"Há susto, há pesar,
há tudo aquilo que faz de ti um animal quase belo.
Tão inactivo, levado pelas águas escuras,
sozinho estás sem olhar a quem,
a não ser que te chegue o apetite,
a atenção aos estalos da morte.
No canto lamacento, encolhes o corpo frio,
até que alguém tenha sede.
Aí, a tua cauda subtil ameaça movimento.
Os olhos húmidos de ternura e a emergência
criam uma estranha fisionomia.
Deploras a solidão que inventaste,
no fundo, não queres matar.
Se possível, apenas morder um pouco as carnações.
Mas a carcaça gira onde acaba a tua amargura."
Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 49.