"As minhas raízes descem por entre veios de chumbo e prata, pela terra húmida que exala um odor pantanoso, até ao nó central formado por raízes de carvalho. Cego e surdo, com os ouvidos tapados com terra, ainda assim escuto com os fragores da guerra e o canto do rouxinol; sinto o passo precipitado de inumeráveis hordas errando de um para o outro lado em busca da civilização, tal como os bandos de aves migratórias procuram o Verão. Vi mulheres carregando cântaros vermelhos junto do Nilo. Acordei num jardim com um toque na nuca e o beijo ardente de Jinny. Recordo-me de tudo isso, como se recordam gritos confusos, colunas que se desmoronam e os escombros vermelhos e negros de um incêndio nocturno. A minha vida é despertar e adormecer. Umas vezes durmo, outras estou desperto."
Virginia Woolf, As Ondas, trad. Francisco Vale. Lisboa: Relógio D'Água, 1988, p. 78.
Sunday, May 31, 2009
AS MINHAS RAÍZES DESCEM POR ENTRE VEIOS
Saturday, May 30, 2009
PELO PRAZER DA EXISTÊNCIA
"- Num mundo que contém o momento presente, de que vale a pena distinguir? - disse Neville. Nada deveria ser nomeado, de modo a não ser transformado. Deixemos este banco, esta beleza, abandonados ao puro prazer de existirem."
Virginia Woolf, As Ondas, trad. Francisco Vale. Lisboa: Relógio D'Água, 1988, p. 67.
Friday, May 29, 2009
DEUS OLHANDO AS CASAS
"Com seus olhos estáticos na cumeeira
a casa olha o homem.
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos
de paredes sensíveis,
discernentes:
agora é o amor,
agora é a injúria,
punhos contra a parede,
pânico.
Comove Deus
a casa que o homem faz para morar,
Deus
que também tem os olhos
na cumeeira do mundo.
Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade.
Sofre a que parece impassível.
É viva a casa e fala.
Adélia Prado, "Oráculos de Maio", in Com Licença Poética - antologia, selecç. Abel Barros Baptista. Lisboa: Cotovia, 2003: 114.
Wednesday, May 27, 2009
MOMENTO INTEMPORAL
"A solidão, e o que há de mais aberto:
Rosa por desfolhar,
Quero-a eu agora - e ao largo vento
A roda dos sonhos confiar.
Quero-a como a morte pressentida.
E a cadência da onda transmitida
Ao fundo do mar."
Ruy Cinatti, "O Livro Nómada do Meu Amigo", in Ruy Cinatti - Antologia Poética, organização de Joaquim Manuel Magalhães. Lisboa: Editorial Presença, 1986, pág. 56.
Thursday, May 21, 2009
PARA A CASA ENCANTADA
"Deuses, quem mos dera
acessíveis fraternos
divinos o bastante
e corpóreos físicos cheirosos
à carne e o mais.
Não há. Só por miragem
por ilusão vontade
ou desespero ou sonho
nocturno e solitário
alguém agora os vê.
Antes não ser capaz
destas visões. Ou
ter perdido o dom
de imaginá-los -
que supor
haver quem se degrade a ser divino
apenas por instantes."
Jorge de Sena, "Peregrinatio ad loca infecta", in Poesia - III, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 91-92.
acessíveis fraternos
divinos o bastante
e corpóreos físicos cheirosos
à carne e o mais.
Não há. Só por miragem
por ilusão vontade
ou desespero ou sonho
nocturno e solitário
alguém agora os vê.
Antes não ser capaz
destas visões. Ou
ter perdido o dom
de imaginá-los -
que supor
haver quem se degrade a ser divino
apenas por instantes."
Jorge de Sena, "Peregrinatio ad loca infecta", in Poesia - III, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 91-92.
Sunday, May 17, 2009
OLHOS ENDURECIDOS
"- Amo e odeio, disse Susan. Há uma só coisa que desejo. Tenho os olhos endurecidos. Os olhos de Jinny, esses estilhaçam-se em cintilações sem fim. Os olhos de Rhoda são como as pálidas flores que as mariposas procuram à noite. Os teus estão cheios a transbordar, e nada os perturba. Mas eu avanço pelo meu caminho. Vejo insectos entre as ervas. Embora a minha mãe ainda faça meias de malha branca para mim e ponha bainhas nos aventais, embora eu seja ainda uma criança, amo e odeio.
- Mas quando nos sentamos juntos, muito próximos, disse Bernard, as palavras que dizemos fundem-se um no outro. Aqui estamos debruados de névoa. Somos um território imaterial.
- Vejo o besouro, disse Susan. Vejo que é preto; vejo que é verde; estou amarrada por simples palavras. Mas tu vagueias sem destino; esvais-te; ergues-te mais alto, com palavras e palavras encadeadas em frases."
Virginia Woolf, As Ondas, trad. Francisco Vale. Lisboa: Relógio D'Água, 1988, p. 14.
Tuesday, May 12, 2009
ACASO,O COSMO
"
XXVIII
Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal como era antes de se tornar terra.
XXIX
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.
XXX
Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo."
Heraclito, Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: IN-CM, 2005, pp. 144-145.
XXVIII
Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal como era antes de se tornar terra.
XXIX
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.
XXX
Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo."
Heraclito, Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: IN-CM, 2005, pp. 144-145.
Sunday, May 10, 2009
SHADE THE LAMP
"Shade the lamp
And ask no questions...
Wait... Time is speaking...
Wait till he end,
This moment.
The bridge
In the medieval city,
The river coming up
To the quay,
And to-day's streets
Outside
And the shaded lamp
Meaning this double thing.
Lamp-shade in green and purple."
Fernando Pessoa, Poesia Inglesa II, ed. Luísa Freire. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p.116.
Wednesday, May 6, 2009
E HÁ JANELAS QUE NÃO SE ENCERRAM À ESCURIDÃO
"XLIX
Metto-me para dentro, e fecho a janella.
Trazem o candieiro e dão as boas-noites,
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janella,
O ultimo olhar amigo dado ao socego das arvores,
E depois, fechada a janela, o candieiro acceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fóra um grande silencio como um deus que dorme."
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), Poemas Completos de Alberto Caeiro, recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 100.
Sunday, May 3, 2009
PARTIES
"Irene
A sua mulher é muito enigmática. Como pode viver com uma pessoa tão enigmática?
Rogério
Quem é que não gosta de enigmas? Vivemos com eles. Éramos indigentes sem enigmas. Afastamos uns, criamos outros. Há uma espécie de virgindade no enigma das coisas.
Leonor
(Para Miguel.) Vou levá-lo a um lugar espantoso.
Miguel
Previno-a de que não gosto de paisagens senão - como direi? - de uma maneira inaugural. Como se fosse a anunciação.
Leonor
É isso que as torna tão capazes de explicação. Vamos andar juntos todo o tempo que estiver na ilha. Vai ser muito imoral.
Miguel
Imoral? O ser humano é uma parcela pequeníssima de tudo o que acontece na vida. Amanhã a terra treme e ficamos soterrados, eu com o meu relógio de pulso, você com o seu colar de pérolas.
Não significa nada, mas nada mesmo. Passados dois dias ninguém se lembra mais. Nem os seus filhos. Ninguém.
Leonor
Os meus filhos! Que é que sabe dos meus filhos?
Miguel
Os seus e os de toda a gente. É um amor sem maturidade. E o amor das mulheres é também sem maturidade."
A sua mulher é muito enigmática. Como pode viver com uma pessoa tão enigmática?
Rogério
Quem é que não gosta de enigmas? Vivemos com eles. Éramos indigentes sem enigmas. Afastamos uns, criamos outros. Há uma espécie de virgindade no enigma das coisas.
Leonor
(Para Miguel.) Vou levá-lo a um lugar espantoso.
Miguel
Previno-a de que não gosto de paisagens senão - como direi? - de uma maneira inaugural. Como se fosse a anunciação.
Leonor
É isso que as torna tão capazes de explicação. Vamos andar juntos todo o tempo que estiver na ilha. Vai ser muito imoral.
Miguel
Imoral? O ser humano é uma parcela pequeníssima de tudo o que acontece na vida. Amanhã a terra treme e ficamos soterrados, eu com o meu relógio de pulso, você com o seu colar de pérolas.
Não significa nada, mas nada mesmo. Passados dois dias ninguém se lembra mais. Nem os seus filhos. Ninguém.
Leonor
Os meus filhos! Que é que sabe dos meus filhos?
Miguel
Os seus e os de toda a gente. É um amor sem maturidade. E o amor das mulheres é também sem maturidade."
Agustina Bessa-Luís, Party - Garden Party dos Açores. Lisboa: Guimarães Editores, 1996, pp. 60-61.
Friday, May 1, 2009
EMBELEZAR A DOR
"364
Da poesia se poderá dizer que embeleza a dor,
que cicatriza com as flechas que atravessam
o corpo real,
que é uma flor de espuma que lava a cegueira das cidades.
Enquanto a dor arde e a morte se aproxima - a poesia
fornece-nos um pouco de azul.
Ironia da arte - ela sorri, altaneira quase,
do ruído da vida, do caos cumprido pelos corpos,
da tristeza e do abandono como se fossem coisa de somenos.
Mas, para quem souber ler, a poesia que nos encanta
e quase nos faz esquecer,
também nos aviva a memória para os caminhos do chão
e do ar e das águas,
por mais tortuosos que sejam,
como se ela fosse uma irmã consoladora da dor.
Serão então os fragmentos iluminados da mágoa em cacos
que ficam pelo caminho? Palavras que nos lembram
que nem só de sofrimento se compõem
os percursos do homem?
Que nos recordam os vales da alegria,
os prazeres, os momentos mais delicados?
Poemas são conchas abandonadas por animais sofredores
que nelas viveram - a beleza que resta
de uns traços da humana errância.
O repouso do sobressalto."
Casimiro de Brito, Fragmentos de Babel seguido de Arte Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 85.
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