Thursday, July 31, 2008
ENIGMAS DA LUZ
"apaga deus o seu nome
ao fim da tarde o mundo é
o enigma da luz"
Rui Nunes, O Choro é um Lugar Incerto. Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 54
Tuesday, July 29, 2008
CAMINHO ANTIGO 1
"Percorre em silêncio esta vida miserável,
imitando o próprio tempo, que é mudo.
E vive oculto ou, pelo menos, oculta a tua morte."
Páladas, in "do mundo grego outro sol. Antologia Palatina e Antologia de Planudes", selecç. trad. Albano Martins. Porto: Edições Asa, 2002, p. 106.
Saturday, July 26, 2008
NAUFRÁGIOS EFLUVIAIS
"Junto das águas, os defuntos brilham.
A inocência de estarem a esquecer
desenha as margens vivas
onde os verdes se douram. E ninguém
passa sem ver minúsculas undícolas,
mesmo que ignore de onde nos elas vêm.
Mas há quem saiba que imperceptíveis brisas,
só tocadas de olvido, têm a ver
com os defuntos que, esquecidos, brilham
na inocência das águas a esquecer."
Fernando Echevarría, Sobre os Mortos, in "Poesia, 1987-1991". Porto: Edições Afrontamento, 2000, p. 215.
Thursday, July 24, 2008
PERMANÊNCIA DE CERTOS ESTADOS DE ALMA
"A ânsia nele, a música, a dor agitava-o. Para ele o universo era feito de feridas; isso fazia-o sentir uma dor profunda, impossível de nomear. Agora um outro ser, lábios divinos, trémulos, inclinavam-se sobre ele, e colavam-se aos seus lábios; encaminhou-se para o seu quarto solitário. Estava sozinho, sozinho! Então a nascente murmurou, caudais jorraram dos seus olhos, curvou-se sobre si mesmo, os seus membros estremeceram, era como se fosse obrigado a dissolver-se, não achava o fim da volúpia; por fim começou a compreender, sentiu uma profunda, silenciosa comiseração em si mesmo, chorou ao pensar em si, a sua cabeça enterrou-se no peito, adormeceu, a lua cheia mantinha-se no céu, os caracóis do seu cabelo caíam-lhe sobre as têmporas e o rosto, as lágrimas pendiam das pestanas e secavam nas faces, assim jazia ali abandonado, neste momento, e tudo estava tranquilo e silencioso e frio, e a luz brilhou durante toda a noite e permaneceu sobre as montanhas."
Georg Büchner, Lenz, trad. Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval, 2006, pp 16-17.
Monday, July 21, 2008
QUALQUER COISA DE PAZ
"Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.
Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.
Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área
de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina."
Fernando Echevarría, Figuras, in "Poesia, 1987-1991", Porto: Ed. Afrontamento, 2000, p. 26.
Wednesday, July 16, 2008
ANJO DESCENDENTE
"Muitas vezes, gostaria de clamar: Ajuda-me, ajuda-me, por favor! Estou de joelhos, ao pé de ti!
E encarava-se com tristeza: lembrar-me que uma pessoa tem de ir sozinha pelo mundo, enfrentar as montanhas e os mares de estrelas! - e enchia-se de lágrimas, grandes como a cúpula do céu, que não conseguiam saltar-lhe dos olhos."
Robert Musil, Tonka, in Três Mulheres, trad. Maria Cristina Mota. Lisboa: ed. Livros do Brasil, 1985, pp. 211-212.
Tuesday, July 15, 2008
COM MAIS FERVOR QUE A VIDA
"Respira docemente. Eu sei como respira
tudo o que dorme ao pé de mim. Mas não
que eu nunca durma. A minha vida
muito me adormece. Dentro de mim há
fundos poços de piedade que,
como uma sombra, um halo, uma neblina,
em torno da luz que nem distingo,
vão dando sempre a esmola de esquecer
quanto de sonhos ao dormir contemplo,
ora aterrado por terrores que emergem
da própria piedade ressurgente,
ora enlevado por alegres gestos
que nela se submergem como a vida,
mas uns e outros quais temi ou esperei
até ao fim concluso o pensamento
das vislumbradas aparentes formas.
Eu sei como respira. Não soubesse,
ou docemente em mim não respirasse,
e mesmo assim de amor eu ouviria,
dormindo ou acordado, o eco naqueles poços
do amor que me rodeia e toca, enchendo-os
com mais fervor que a vida, mais ternura, mais
carinho, e com silêncio, lágrimas, sorrisos,
e sobretudo, ah sobretudo, uma só mão que pousa."
Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, in Poesia III, Lisboa: Ed. 70, 1989, p. 31.
Saturday, July 12, 2008
O TEMPO A PACIÊNCIA
"O mar o descobre em seu tempo
de aridez
Templo onde brilha a lenta
madrugada do mundo pedras desprendendidas deformadas
pelos elementos em visita
vigilante
Pedras ou pássaros gravados na sombra barcos
de rosto humano
Essa é a outra face da ferida
talhada no centro da terra no centro
do sol pelo fulgor das marés pela ternura
de armas marítimas
O mar os alimenta com seus frutos
de plena infinitude
O tempo a paciência"
Casimiro de Brito, "Algarve Lugar Onde", in Ode & Ceia, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985, p. 194.
Thursday, July 10, 2008
ENQUANTO CAMINHAS PARA A DISSOLUÇÃO
"A natureza podia ser, confinada pelo olhar,
o paço da tua vida, que o sol vai untando
pela manhã, enquanto caminhas para a dissolução
dos horizontes, predestinado a algo que não sabes,
perfilha-te a gravidade sem fuga dos teus passos."
Paulo Teixeira, Inventário e despedida, Lisboa: Ed. Caminho, 1991, p. 34.
Tuesday, July 8, 2008
OBJECTO DE SOMBRA 2
"O que, tanto num caso como noutro, eu procurava sem o saber, era o logos, a que mais tarde chamei cena fulgor - o logos do lugar; da paisagem; da relação; a fonte oculta da vibração e da alegria, em que uma cena - uma morada de imagens-, dobrando o espaço e reunindo diversos tempos,
procura manifestar-se.
E a única realidade a que acedi, que tive de aprender, foi a de estar sempre atenta, de não deixar escapar nenhuma cena diante do princípio da não contradição, de olhar o que está advindo, a propor-se ao futuro.
Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola, e se levanta."
Maria Gabriela Llansol, "O extremo ocidental do Brabante", in Lisboaleipezig 1, o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim, 1994, p. 128.
Tuesday, July 1, 2008
APELO LÍRICO SOB CÉU DE MUNCH
"Num ai de luz profundo e soluçante,
Resvala ao mar o sol, como um guerreiro
Que, ferido d'um gladio traiçoeiro,
Na arena cae, vencido, agonisante.
Ó coração ferido e palpitante!
Sol! meu irmão na dor, meu companheiro!
Fez-nos irmãos o ideal, um altaneiro
Orgulho e uma amargura semelhante.
Mas ai! eu morro, solitariamente,
Sem que por mim chore a das tranças bellas,
E, ó Sol! na tua hora derradeira,
O mar soluça inconsolavelmente,
A noite verte o pranto das estrellas
E veste luto a natureza inteira."
Rodrigo Solano, Fumo, pref. João Grave, Porto: Edição da Renascença Portuguesa, 1915, pág. 41.
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