 
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atira ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!"


Rosa Alice Branco, Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto: Campo das Letras, 2001, pp. 42-43. 

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