Wednesday, April 2, 2008
REGRESSANDO À ELUCIDAÇÃO SENSÍVEL
"- Um móvel com olhos, a isso não chama também um voyeur?
- Como queira. Todos os seres com dois dedos de cabeça são voyeurs, Harrison. Não sabia?
- Não. Devo ter entrado em demasiados filmes de acção. Confesso que sinto o meu velho sexo a agitar-se.
- Não duvido. Por que não vai falar àquela mulher, uma vez que a deseja? Até é possível que ela o tenha reconhecido e que queira fazer cinema.
- Sou atreito a uma razoável dose de cinismo, como todos os móveis envelhecidos pelo tempo e a desilusão, mas o senhor bate-me aos pontos. O senhor pensa realmente aquilo que acabou de dizer?
- Não. Prefiro pensar que ela é tão indiferente quanto bela. Deste modo ela integra-se melhor na paisagem, faz parte da grande natureza que nos vê passar, a nós, seres transitórios, com um magnífico desprendimento.
- Não acredita no que disseram os poetas sobre a comunhão romântica das almas condenadas e a matéria da compaixão?
- Não. Deviam estar com os nervos bastante à flor da pele para proferirem tamanhas inépcias.
- O que é que procura, então, nesta paisagem?
- Já lho disse. Uma elucidação sensível. A indiferença ou até a crueldade não excluem a beleza e a inteligência."
Michel Rio, O Princípio da Incerteza, Lisboa: Ed. Teorema, 1997, pp. 20-21.
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