Wednesday, June 25, 2008

IDEIA DA PAZ


"Não o reclamar-se de sinais e de imagens garantidos, mas sim o facto de não podermos reconhecer-nos em qualquer sinal ou imagem: é isso a paz. Ou, se quisermos, aquela alegria que é mais antiga que a paz e que uma admirável parábola franciscana define como uma permanência - nocturna, paciente, desenraizada - no não-reconhecimento. Ela é o céu totalmente vazio da humanidade, a exposição da inaparência como única pátria dos homens."


Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, trad. João Barrento, Lisboa: Edições Cotovia, 1999, p. 75.

Monday, June 23, 2008

A DOR NA INÚTIL HORA NO LIMIAR DA DÚVIDA


"No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campo e ceu.
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer cousa que eu
Possa gosar.

Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, extranho todo a mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem ter fim,
Ou se minto.

Na inutil hora,
Eu, mais inutil que ella, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
Dor ou desdem, dolo ou fiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma cousa mora
Para eu fruir."


Fernando Pessoa, Poemas (1915-1920), ed. crítica de João Dionísio, Lisboa: IN-CM, 2005, 313, pp. 260-261.

Sunday, June 22, 2008

A LUZ TORNADA NUVEM E AZUL


"Entrega o livro à soletração da sombra: só um nome obscuro
lê a luz.
E ao lê-la, estilhaça-a, obscurece-a.

A erva ainda não cresceu: a lama é um som a abrir para
a pobreza, sítio onde a água expõe o malefício.
Não há mão que escreva, nesta claridade informe: a palavra
apaga-se a cada movimento do silêncio.

Por vezes, a luz abandona a cegueira e torna-se coisa: monta-
nha, abeto, lábios, corvo, rio.
Não é a salvação, somente a pausa a construir no cansaço a
sua ternura."


Rui Nunes, O Choro é um Lugar Incerto, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 62.

Friday, June 20, 2008

MATÉRIA DE JANELA



"Caiu o pano da palavra
A solidão do mundo
já não tem outro cenário além da morte:
a morte representa-se entre as mãos,
o mais solto silêncio
escondeu-se atrás do imóvel pano cinza
que também foi matéria de janela,
torrão de coração posto no ar.

Caiu o pano que antes só subia.
É o final do acto.
Agora há que sair.
Mas haverá fora?"


Roberto Juarroz, Poesia Vertical, antologia, trad. e notas de Arnaldo Saraiva, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 19

Thursday, June 12, 2008

APROXIMAÇÃO AO AZUL EM TEMPO DE LUTO 3


"Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Essas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas - envoltas pela sua roseira em brasa -
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo o meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma terra exaltada."


Herberto Helder, Lugar, in Ou o poema contínuo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 143-144.

Wednesday, June 11, 2008

APROXIMAÇÃO AO AZUL EM TEMPO DE LUTO 2



"E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.

E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para o outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.


Herberto Helder, Lugar, in Ou o poema contínuo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 138-139.

Tuesday, June 10, 2008

APROXIMAÇÃO AO AZUL EM TEMPO DE LUTO 1


"das lágrimas que me desdobram
a pele da face. face
abaixo da abóbada frágil dos
olhos, gasta pela poeira
intensa à superfície do
ar. as lágrimas que
já não impedem a erecção
do olhar. modo vertical
de ser, traço que
se desfere entre o meu corpo e
o céu, único ponto onde
seguro me posso fixar"



valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 23.

Monday, June 9, 2008

FROM TOO MUCH LOVE OF LIVING (EM MEMÓRIA)


"Com demasiado amor à vida,
Com a esperança e o dissipado medo,
Agradecemos numa breve prece
A quaisquer que sejam os deuses
Para que nenhuma vida seja eterna,
Para que os mortos nunca se ergam,
Para que o rio mais lento
Serpenteie algures e a salvo até ao mar.

Assim nem as estrelas nem o sol irão despertar,
Nem uma luz irá mudar,
Nem o som das águas tumultuosas,
Nem qualquer som ou visão,
Nem as folhas do Inverno ou da Primavera,
Nem os dias ou o que durante o dia existe.
Apenas um sono eterno
Numa eterna noite."


A.C. Swinburne, O Jardim de Prosérpina, in Poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, pp. 126-129.

Saturday, June 7, 2008

REFLEXÕES A PARTIR DAS ÁGUAS 2



"O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta."


Luís Miguel Nava, O Céu sob as Entranhas, in Poesia Completa, org. Gastão Cruz, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 205.

Wednesday, June 4, 2008

4 DE JUNHO DE 2008


"Quanto a mim, que sinto por vezes no meu íntimo o ridículo de um profeta, sei que nunca aí encontrarei a caridade de um médico. Perdido neste vil mundo, acotovelado pelas multidões, sou como um homem cansado cujo olhar não vê para trás, nos anos profundos, senão desilusão e amargura, e, à sua frente, senão uma tempestade em que nada de novo se contém, nem ensinamentos, nem dor. Na noite em que este homem furtou ao destino algumas horas de prazer, embalado na sua digestão, esquecido - tanto quanto possível -, do passado, contente com o presente e resignado com o porvir, inebriado pelo seu sangue-frio e pelo seu dandismo, orgulhoso de não ser tão baixo como aqueles que passam, diz para consigo, enquanto contempla o fumo do charuto: «Que me importa para onde vão estas consciências?»
Creio que derivei para aquilo que as pessoas do ofício chamam um aperitivo. Todavia, deixarei estas páginas - porque quero datar a minha cólera."


Charles Baudelaire, Fogachos , trad. João Costa, 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1999, pp. 57-58

Monday, June 2, 2008

SOB O SOL EM LUTO


"L' Océan sonore
Palpite sous l'oeil
De la lune en deuil
Et palpite encore,

Tandis qu' un éclair
Brutal et sinistre
Fend le ciel de bistre
D'un long zigzag clair,

Et que chaque lame,
En bonds convulsifs,
Le long des récifs
Va, vient, luit et calme,

Et qu' au firmament
Où l'ouragan erre,
Rugit le tonnerre
Formidablement."


Paul Verlaine, Poèmes Saturniens, Paris: Bookking International, 1993, p. 40.