Tuesday, October 31, 2023

FUGA

 



"Ela estendeu o braço, apagou a luz e ficou deitada de costas. Sem almofada. A mamã não a deixava usar almofada.
Pensou em diabretes e quejandos e em bruxas.
(eu sou uma bruxa a mamã é a meretriz do diabo)
a cavalgar na noite, a azedar o leite, a entornar batedeiras de manteiga, a empestar as culturas enquanto Elas se acotovelavam nas suas casas, cujas portas estavam assinaladas com um X.
Fechou os olhos, dormiu e sonhou com pedras vivas, enormes, que atravessavam a noite, à procura da mamã, à procura Delas. Elas tentavam fugir, tentavam esconder-se. Mas o rochedo não as escondia; a árvore morta não as abrigava."


Stephen King, Carrie, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Bertrand Editora/col. 11X17, 2017, p. 88.

Monday, October 30, 2023

SÓS

 



"Entrou no armário de cabeça, chocou com a parede do fundo e caiu no chão, meio atordoada. A porta fechou-se e a chave girou na fechadura.
Ficou a sós com o Deus irado da mamã."


Stephen King, Carrie, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Bertrand Editora/col. 11X17, 2017, p. 66.

Sunday, October 29, 2023

AGÓNICO

 


"Em cima de uma pequena mesa de jogo, havia um candeeiro e um monte de panfletos. O de cima mostrava um pecador (cujo estado de espírito estava bem patente na sua expressão agónica) a tentar enfiar-se debaixo de um grande penedo. O título era bastante esclarecedor: Nem o rochedo o esconderá  NESSE DIA!"

 

Stephen King, Carrie, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Bertrand Editora/col. 11X17, 2017, p. 48. 

Saturday, October 28, 2023

MUDANÇA DA HORA

 





"Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem."


Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 180.

Friday, October 27, 2023

ABERTURA

 




"Os dias de chuva são propícios à escrita.
Ouço o tamborilar sobre um ruído surdo,
uma espécie de onda vinda do fundo
dos tempos. Serena, a linha do mar
por horizonte, abre ao espaço uma coluna
de silêncio. Contra ela todos os argumentos
e incertezas se esboroam e tudo converge
no sentido de ser limpa a página do livro
por onde se lê o que nos foi sendo lido."


Flor Campino, Sem arco nem flecha, Poética Editora/Sabaria Editora, 2023, p.68.

Thursday, October 26, 2023

BUSCA

 



"Estava a Morte, ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bacante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

- Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria),

Eu não busco o teu corpo... Era um troféu
Glorioso de mais... Busco a tua alma -
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»"


Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 146.

Wednesday, October 25, 2023

REFÚGIO

 



"Que belas são as manhãs do mundo.
Nelas se refugia tudo o que, expectante, 
exclui qualquer sentimento de possa.
Antes algo de indizível, um canto
advindo de um qualquer ponto invisível
do horizonte. Inefável carícia na alma
e arrepio simultâneo de inesperada
revelação, tudo sendo primeira vez, 
renascer sucessivo, esplendor de orvalho
perfumado de alba e luz, lágrima feliz. 
À beira-mar um casal caminha. Um cão
e uma criança correm, salpicam o ar
de esfusiante alegria. E é a primeira
das primeiras manhãs do mundo."


Flor Campino, Sem arco nem flecha, Poética Editora/Sabaria Editora, 2023, p. 82. 

Monday, October 23, 2023

FULCRO DA ATENÇÃO

 



"Precisa de espaço o passado, porque nele
se procura, muitas vezes, qualquer coisa
que não se sabe que seja. Mas falta, como
falta ao bibe da criança o berlinde,
a coisinha cuja falha produz ansiedade.
Assim, a velhice revolve bolsos e gavetas.
E senta-se por fim a olhar para a biqueira
do calçado gasto, como gasta tem a memória.

Uma visão remota: certa tarde
de praia, nada acalma a menina que
nos braços do pai se contorce e grita.
Lembra-se a mãe de lhe meter na mão
prendas do areal. A cada uma, redobrado
pranto. No auge da inquietação, vê
uma pluminha branca e, por instinto,
sabe que acertou: ao contacto da seda
tacteiam-na os dedos, cerram-se
sobre ela, e logo adormece. Onde? Em
que passado logrou reconhecer o que
lhe faltava? Talvez noutra vida, tenha sido
o anjo que perdera aquela pluma. Ou nesta,
fulcro de atenção daquele que a protege."


Flor Campino, Sem arco nem flecha, Poética Editora/Sabaria Editora, 2023, p. 47.

Sunday, October 22, 2023

DUMIUM / DOMINICUS

 


"Na verdade seria por demais iníquo e vergonhoso que aqueles que são pagãos e ignoram a fé de Cristo, porque prestam culto aos ídolos dos demónios cultuem o dia de Júpiter ou de qualquer outro demónio, e se abstenham de trabalhos - quando é sabido que nunca os demónios criaram qualquer dia ou ele lhes pertence - e nós, que adoramos o verdadeiro Deus e cremos que o Filho de Deus ressuscitou dos mortos, quanto ao dia da sua ressurreição, ou seja, o domingo, não o respeitássemos minimamente! Não façais, pois, injúria à ressurreição do Senhor, mas honrai-a e cultuai-a com reverência, pela esperança que temos relativamente a ela."

 

Martinho de Braga, Instrução Pastoral sobre Superstições Populares (De Correctione Rusticorum), ed. e trad. Aires A. Nascimento, Lisboa: Edições Cosmos, 1997, p. 125. 

Saturday, October 21, 2023

PESO

 



"A angústia que sobre nós pesa
tece em redor o casulo
de malha cerrada que já
estrangula. Da noite de breu
chega um pio agoirento
e apaga-se no espelho a última
centelha de nenhuma imagem."


Flor Campino, Sem arco nem flecha, Poética Editora/Sabaria Editora, 2023, p. 14.

Friday, October 20, 2023

FUGA


"Na manhã do quarto dia, vi-me no meio duma planície arenosa exposta a Sul; estava agora sentado no meio duns rochedos, ao sol, que agora gostava de contemplar, depois de ter estado tantos anos sem para ele olhar. Em silêncio, deixei o coração cevar-se no seu próprio desespero. De súbito, senti um leve ruído perpassar junto a mim. Receoso, olhei em volta e preparei-me para fugir. Não vi ninguém. Mas, na areia batida pelo sol, deslizou uma sombra semelhante à minha que passando por ali sozinha, dava a impressão de ter fugido ao dono."


Adalberto von Chamisso, "A maravilhosa história de Pedro Schlemihl", in Contos dos Homens sem Sombra, trad. Manuel João Ramos, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 81. 

Thursday, October 19, 2023

DO TEMPO

 



"Por onde andarão as grandes trovoadas de outros tempos, que me atiravam, lívida e apavorada, para os braços protetores da família? O céu de chumbo abria-se em luz, rebentava logo a seguir com fragor, seria o fim do mundo, aquilo? As trovoadas de agora são rápidas e não merecem o meu terror. Não passam de mais uma música de fundo, barulhenta, como tantas outras, há sempre coisas mais importantes em primeiro plano."


Maria Judite de Carvalho, "Este Tempo", in Obras Completas, vol. V, Lisboa: Minotauro, 2019, p. 144. 

DERRADEIRA

 


"Ó Mina, tanto quanto outrora chorei o ter-te perdido, assim choro hoje o ter-te esquecido de todo. Terei assim envelhecido tanto? Ó razão cruel, dá-me só mais uma pulsação daquele tempo, um segundo de sonho!... Mas não! Estou só, no oceano imenso e vazio das tuas ondas amargas e o champanhe do ano onze deixou há muito de espumar na derradeira taça."


Adalberto von Chamisso, "A maravilhosa história de Pedro Schlemihl", in Contos dos Homens sem Sombra, trad. Manuel João Ramos, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 56. 

Monday, October 16, 2023

ESPLENDOROSO

 




"Tirou então da algibeira e meteu-me nas mãos uma bolsa de marroquim com grossos cordões, muito sólidos, e entregou-ma. Meti a mão na bolsa e tirei dez moedas de ouro, seguidas de outras dez e de mais dez e ainda mais dez, posto o que lhe estendi a mão:
- Aperte aí! Negócio fechado! Fico com a bolsa em troca da sombra.
Ele apertou-me a mão e, sem mais hesitações, ajoelhou-se na minha frente. Pude então ver a habilidade com que recolhia do chão a minha sombra, a começar pela cabeça e a acabar nos pés, erguendo-se, enrolando-a e metendo-a finalmente na algibeira. Feito isto, inclinou-se na minha frente e desapareceu atrás das roseiras. Eu, por meu lado, agarrei os cordões da bolsa; o sol brilhava, esplendoroso, à minha volta e eu não conseguia tomar perfeita consciência do que se passava comigo."


Adalberto von Chamisso, "A maravilhosa história de Pedro Schlemihl", in Contos dos Homens sem Sombra, trad. Manuel João Ramos, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 39.

Sunday, October 15, 2023

CONSOLATA

 


"Enfim, só há um remédio nesta tempestade: confiar na misericórdia do Senhor, o qual, quando menos se espera, com uma só palavra ou servindo-se de algum acaso, levanta o cerco num instante: e a alma, de tão consolada e inundada de sol, fica que até parece nunca ter tido nuvens."


Santa Teresa de Ávila, "Moradas Sextas", cap. I, in Moradas do Castelo Interior, trad. Manuel de Lucena, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 110. 

ILUMINURA (para a memória da Divina Piper Laurie)

 


"O mal (o bem) é que todos morremos
demasiado cedo.
A morte é algo que acontece sempre
aos outros e antes do tempo.
Não há nada, de facto, que a apague.
Quando se chega lá,
já é demasiado tarde -
no hospital,
na maca,
inadvertidamente ao acaso
de um lençol levantado.
A morte é a morte,
sempre tautológica.
Nela, os vivos (os mortos) sempre se equivalem
e a morte, a ela, nada há
que a figure verdadeiramente.
Também quem este poema escreveu
já morreu.
Este é mesmo o poema do seu enterro.
Felizmente que era belga.
Contentava-se com pouco:
um pouco de sol e de silêncio
na Grande Place, em Bruxelas,
com os vidros das janelas
a rebrilhar, por dentro.
Morre-se, mas a vida também é bela.
Mesmo em Bruxelas.
Ainda vale a pena vivê-la
e escrever mesmo, de vez em quando,
um poema. Como este.
Um poema que se dispa
como um sobretudo
e como um rio corra,
indiferente a tudo,
incontido e limpo."


Théodore Fraenckel [?], Iluminuras, Lisboa: douda correria, 2018.

Saturday, October 14, 2023

HOW FAST (para a memória de Louise Glück)

 



"As folhas mortas incendeiam-se rápido.
E ardem rápido; num ápice,
passam de alguma coisa a nada.

Meio-dia- O céu está gélido, azul;
debaixo do fogo há terra cinzenta.

Quão rápido tudo se vai, quão rápido o fumo se dissipa.
E, onde havia o monte de folhas,
um vazio que de súbito parece vasto.

Um rapaz espreita do outro lado da estrada.
Fica parado muito tempo, vendo as folhas a arder.
Talvez assim saibamos quando a Terra estiver morta -
irá pegar fogo."


Louise Glück, Uma Vida de Aldeia, trad. Frederico Pedreira, Lisboa: Relógio D'Água, 2021, p. 135.

Friday, October 13, 2023

PRISÃO

 


"Coro - Vimos agora aqui junto de vós para dizer qualquer coisa em nosso abono. É que não há quem não diga o pior possível do sexo fraco: que somos a ruína completa da humanidade, as culpadas de tudo, das discórdias, das questões, de divergências terríveis, do sofrimento, da guerra. Ora bem: se somos uma peste, porque é que vocês se casam connosco, se de facto somos mesmo uma peste? Porque é que nos proíbem de sair, de pôr o nariz fora e em vez disso se empenham em guardar a peste com tanto cuidado? Mal a pobre mulher sai, e vocês descobrem que ela está fora de portas, ficam completamente doidos; quando deviam era dar graças e esfregar as mãos de contentes por saberem que realmente a peste se tinha ido embora e já não a encontrarem lá dentro. Se passamos a noite em casa de alguém, cansadas de uma festa, não há quem não venha rondar os leitos, à procura dessa peste; e se, por vergonha, nos metemos para dentro, ainda mais desejosos ficam todos de verem a peste debruçar-se outra vez. Em resumo: é evidente que nós somos muito melhores que vocês. E pode-se tirar a prova."

 

Aristófanes, As Mulheres que celebram as Tesmofórias, trad. Maria de Fátima Silva, Lisboa: Edições 70, 2001, p. 99. 

Tuesday, October 10, 2023

SUPERAÇÃO

 




"Contra o stress, angústia, ciúme, depressão
é recomendada a contemplação das nuvens.
As orlas com que à tarde fulguram
em dourado rubor superam Patinir e Tiepolo.
As mais fugazes de todas as obras-primas,
mais difíceis de contar que um bando de renas,
não acabam em nenhum museu.

Arqueologia das nuvens - uma ciência
para os anjos. Claro, sem as nuvens
morria tudo o que vive. São inventoras:
sem elas nem fogo nem luz eléctrica.
Sim, em casos de cansaço, raiva
e desespero recomenda-se
voltar os olhos para o céu."


Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 173.

Monday, October 9, 2023

O FRUTO DOS JARDINS

 



"É terrível como acaba o ano,
Com vinho dourado e o fruto dos jardins.
Em redor, silenciam-se, maravilhosas, as florestas,
Que são as companheiras do solitário.

Diz então o camponês: que bom!
E vós, sinos da tarde, longos e suaves,
Dai ainda uma coragem alegre para o fim
O traço das aves em voo saúda a viagem.

É o tempo do amor.
No barco que desce o rio azul,
Com que beleza uma imagem se liga a outra imagem.
Tudo submerge em sossego e silêncio."


Georg Trakl, Poemas, trad. e pref. António de Castro Caeiro, Lisboa: Abysmo, 2019, p. 57.

Sunday, October 8, 2023

CONTURBADA

 



"«O que são os impostos?», quis saber a criança, interessada, embora menos do que antes.
    O pai explicou. Deu pormenores. De impostos sabia ele, infelizmente, umas coisas. Mas depois, quando a criança voltou ao pequeno écran, ficou a pensar naquela conturbada região do globo. É que a frase trouxe-lhe à memória outra, do passado, que era este oásis de paz num mundo conturbado. Porque há palavras que agradam a quem fala, a quem escreve, nada a fazer."



Maria Judite de Carvalho, "Este Tempo", in Obras Completas, vol. V, Lisboa: Minotauro, 2019, p. 93.

Saturday, October 7, 2023

ANIVERSÁRIO

 



"Abre as mãos para a brisa
e sobre os ramos tenros
depõe um ósculo de afectos
Não acordes o seu sono verde
respira apenas
a tépida apojadura
como se tivesses renascido
no ciclo da primavera
Recordarás depois ao meio dia
o cego milagre."


Carlos Seixo, Fim de Tarde e Outros Devaneios, Barcelona: autografía editorial, 2023, p. 107.

Friday, October 6, 2023

E TEMPO

 


"Sim, e tempo? E tempo para nos desligarmos da corrente contínua que nos arrasta, para pararmos um pouco, para olharmos em volta com um bocadinho de atenção, para escutarmos o mundo, para esquecermos o trabalho que amanhã - ou daqui por pouco - teremos de recomeçar, para, enfim, nos sentarmos naquela cadeira tão confortável, mesmo em frente do quadro, a ouvir no gira-discos, que tem um som mais-que-perfeito, aquele disco tão belo que nos ofereceram? E tempo para apreciar o conforto da cadeira, a beleza da música e do quadro, a qualidade do som?"

Maria Judite de Carvalho, "Este Tempo", in Obras Completas, vol. V, Lisboa: Minotauro, 2019, p. 38. 

Thursday, October 5, 2023

DE AMORE

 



"Entrou no que chama os domínios
de Deus
sem declarar ser hóspede,
sem sequer o grão de pó que se infiltra
na mente
em exaltação desértica.

Sem sentir essa penugem que dizem ser dos anjos
a aflorar-lhe
a lâmina
dos seus lábios de insecto.

Ouvira os recitais compassivos
das mulheres domésticas, a prédica acabrunhada
dos teólogos,
não se negara nunca à beleza
dos girassóis indefesos nos seus campos
de indústria.

Entrou nos recintos de Deus
um pouco desabrigado, mas de unhas limpas
e de peito aberto ao que viesse.

De Deus, porque assim lhe disseram os amigos,
porque não eram só as sobras do silêncio,
o chão tão devoluto,
o trabalho arrumado a um canto

Era a sua cabeça em cima duma tábua,
e a sua vida ao lado:
um pequeno embrulho indefinido
a marcar presença
nesses labirintos avessos
aos francos, directos, respiradouros
da morte.

Algumas destas coisas que falamos podem ser eternas,
escrevem-lhe os autores.
A própria flor aberta pela mão do sol
enalteceu-lhe a vista.

Agora, parado, nesses aposentos
de estátuas, ideias e milagres, de crises roedoras
como animais iníquos que se alimentam
do medo,
o amoroso pasma, sente o peso dos tempos
e reza o que lhe resta do sexo,
espesso,
com a solitária mão, mecânica,
fechada."


Armando Silva Carvalho, De Amore, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 19-20.

Monday, October 2, 2023

MONTE CÓRDOVA

 



"Com suas mãos, fabricara Angélica um cruzeiro tosco defronte da capela, e pusera ao lado um banquinho de pedra bruta, sobre duas que lhe serviam de pedestais. Ora dizia-se que, por desoras, a bruxa saía, a evocar dali o demónio, e o colhia às mãos com conjúrios e sortilégios, e o amarrava à cruz, de modo que todas as suas curas prosperavam enquanto o cão tinhoso estivesse preso. Um padre bem- intencionado daqueles sítios foi-lhe perguntar se, de feito, ela conseguia ter o diabo em prisão. Angélica, mais compadecida que pasmada da pergunta, disse ao padre:
- Se Deus omnipotente o deixa em liberdade, como hei-de eu, pobre pecadora, prendê-lo?"

Camilo Castelo Branco, A Bruxa de Monte Córdova, Lisboa: Círculo de Leitores, 1982, p. 180.

Sunday, October 1, 2023

CHAVES

 


"A caridade deu-me a chave da minha vocação. Compreendi que se a Igreja tinha um corpo composto de vários membros, o mais necessário, o mais nobre de todos não lhe faltava: compreendi que a Igreja tinha um coração, e que esse coração estava ardendo de amor. Compreendi que só o Amor fazia agir os membros da Igreja; que se o Amor se apagasse, os Apóstolos já não anunciariam o Evangelho, os mártires recusar-se-iam a derramar o seu sangue... Compreendi que o Amor encerra todas as Vocações, que o Amor é tudo, que abarca todos os tempos e todos os lugares... numa palavra, que é Eterno!... Então, num transporte de alegria delirante, exclamei:«Ó Jesus, meu Amor! encontrei finalmente a minha vocação: a minha vocação é o Amor!..."

Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, História de uma Alma, Paço de Arcos: Edições do Carmelo, 1996, p. 250.