Wednesday, March 31, 2010

BALANÇO MENSAL 03



"Na floresta não há cruzes nem caveiras.
Os vermes sepulcrais aqui são trepadeiras,
A flor não se baptiza, o roble não jejua,
A lâmpada do sol e a lâmpada da lua
Não precisam de azeite, os frescos arvoredos
Abraçam-se dizendo adoráveis segredos
E casam-se à vontade a rir na luz imensa,
Sem precisar de cura e sem tirar dispensa,
Porque um dia os rosais votaram num concílio
Que havia só um papa infalível, - Virgílio!"


Guerra Junqueiro, Poesias Dispersas, Porto: Livraria Chardron, 1920, pp. 12-13.

Sunday, March 28, 2010

O TRUNFO DO TEMPO DURANTE A PAIXÃO


"As flores que nascem contigo
são o leito onde hás-de morrer.

Neste dia a ilha dispensou o sol.
As águas opacas poderiam esconder
reluzentes peixes que nada
seria hoje revelado.
Respirávamos por baixo da cinza,
vagarosamente,
e crescia uma levíssima morte
que talvez nos lançasse
já noite
nas memórias vivas.

Antes, havíamos conhecido o privilégio.
Tivéramos tempo para construir
a muralha que sustentaria o céu.
Encontrámos as raízes puras
da nossa idade, éramos enormes
dianto do fogo, como árvores
que chegassem de muito longe
para povoar o inóspito.
Havia esse saber secreto:
vem das árvores o ar
com que o fogo as consome.

O tempo conhece os seus trunfos.

As flores preparam-se para te receber.
E tu tens os olhos esculpidos pela febre,
a brancura, o frio nas mãos,
todos esses contrastes que antecedem
a chegada da primavera incalculável.
Sentes-te estalar desde o coração.
Há uma tapeçaria de gritos e silêncios
urdindo-se dentro de ti.
Pétalas no chão.

E agora és a primavera
em que todas as aves partiram,
levando consigo a ilha,
as memórias,
a dura revelação do rosto."


Vasco Gato, Imo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, pp. 80-81.

Saturday, March 27, 2010

SENHOR DOS PASSOS III


"Quem, ó meu filho, neste solo ardente,
Quem no jazigo te virá deitar?
Dizer-te: - dorme -, e, reclinando a frente
No teu sepulcro, sobre ti chorar?
Eu não que em breve nesta plaga obscura
Também já morta como tu serei.
Perdi meu filho: sobre a terra dura
Correi, meus prantos, sem cessar correi!"


Soares de Passos, Poesias, 11ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1967, p. 143.

Friday, March 26, 2010

SENHOR DOS PASSOS II




"Nunca uma morte terrena tinha acontecido
assim. Segurou-a ainda por um braço
antes de a lançar para o abismo.
A água surgiu devagar em cima das rochas
E o seu corpo colou-se às grades que
tapavam a entrada de um viveiro. Caiu
lançando um grito e a espuma saltou
no embate afugentando os pássaros
do mar. Ninguém reconheceu neste acto
um assassínio e no entanto o sangue desceu
por uma ranhura e a pele cortada espalhou-se
pelos cantos da praia entre as urzes.

Era o início de uma assombração."


Jaime Rocha, Os Que Vão Morrer, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 10.

Thursday, March 25, 2010

SENHOR DOS PASSOS I



"E assim, de adiamento em adiamento, chega-se ao momento em que será o tempo a gastar-se e a extinguir-se num céu vazio, quando o último suporte material da memória do viver se tiver degradado numa labareda de calor, ou tiver cristalizado os seus átomos no gelo de uma ordem imóvel."


Italo Calvino, Palomar, trad. João Reis. Lisboa: Ed. Teorema, 2002, p. 129.

Tuesday, March 23, 2010

REGRESSAR A CEIDE



"Sorrimos todos, e ele prosseguiu:
- Ainda não lhe apresentei a minha mulher. Ela já sabe quem você é. Os seus livros por aí andam e não é muito por minha vontade; que esta senhora quer por força que eu lhe pergunte se as histórias dos seus romances aconteceram ou não. Ela agora que lho pergunte e você minta à sua vontade.
- Todas as histórias dos meus romances são verdadeiras, minha senhora. - respondi eu. - Uns casos aconteceram, outros podiam acontecer; e logo que podiam, é quase evidente que aconteceram; porque as dores não se inventam: ou se experimentam ou se adivinham."


Camilo Castelo Branco, A Doida do Candal, 11ª ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1971, pp. 275-276.

Sunday, March 21, 2010

LUGARES DO ESQUECIMENTO 3


"O meu nome é um degrau
na enorme escadaria dos nomes.
Arquitectura admirável esta que cresce
dentro e fora, gente que sobe, gente que
desce, um corpo total moldando-se
sem urgência de rigor.

Dói-me cada nó dado no fio das imagens.
Os sinais aglomerados numa só palavra.
Ainda que o lume permaneça neste
quarto fechado, o ar é cada vez mais puro.
Devo então falar de terror se passo os olhos
pela rubra brasa do esquecimento.
Nenhum vestígio, porém, da face iluminada
que quebrou os espelhos.

O halo perfumado das folhas sai
para fulminar a paisagem.
As minhas atenções entram vagarosas
no fascínio do delito - irei romper
o véu do nascimento.
As veias rebentam soberanamente.
E eu ascendo pelos nomes,
atinjo a rarefacção, existo como
o profundo estranho.

Eu sei, os calendários.
Mas a minha respiração desmede-se em eras.
Digo: não há data para este momento, agora.

Não há data para o grande assombro."


Vasco Gato, Imo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, pp. 21-22.

Thursday, March 18, 2010

AMAI FREIRATICAMENTE



"Lá dentro dos mosteiros há santas que redobram o martírio e há pecadoras que consolam. Não se decide quais sejam as mais credoras do céu.
As consoladoras são umas que dizem às que choram golpeadas de saudades:
- Meninas, amai, se tendes quem. Isto aqui não é inferno: é purgatório onde a esperança não morre nunca. No inferno é que há o constante blasfemar das coisas divinas. Meninas, amai. Quando mais não possa ser, diverti-vos, aligeirai o tempo. As grades não represam as enchentes do coração. Ide ver como por lá as velhas ainda representam o último acto da sua comédia. Espairecei, noviças; e, se a mestra vos não deixa, vesti o hábito de professas; que depois as vossas infidelidades ao divino esposo já correm a responsabilidade da vossa emancipação de casadas com Deus. Andai, meninas, amai santamente, amai idealmente, amai freiraticamente: aguçai os espíritos na pedra das paixões da terra e vereis como a alma se desfaz em asas a voejarem para os espirituais amores, aí por volta dos cinquenta anos pouco mais ou menos. (...) Ama por necessidade, ama por instinto, ama por passatempo, ama por vingança, ama, para que em breve o diga, para não morrer.
Nisto do amor diz a experiência que os vulcões, rebentando, cavam voragens. O coração salta na lava; mas o perigo é a queda, se a lava esfria. Debaixo está a garganta que a explosão abriu."


Camilo Castelo Branco, A Doida do Candal, 11ª ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1971, pp. 202-203.

Wednesday, March 17, 2010

LUGARES DO ESQUECIMENTO 2


"Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígios pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar."


Vasco Gato, Imo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 14.

Tuesday, March 16, 2010

SOBRE O NADA EU TENHO PROFUNDIDADES



"A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não entender quase tudo.
Prepondero a sandeu.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim, poderoso não é aquele que descobre ouro,
Poderoso para mim é aquele que descobre as insignificâncias:
(do mundo e nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei muito emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios."


Manoel de Barros, O Encantador de Palavras, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 18.

Sunday, March 14, 2010

LUGARES DO ESQUECIMENTO 1


"Para a brancura das aves é já tarde,
só a morte não morre deste lado do muro,
só a morte
não põe fogo às suas naves.

Por um rasgão do céu uma luz baça
escapa-se ferida,
mal ilumina a mão vacilante,
pelo chão entorna o mel.

É na orla da noite
que as veredas desatam os nós,
e uma voz de criança
suplica um fio para atar o silêncio.

Ou a palavra - lugar de esquecimento."


Eugénio de Andrade, "Branco no Branco", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 373.

Saturday, March 13, 2010

AS BASES DA PENUMBRA



"Ora os cavalos de Aquiles, afastados do combate, estavam
a chorar desde o momento em que primeiro ouviram
que seu cocheiro tombara na poalha, chacinado por Heitor.
Com efeito Autodemonte, o valoroso filho de Diores,
muitos golpes lhes inflingiu com o célere chicote,
muitas vezes lhes falou com palavras suaves, muitas vezes
com ameaças; mas eles recusavam-se tanto a regressar para as naus
no amplo Helesponto como para a luta no meio dos Aqueus.
Tal como fica imóvel uma coluna sobre o túmulo
de um homem morto ou de uma mulher -
assim imóveis permaneciam como o carro lindíssimo,
vergando as cabeças até ao chão. Das suas pálpebras
escorriam lágrimas candentes até ao chão ao chorarem
com saudades do seu cocheiro. Sujavam-se as suas crinas fartas,
que caíam debaixo da coleira de ambos os lados do jugo.
Ao vê-los se compadeceu deles o Crónida
e abanando a cabeça assim disse ao seu coração:
"Ah, coitados, por que razão vos demos ao soberano Peleu,
um homem mortal? E vós que sois isentos de velhice e imortais.
Foi para que entre os homens desgraçados sentísseis a dor?
Pois na verdade nada há de mais miserável que o homem
de todos os seres vivos que vivem e rastejam em cima da terra."


Homero, Ilíada, XVII, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia/Biblioteca editores Independentes, vrs 426-447, pp. 357-358.

Thursday, March 11, 2010

DO ÔMPHALOS


"O buraco dentro do livro é um lugar esquecido pelo solo pausado,
a admiração tímida
da luz útil se querer fechar: uma flor nocturna com sono contra a voz,
concentrada numa força, energia,
potência. Não há medo,
as pedras guardadas fazem peso no corpo, peso no riso. Onde está a terra
que acolhe a sombra na qual se
abriga o poema?
O mundo tem a sua atenção antiga, violenta, música dormente dentro de
retratos esquecidos,
a arquitectura secreta de claustros treina o silêncio
quando chega outra face parada, a tímida ameaça apontar a
obediência da carne lenta, pesada,
medieval.
O buraco ou é a destruição do nome ou não é nada.
Descobrir o caminho da terra orgulhosa no seu espaço, as mãos coladas à
terra apontarem a mesma cor, aumentarem
a cor de Deus. (...)"


António Madureira Rodrigues, A Potência do Meio dos Nós, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 33.

Tuesday, March 9, 2010

DAS NECESSIDADES

"Terceira - Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

Segunda - Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

Primeira - Ao menos, como acabou o sonho?

Segunda - Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é essa coisa vaga a que eu chamo a minha vida?... Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia... Vede: vai haver o dia real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza."


Fernando Pessoa, "O Marinheiro - Drama estático em um quadro", in Poemas Dramáticos de Fernando Pessoa, 1º volume, Lisboa: Edições Ática, s.d., pp. 52-53.

Sunday, March 7, 2010

DOS PARRICIDIOS E DA FALTA DE CONFIANÇA NO AUTOR


"- Em todos os crimes de morte há um poder que se esconde - disse José Rui. Embora a cidade do Porto lhe parecesse indiferente, ele era um seu nativo, morador incondicional e aprendiz constante. Aprendia com o Porto o que não seria possível com outro lugar do mundo, isto é: o lado fechado e não tão indeciso como se julga, da natureza humana. - Seria muito interessante descobrir o que levou Hamlet a matar o pai.
- Não foi Hamlet quem matou o pai - disse Genaro, perto da indignação. Estava, como noutros tempos, meio deitado num sofá de orelhas, só que este em bom estado e em maiores proporções.
- Não se pode acreditar no que dizem os autores. A ficção encobre as verdades mais evidentes. Quanto mais perto está o narrador das «grandes pastagens» do inconsciente, mais a verdade está ao seu dispor. Ésquilo era um desses, e por isso o tema do parricídio é tão bem contado e tão claro. A pior literatura é feita com escritores assustados, ainda que inteligentes. Aqueles de quem Nietzsche disse: "é preciso ser muito valente para descobrir o que é do nosso conhecimento."
-Isso está muito deturpado.
-Deturpar é reagir. O autor reage à realidade e por isso Shakespeare não aceita que Hamlet seja o assassino do pai. Mas é. "Toda a paixão é salário", isto diz Santo Agostinho. Lançamo-nos no fogo para que ele nos consuma até ficar só um resíduo de ouro."

Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo, 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2004, p.247.

Saturday, March 6, 2010

DAS GRANDES FORMULAÇÕES



"Onde fica guardado o tempo? Posso agora dizer
que é dentro dos olhos. Mesmo que se conservem assim límpidos
acabam por pousar neles algumas folhas. Desejaria
que fosse assim mais fácil este caminho onde se encontra
o vestígio de outros passos, uma voz quase extinta. Sei
como o repouso é menos que uma palavra. Dali vemos
as mesmas ondas que se julgava estarem há muito esquecidas,
a neblina que parece ser um arco onde se reune
este pressentimento que vinha ao nosso encontro
sem o sabermos. Reservo alguns instantes para a profundidade
da água; outros para o modo como estremecem as mãos."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 80.

Wednesday, March 3, 2010

O ENIGMA DA IRONIA - PARA JOMF


"Quando Hamlet, Gran Senhor predestinado,
Ressuscitou em mim sua Loucura,
Quis eu, para o trazer de braço dado,
Modernizar-lhe o espírito e a figura:

Pondo-lhe um riso frígido e afiado
Nos lábios torcidos de amargura,
Modelei-o num fraque bem talhado
Que lhe vincasse os gestos e a estatura.

Depois lhe abri o enigma da Ironia
Para que a sua atroz melancolia
Calçasse luvas... e ostentasse o ar fino.

Hoje, ó meu Grande! ó Príncipe de todos!
Já te posso exibir: Tens belos modos,
E sofres... mas consoante o figurino."


José Régio, de "Biografia", in Não Vou Por Aí! - Antologia Poética, selec. e org. de Isabel Cadete Novais, 3ª edição. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 38.

Tuesday, March 2, 2010

PONTOS DE FUGA


"O velho mundo tendia para o seu fim. Estava a murchar o horto deleitoso da jovem estirpe - para o alto, para o espaço livre e ermo se esforçavam por erguer os homens, não ainda na idade infantil, já em pleno crescimento. Desvanesciam-se os deuses, e com eles todo o seu séquito - só e sem vida a Natureza estava. Cingiram-na o árido número e a exigente medida, com cadeias de ferro. Tal como se fora em poeiras e ar, tombou em palavras obscuras a ilimitada floração da vida. Haviam fugido a fé que conjura e aquela que tudo transforma e a todos irmana, companheira celeste, a fantasia."


Novalis, Os Hinos à Noite, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 41.

Monday, March 1, 2010

MARÇO VIRADO DE RABO É PIOR QUE O DIABO


"Este é um lugar estranho, um lugar extraordinário e interessante. Não há nada que se assemelhe por aí. As pessoas são todas loucas, os outros animais são todos loucos, a terra é louca, a própria Natureza é louca. O homem é uma curiosidade maravilhosa. Quando está no seu melhor, é uma espécie de anjo niquelado de baixa categoria; no seu pior, é inqualificável, inimaginável; e, tudo considerado e a toda a hora, é um sarcasmo. Apesar disso, intitula-se, de modo lisonjeiro e com toda a sinceridade, a «mais nobre obra de Deus». É a verdade, isto que vos conto. E esta ideia não é novidade nele: ele tem-na discutido ao longo dos tempos e acreditado nela. Acreditado nela, e não encontrou ninguém em toda a sua raça que se risse disso."



Mark Twain, "A Carta de Satanás", in Cartas da Terra, trad. Miguel Baptista, Lisboa: Bertrand Editora, 2009, p. 13.