Monday, June 23, 2008

A DOR NA INÚTIL HORA NO LIMIAR DA DÚVIDA


"No limiar que não é meu
Sento-me e deixo o irreflectido olhar
Encher-se, sem eu ver, de campo e ceu.
Se é tarde ou cedo, deixo de notar.
Nada me diz de si qualquer cousa que eu
Possa gosar.

Pelos campos sem fim
Sinto correr, porque na face o sinto,
Um vago vento, extranho todo a mim.
Não sei se penso, ou em que dor consinto
Que seja minha ou desespero sem ter fim,
Ou se minto.

Na inutil hora,
Eu, mais inutil que ella, sem sentir
Fito com um olhar que já nem chora
Dor ou desdem, dolo ou fiel sorrir,
O absurdo céu onde nenhuma cousa mora
Para eu fruir."


Fernando Pessoa, Poemas (1915-1920), ed. crítica de João Dionísio, Lisboa: IN-CM, 2005, 313, pp. 260-261.

No comments: