Tuesday, July 15, 2008
COM MAIS FERVOR QUE A VIDA
"Respira docemente. Eu sei como respira
tudo o que dorme ao pé de mim. Mas não
que eu nunca durma. A minha vida
muito me adormece. Dentro de mim há
fundos poços de piedade que,
como uma sombra, um halo, uma neblina,
em torno da luz que nem distingo,
vão dando sempre a esmola de esquecer
quanto de sonhos ao dormir contemplo,
ora aterrado por terrores que emergem
da própria piedade ressurgente,
ora enlevado por alegres gestos
que nela se submergem como a vida,
mas uns e outros quais temi ou esperei
até ao fim concluso o pensamento
das vislumbradas aparentes formas.
Eu sei como respira. Não soubesse,
ou docemente em mim não respirasse,
e mesmo assim de amor eu ouviria,
dormindo ou acordado, o eco naqueles poços
do amor que me rodeia e toca, enchendo-os
com mais fervor que a vida, mais ternura, mais
carinho, e com silêncio, lágrimas, sorrisos,
e sobretudo, ah sobretudo, uma só mão que pousa."
Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, in Poesia III, Lisboa: Ed. 70, 1989, p. 31.
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