Saturday, May 29, 2021

LUZES






"Todo o mito é um padrão enriquecido, 
uma preposição de duas faces, 
que permite ao seu operador dizer uma coisa e significar outra, viver uma vida dupla.
Daí a noção no pensamento grego arcaico de que todos os poetas são mentirosos. 
E das mentiras verdadeiras da poesia
gotejou uma pergunta. 

De verdade, o que é que liga palavras e coisas?

Não muito, decidiu o meu marido
e prosseguiu a utilizar a linguagem
do modo que Homero diz que os deuses a utilizam. 
Todas as palavras humanas são conhecidas dos deuses mas têm para eles outros significados
além dos nossos. 
Eles pressionam o interruptor a seu bel-prazer.

O meu marido mentiu sobre todas as coisas. 
Dinheiro, reuniões, amantes,
o local de nascimento dos pais, 
a loja onde comprava as camisas, a ortografia do seu próprio nome.
Mentia quando não era preciso mentir. 
Mentia quando não era sequer conveniente. 
Mentia quando sabia que sabiam que estava a mentir.

Mentia quando isso lhes partia o coração. 

O meu coração. O coração dela. Muitas vezes me pergunto o que lhe aconteceu. 

A primeira.

Há algo de puramente-aguçado e incandescente acerca da primeira infidelidade num casamento.

Táxis para a frente e para trás.

Lágrimas.

Fendas na parede onde é esmurrada.

Luzes acesas até altas horas da noite. 

Não posso viver sem ela. 

Ela, esta palavra que explode. 

Luzes ainda acesas de manhã."



Anne Carson, A beleza do marido, 2.ª ed., trad. Tatiana Faia, Lisboa: não (edições), 2020, pp. 43-45. 

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