Monday, August 31, 2009

PEDRAS NA ILUSÃO DA INCONSCIÊNCIA


"Entre mim e as coisas mediavam ínfimos e fraternos sentimentos, que eram elas continuando-se no meu ser; ou ele a prolongar-se em árvores, montes e penedos e, no distanciamento infinito, em lágrimas e lágrimas acesas.
Eu não tinha ainda essa existência individual, definida ou isolada num pequeno espaço material. A existência, como todos os calhaus, é um produto da razão, que nasce, por sua vez, da acção da realidade sobre nós, porque o homem é o único animal impressionável à acção da realidade, o único animal racional. Os outros animais não sofrem desilusões, os contactos brutos e dolorosos que nos dão a consciência do mundo exterior.
A infância é uma nuvem, como a velhice é uma pedra: nuvem que abrange tudo, pedra que tudo restringe à sua forma dura e recortada."


Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 65.

Wednesday, August 26, 2009

FOR TO EXIST ON THE EARTH IS BEYOND ANY POWER TO NAME


"So that they last, and confirm our hymnic song against death.

And our tender thought about all who lived, strived, and never succeeded in naming.

For to exist on the earth is beyond any power to name,

Fraternally, we help each other, forgetting our grievances,
translating each other into other tongues, members, indeed, of a wandering crew.

How then could I not be grateful, if early I was called and the
incomprehensible contradiction has not disminished my wonder?

At every sunrise I renounce the doubts of night and greet the new day of a most precious delusion."



Czeslaw Miloz, Facing the River, trad. do autor e de Robert Hass. New Jersey: The Ecco Press, 1995, pp. 14-15.

Friday, August 21, 2009

A SUBTRACÇÃO DO FUTURO


"O futuro é esta subtracção? pergunta Margarida, nem adrianos nem antinoos, sequer um amo-te absoluto para o baptismo de uma cidade, nem um império, nem os bárbaros na fronteira, nem os tempos de dizer que se deve entrar na morte com os olhos abertos, nem guerras para declarar, nem o ódio que se vota aos poderosos, hoje, os anjos seculares retraíram as asas e escolheram um lugar severo para talvez definitivamente adormecerem"


Rui Nunes, "Quem da Pátria sai a si mesmo escapa?", Lisboa: Relógio D'Água, 1983, p. 70.

Thursday, August 20, 2009

O HOMEM FELIZ



"Não, o homem feliz não é o que tem camisa, como o da história que Padre Barnabé nos contava, no seminário. O homem feliz é o que não tem passado. O maior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar. Lembrança que vem de repente e ataca como uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que fica o coração. Alguém pode ter tudo, mocidade, dinheiro no bolso, um bom cavalo debaixo das pernas, o mundo todo ao seu dispor. Mas não pode usufruir nada disso, por quê? Porque tem as lembranças perturbando. O passado te persegue, como um cão perverso nos teus calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro, que resista ao assalto das lembranças."


Rachel de Queiroz, Memorial de Maria Moura, Lisboa: Edição «Livros do Brasil», 1994, p. 188.

Tuesday, August 18, 2009

PARAÍSO IRRECUPERADO



"- Esperava esse acolhimento - respondeu o demónio. - Todos os homens odeiam os infelizes; como sou detestado! Eu, mais miserável que qualquer ser humano! E no entanto, tu, o meu criador, detestas e repeles com desprezo a tua criatura, a quem estás ligado por cadeias que só podem ser quebradas com a morte de um de nós. Queres então matar-me! Como ousas jogar assim com a vida? Cumpre o teu dever para comigo que eu cumprirei o meu para contigo para o resto da humanidade. Se estás disposto a aceder às minhas condições, deixar-vos-ei em paz; mas se recusares, hei-de saciar-me no sangue dos amigos que te restam!
- Monstro horrendo! Demónio que és! As torturas do inferno são vingança muito doce para os crimes que cometeste! Censuras-me o ter-te criado; vem cá, então, para que possa extinguir a centelha de vida que tão imprudentemente te conferi!
O meu furor não tinha limites. Saltei sobre ele, impulsionado por todos os sentimentos que podem armar um homem para que mate outro.
Repeliu-me sem esforço e disse:
- Acalma-te!... Escuta, antes de dares livre curso ao teu ódio! Não terei já sofrido bastante para que tu procures ainda aumentar a minha infelicidade? A minha vida, a minha triste vida, é-me ainda querida e defendê-la-ei. Não te esqueças que me fizeste mais forte que tu. Mas não quero lutar contigo. Sou criação tua e serei doce e obediente para com o meu amo e senhor, se quiseres desempenhar o papel que a ti cabe. Oh! Frankenstein, se és justo para com os outros não me esmagues a mim, credor da tua justiça, da tua demência e do teu afecto. Eu deveria ser o teu Adão; mas afinal sou o anjo caído que baniste do paraíso. Por todo o lado vejo uma felicidade de que estou irremediavelmente excluído. Eu era benevolente e bom; o desgosto transformou-me num demónio! Faz-me feliz e tornar-me-ei virtuoso..."


Mary Shelley, Frankenstein, trad. Mário Martins de Carvalho, 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1972, pp. 80-81.

Thursday, August 13, 2009

AND YOU TWIST THE DARKNESS IN YOUR FINGERS

"E tu revolves o escuro nos teus dedos, tu
Que és ligeiramente mais velho...
Quem és tu, no fim de contas?
E é cor de areia,
O escuro, à medida que se coa pela tua mão
Pois que sentido faz qualquer coisa,
A hora e a areia? Esse barco
Remando para a margem? Serei eu maravilha,
Estrategicamente, sob a luz
Do longo sepulcro que escondeu a morte e me escondeu a mim?"


John Ashbery, Auto-Retrato Num Espelho Convexo e outros poemas, trad. António M. Feijó. Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 25.

QUEM ANDOU PELA TERRA EM MÍSERO ABANDONO

"Eu não vos tenho medo, ó pallidas creanças,
Que verteis sobre mim lagrimas compungidas
E negras maldições, agudas como lanças,
Chorae, desenrolae as vossas longas tranças,
Levantae para o céu as mãos arrependidas,
Que eu não vos tenho medo, ó brancas Margaridas,
O' sombras immortaes das pallidas creanças.

Eu hei de ir para o céu por mal dos meus peccados:
O céu é hoje em dia um velho pardieiro,
Um grande casarão, sem vidros, sem telhados,
Aonde vão dormir os corpos arruinados
Que já não têm saúde, e já não têm dinheiro.

Quem andou pela terra em misero abandono,
Aos encontrões da sorte, ao vento, á chuva, aos frios,
A velha meretriz, os magros cães sem dono,
Os rotos histriões, os santos e os vadios,
Todos lá vão dormir o derradeiro somno."



Guerra Junqueiro, A Morte de D. João, 10ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1921, p. 269.