Thursday, October 29, 2009
NA VÉSPERA DE ALL HALLOWS
"II
Nada existe duradoiro no mundo,
dizia; e por isto se rege a
nossa vida terrena, a dinastia
e as crenças que julgamos favoráveis
à verdade de sempre.
Porque
cada dia que passa vai trazendo
coisas novas e mostra a minha
necedade no dia passado. E
a maior inquietação transforma-
-se na tranquilidade."
João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora segunda parte, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 18.
Tuesday, October 27, 2009
FAZER DA MORTE O EDIFÍCIO
"Que façam só da morte o edifício
onde mergulham as raízes simples
dos prumos, o cristal que se distende
pelo centro das salas que cintilam,
e nesta superfície há-de ficar
o coração inerme, o leve indício
de corredores perdidos, ao colhermos
mais perto das paredes qualquer fruto
cujo sabor continha o que se oculta
em torno do que fora a leve mágoa
de só nele encontrarmos o sentido
de uma memória extrema, onde se apaga
o desígnio que fica ilimitado
nas bruscas praias dessa arquitectura."
Fernando Guimarães, Casa: o seu desenho, Lisboa: IN-CM, 1985, p.12.
Friday, October 23, 2009
BREVIÁRIO DA TRAGÉDIA
"Circunscrevo a mim a tragédia que é minha. Sofro-a, mas sofro-a de cara a cara, sem metafísica nem sociologia. Confesso-me vencido pela vida, porém não me confesso abatido por ela.
Tragédias, muitos as têm - todos, até, se entre elas contarmos as ocasionais. Mas o que a cada qual compete, como homem, não é falar na sua tragédia; e o que a cada qual compete, como artista, é, ou ser homem e calar-se sobre ela, escrevendo ou cantando de outras coisas, ou extrair dela, com firmeza e grandeza, uma lição universal."
Barão de Teive (Fernando Pessoa), A Educação do Estóico, ed. Richard Zenith, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 57.
Tuesday, October 20, 2009
CAIM CAIM, FEZ O CÃO DAS LÁGRIMAS
"No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: «Deitei-me ontem com o meu pai; embriaguemo-lo também esta noite, e vai deitar-te com ele, a fim de mantermos a raça do nosso pai». Também naquela noite deram a beber vinho ao pai, e a mais nova deitou-se com ele, que de nada se apercebeu nem quando se deitou nem quando se levantou. E assim as filhas de Lot conceberam do próprio pai." (Gen 19, 34-35)
"Penetremos na igreja a ver esta farsada.
Uns entram para ver a casa iluminada,
Os dândis é por chique, os velhos por decoro;
Estas é para ouvir umas quadrilhas,
E os outros, que sei eu... para vender as filhas,
Para matar tempo ou arranjar namoro." (Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno, Mem Martins: Publ. Europa-América, s.d., p. 85)
"Penetremos na igreja a ver esta farsada.
Uns entram para ver a casa iluminada,
Os dândis é por chique, os velhos por decoro;
Estas é para ouvir umas quadrilhas,
E os outros, que sei eu... para vender as filhas,
Para matar tempo ou arranjar namoro." (Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno, Mem Martins: Publ. Europa-América, s.d., p. 85)
"Os judeus nunca acataram a má nova de que Jesus ben Nazaré, conhecido por nós, Gregos, por Rei ou Cristo, era realmente o messias que eles andavam há uma data de tempo à espera.
«O ponto é», dizia Santo enquanto eu o tratava depois de mais uma sessão com os seus antigos co-religiosos, «que nunca se sabe quando se converte alguém.»
No entanto, quando Santo começou a sua carreira, ele e Tiago concordaram mais ou menos em dividir a missão. Santo ocupar-se-ia da parte dos prepúcios enquanto Tiago, assistido por Pedro, O Calhau, venderia as boas novas sobre o Juízo Final aos judeus." (Gore Vidal, Em Directo do Calvário, trad. José Luís Luna, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, p. 36)
"Uma noite bem passada, sim senhores, exclamou um deles lambendo os beiços, e outro confirmou, Estas sete valeram por catorze, é certo que uma não era grande coisa, mas no meio daquela confusão quase nem se notava, têm sorte estes gajos, se são bastante homens para elas, Melhor que não sejam, assim elas levarão mais vontade. Do fundo da camarata, a mulher do médico disse, Já não somos sete, Fugiu alguma, perguntou a rir um dos grupo, Não fugiu, morreu, Ó diabo, então vocês terão de trabalhar mais na próxima, Não se perdeu muito, não era grande coisa, disse a mulher do médico. Desconcertados, os mensageiros não atinaram como responder, o que tinham acabado de ouvir parecia-lhes indecente, algum deles terá mesmo chegado a pensar que no fim de contas as mulheres são todas umas cabras, que falta de respeito, falar de uma tipa nestes termos, só porque não tinha as mamas no lugar e era fraca de nádegas." (José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, 10ª ed., Lisboa: Caminho, 2006, p. 183)
"1
O escritor
é às vezes
um estupor
o escrito
é às vezes
mal dito
o prémio
nem sempre
é génio
2
O comunista
já não come
criancinhas
ao pequeno-almoço
lancha
na Versalhes
com velhinhas
o fascista
faz o mesmo
3
Falo do meu medo
do desemprego
de saúde mental
e de Natal
de Rei Mago
e de Saramago
4
Rezo
a oração
que a Maria Aliete Galhoz
me ensinou
olhei para o céu
vi uma cruz
capela de rosas
Menino Jesus
A osga diz cró" (Adília Lopes, "Florbela Espanca Espanca", in Caras Baratas - Antologia, selec. Elfriede Englemayer, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, pp. 206-207)
Sunday, October 18, 2009
O QUE FAZEM RUÍNAS 2
"Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra,
Pareço eu: feito para amar, para sofrer."
Friedrich Hölderlin, "Odes", in Poemas, selecç. e trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 177.
Friday, October 16, 2009
UM AMAR ENTRE ZUMBIDOS E BARAFUNDA - PARA MARIA AGUSTINA
"Estrelas de um verde irisado e claro tremem nos altos. O vento treme, tremem as sarças sobre as quais as libélulas morreram ao fim do dia. É amargo partir, é amargo voltar. Nesta treva onde se movem ventos silenciosos, eu conheço a terra mais do que nunca estranha e amada, bloco de esquecida falésia, rasto perdido onde, como dedos de sal, aponta um humanismo esperançado, porém triste. Neste planalto onde vêm morrer as vozes dos lugares, das casas fumacentas, das encruzilhadas em que lentamente passam os gados, surpreende-se de súbito uma espécie de idílio desgraçado com o tempo, o mundo, as próprias estrelas esverdeadas. Um idílio patético e interminável, um amar entre zumbidos e barafunda, um estar sozinho no coração de toda a gente. É assim a vida e a morte. Um regresso de parte nenhuma, um encontro com a contradição. Então saúdo a terra escura, o vento escuro, a solidão e o medo."
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Lisboa: Guimarães Editores, 2009, p. 335.
Thursday, October 15, 2009
NOS ANÉIS DE SATURNO
"soçobrando corro
ao encontro do horizonte
à luz das palavras
através de anos-sombra
o horizonte recua
perante o mundo
nenhuma queda livre no silêncio
por detrás assomam as palavras
chamam
pelo teu poema aos mortos"
Eva Christina Zeller, Sigo a Água, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 31.
Sunday, October 11, 2009
UND WIEVIEL BIS DER FLUSS GESCHÖPFT
"Para qualquer sítio abandonar o mundo
sem sair de nenhum lugar
o que cresce
o que murmura
o que tudo abala
só água e cada hora
que cai pela noite fora
o que está deitado só
nada já fundo e longe
enquanto as horas deslizam certas
transpondo a margem
para onde o olhar
transpondo as margens onde só
e tanto até o rio ficar esvaziado -
colhido
tudo experimente o homem
para cada viagem"
Eva Christina Zeller, Sigo a Água, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 51.
Saturday, October 10, 2009
PEQUENOS DELITOS
"i.x. Poucos dias depois da sua chegada a Capreias, estando só, acercou-se dele, de repente, um pescador que lhe ofereceu um grande ruivo; Tibério mandou que lhe esfregassem a cara com o peixe, tão assustado ficou com o facto de aquele pescador ter conseguido chegar até junto dele, pelas traseiras da ilha, escalando as rochas escarpadas. Como o pescador, no meio do suplício que lhe era inflingido, se regozijasse de não lhe ter oferecido também a corpulenta lagosta que apanhara, Tibério ordenou que lhe rasgassem igualmente a cara com ela. Castigou com a morte um soldado pretoriano que roubara um pavão num vergel. Durante uma viagem que fez, como a liteira em que seguia se enleasse numa moita, prostrou no solo o oficial encarregado de abrir caminho, um centurião das primeiras coortes, e por pouco o não matou à chicotada."
Suetónio, Os Doze Césares, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2007, p. 197.
Thursday, October 8, 2009
O QUE FAZEM RUÍNAS 1
"- Acho que se afligem por serem medíocres e não gostarem de nada que fazem. Pelo menos, de não gostarem com entusiasmo, à maneira do tango. Mas a coisa melhor do mundo é ser-se medíocre e ter aos pés, não um homem, mas um saco de água quente.
- Isso explica porque há livros tão maus com imenso sucesso. As pessoas estão a ficar desavergonhadas e a cultura é uma treta que elas denunciam finalmente - disse Raul. - No século quinze - disse ele - no século quinze tinham-se criados para fazer versos e outros para fazer camas. Agora caiu-se nisto, não há bicho-careta que não se diga letrado e que escreva um livro com trezentas páginas. Faz parte do currículo. Nunca se lembrou de escrever, Camila?
- Nunca me lembrei matar de tédio as pessoas. Prefiro as armas de fogo.
- Honestamente, eu também."
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - Os Espaços em Branco, 2ª edição, Lisboa: Guimarães Editores, 2003, p. 54.
Tuesday, October 6, 2009
A RAZÃO EM TEORIA
"Eu penetro, retomo, inspecciono, penduro, arranco o selo, a minha vida morta não guarda nada, e ainda por cima o nada nunca fez mal a ninguém, o que me força a voltar ao interior é esta ausência desoladora que passa e por instantes me submerge, mas nela vejo claro, muito claro, mesmo o nada sei o que é e posso dizer o que tem dentro.
Tinha razão, Van Gogh, podemos viver para o infinito, satisfazer-nos apenas com o infinito, na terra e nas esferas há infinito bastante para saciar mil grandes génios, e se Van Gogh não pôde satisfazer o seu desejo, que era irradiá-lo durante toda a vida, foi porque a sociedade lho proibiu.
Redonda e conscientemente proibiu."
Antonin Artaud, Van Gogh, o suicidado da sociedade, trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 51.
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