Wednesday, June 30, 2010

BALANÇO MENSAL 06



"eu simplesmente ardi fui o retrato
das suas mãos que tecem pesadelos
na margem que deixaram
as migrações do vento

o meu país tem dormições abertas
ao público dos seus
doces tormentos
eu simplesmente ouvi a luz do vento"


António Franco Alexandre, "Visitação" in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 124.

Saturday, June 26, 2010

LUA ENTRE PARALELAS



"- Tudo isso é complicado porque decorre no tempo - aquela coisa estranha que nos faz sentir as coisas mais banais como novas, desconhecidas e estranhas - tentei colocar-me à altura do seu discurso.
- O mundo é-me estranho e desconhecido como um moinho abandonado logo após a sua construção: um templo invisitável. Mesmo observando a minha fotografia reparo que a metade direita exprime admiração e medo e a esquerda - firmeza e desprezo. O mais angustiante é que não se vislumbra nenhuma conexão entre as duas. A vida não me atrai. Porque não consigo distanciar-me o suficiente dela. E andamos juntos por caminhos paralelos e sinuosos mas nenhuma sinuosidade é suficiente para nos vislumbrarmos embora por instantes. É apenas um sentimento de que estamos acompanhados - uma sensação que não vem directamente dos sentidos, mas das confabulações da razão.
- A vida pessoal é acidental, ocasional, inesperada. Não passa de imitação da experiência social. Todas as convicções em contrário têm carácter de emergência e não de espontaneidade - a vivência "pessoal" tira ao indivíduo a máscara para dele fazer uma pessoa. Descrever o tédio não é agradável. A descrição é a única parte visível deste corpo que se desloca, rápida ou lentamente, mas sempre limitado por obstáculos, irreconhecíveis de tão banais, de tão conhecidos, de tão longe ou tão perto num passado que não passa e se mantém estendido como névoa e que pelo artifício do sol se afigura imóvel ao deslocar as paisagens... É uma verdade abismal! Não entende?"


Dimíter Ánguelov, Partida Incessante, Lisboa: Edições Nova Ática, 2001, pp. 27-28.

Thursday, June 24, 2010

FRESCO CALOR, ESCURO



"
1

Por esse caminho vais dar a um ribeiro
oculto nas pedras, e daí são dois passos pró inferno!
fiquei surpreso com a informação, assim da cara nua
à saída de casa, pousando a mala azul já encharcada,

como se houvesse destinos nesta terra! encolho os ombros,
as borboletas mudam de cor, gigantescas, violeta castanho,
tudo é real e diferente de si, mesmo as anémonas
e o cheiro de morte que deitam por dentro. os planetas,

acredito, emitem pequenos sinais, mas tenuamente
deitam-se no ovo oco do céu,
e a grande chuva entra-me pelo corpo e fica
dentro a chover, coisa inútil, intensa.

foi assim que aprendi que os homens morrem aos pedaços,
e muito antes de eu nascer já esta torpe história seguia
«o seu rumo», aqui e além facilitado pela chacina militar,
e ninguém pedirá a minha opinião, que não é nenhuma.

o poema traz consigo um fresco calor escuro,
é um pouco cão, miserável e mudo.
os fios elécricos atravessam a rua, lado a lado; o cigarro lançado
ao ar, explode contra as folhas.

dorme comigo, ribeiro seco.
deixa-me na lisa pedra que te encerra. tudo começa
no cais de água nenhuma; um pouco cão, mais nada:
a arte do soneto e alguma rima."


António Franco Alexandre, "Dos Jogos de Inverno", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 239-240.

Wednesday, June 23, 2010

PLENITUDE


"Nada vale o silêncio, se o não move
um impulso exemplar de voz total.
Vazia é toda a esperança que não sofre.
Errado é todo o amor que não se dá."



Armindo Rodrigues, "Flauta de Cana", in Obra Poética, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970, p. 69.

Tuesday, June 22, 2010

A AMEAÇA DAS PEDRAS



"São ainda obscuras as razões que nos obrigam a progredir pelo «suor do rosto», através do sofrimento, do mal e dos tormentos. Quando uma etapa é alcançada e o caminho parece desobstruído dos pérfidos calhaus, uma mão invisível lança novos blocos que parecem obstruí-lo por completo, tornando-o irreconhecível.
Então, infalivelmente, um homem surge, semelhante a qualquer um de nós, mas transportando uma força misteriosa e visionária. Ele observa e ensina. Por vezes quer libertar-se desse dom superior e sublime, dessa cruz pesada que o faz vergar. Mas não pode. Perseguido por troças e ódios, arrasta a pesada carroça da humanidade, tentando, com todas as suas forças, libertá-lo das pedras que o retêm."


Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, trad. Maria Helena Freitas, 7ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, p. 25.

Monday, June 21, 2010

PARA LÁ DAS MONTANHAS



"Para lá das montanhas dormentes
que tenho em frente dos olhos,
ficam outras montanhas,
e rios,
e planícies,
e mares profundos.
Estou farto,
estou farto
das mesmas aventuras sem realidade,
dos mesmos sacrifícios sem perspectiva,
dos mesmos ódios sem perdão,
todos os dias,
todos os dias.
Apetece-me partir.
Mas onde há,
mas onde há algum lugar sem este
desejo, afinal, talvez
só de novas saciedades?"


Armindo Rodrigues, "Voz Arremessada ao Caminho", in Obra Poética, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970, p. 42.

Sunday, June 20, 2010

FUNUS, FUNERIS



"Basta absolutamente ser a obra de misericórdia feita a mortos, por ser misericórdia e verdade, se verdadeiramente se faz aos mortos, como a mortos. Mas alguma vez, e muitas, não basta, porque muitas vezes são servidos e honrados os mortos, não por si, mas por respeito dos vivos. E isto não é misericórdia e verdade, senão hipocrisia e mentira sem misericórdia. Não vedes nas mortes e nos funerais, principalmente dos grandes, os concursos e assistências de todos os Estados que se fazem àqueles perfumados cadáveres, de cujas almas porventura se não tem tanto cuidado? Pois não cuideis que cuidamos que o fazeis por piedade dos mortos. Todos sabemos, tão bem como vós, que são puras cerimónias e lisonjas com que incensais os vivos."


Padre António Vieira, Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados, Lisboa: babel, 2010, p. 39.

Friday, June 18, 2010

PORQUE POR VEZES NOS FEZ PERFEITAMENTE FELIZES



" 18 de Junho [1995]

Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei por fora, amigos e conhecidos não pararam de me perguntar pelos meus cegos. Chegou a altura de eles responderem por si mesmos."


José Saramago, Cadernos de Lanzarote, vol. III, Lisboa: Editorial Caminho, 1996, p. 132.

PENAS



"Como vemos, o conceito de tempo não tem qualquer significado antes do começo do Universo. Este facto foi apontado por Santo Agostinho. Quando lhe perguntaram: «Que fazia Deus antes de criar o mundo?» Agostinho não respondeu: «Andava a preparar o Inferno para todos os que fazem essas perguntas.» Em vez disso, respondeu que o tempo era uma propriedade do Universo que Deus tinha criado, e que não existia antes do começo do Universo."


Stephen W. Hawking, Breve História do Tempo - do Big Bang aos Buracos Negros, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa: Gradiva, 1988, p. 26.

Thursday, June 17, 2010

VÊM AÍ DIAS DIFÍCEIS



"Vêm aí dias difíceis.
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoçeiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.

Do outro lado enterra-se a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.

Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!

Vêm aí dias difíceis."


Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado, trad. João Barrento e Judite Berkemeier, Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, pp. 39-41.

Wednesday, June 16, 2010

ESQUECERÁS


"Esquecerás o tempo magnífico esquecerás que todos os teus actos
necessários e isolados o único de que verdadeiramente depende a
tua vida
o mar o pleno dia o que em novembro da areia vai restando
esferovite raízes de árvore os frascos de óleo fula corroídos
algas um braço de boneco tanta coisa mesmo tanta coisa.

Esquecerás ou não algumas notas mais sobre a justiça vindas
dos Princípios da Moral de David Hume que nunca leste mesmo sabendo
a praia tantas vezes tão deserta
o livro ali pousado marcado há tantos anos pela carta um «valete
de copas que quer dizer» tem que ver com as vias mais profundas
os ruídos que correm ou os que vivem na mesma cavidade da árvore
termo oposto por entre este tempo magnífico
esquecerás.
Esquecerás ou não as formas dos termos animais o céu a terra a
própria paz. Tu próprio um conto de ladrões e mentirosos
atrevido intérprete
um pequeno quarto talvez uma janela sábado ou antes
uma porta aberta sobre o mar entre-aberta sobre as rochas
sobre uma manhã de chuva
uma pequena porta, mesmo, esquecerás."


João Miguel Fernandes Jorge, "Direito de Mentir", in Obra Poética, vol. 3, 2ª ed., Lisboa: Edit. Presença, 1988, p. 96.

Tuesday, June 15, 2010

DESENGANO DE CRISTAL




"Será brando o rigor, firme a mudança,
humilde a presunção, vária a firmeza,
fraco o valor, cobarde a fortaleza,
triste o prazer, discreta a confiança

Terá a ingratidão firme lembrança,
será rude o saber, sábia a rudeza,
lhana a ficção, sofística a lhaneza,
áspero o amor, benigna a esquivança.

Será merecimento a indignidade,
defeito a perfeição, culpa a defensa,
intrépido o temor, dura a piedade.

Delito a obrigação, favor a ofensa,
verdadeira a traição, falsa a verdade,
antes que vosso amor o peito vença."


Sóror Violante do Céu, Rimas Várias, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 70.

Monday, June 14, 2010

SÃO BACO



"De que é feito um espectro? De signos, ou melhor, mais precisamente, de marcas, isto é, desses signos, nomes cifrados ou monogramas que o tempo risca sobre as coisas. Um espectro traz sempre consigo uma data, e é, assim, um ser intimamente histórico. Por isso, as velhas cidades são o lugar eminente das marcas que o flâneur lê como que distraidamente no decorrer das suas derivas e dos seus passeios; por isso as más obras de restauro, que embalam e uniformizam as cidades europeias, apagam as suas marcas, tornam-nas ilegíveis. E por isso as cidades - e de maneira especial Veneza - parecem-se com os sonhos. No sonho, com efeito, cada coisa faz sinal àquele que a sonha, cada criatura sua exibe uma marca, através da qual significa mais do que tudo o que os seus traços, os seus gestos, as suas palavras alguma vez poderiam exprimir. No entanto, também quem tenta obstinadamente interpretar os seus sonhos, está algures convencido de que eles nada querem dizer. Assim na cidade tudo o que aconteceu naquela calçada, naquela praça, naquela rua, naqueles alicerces, naquela rua de lojas, de repente condensa-se e cristaliza numa figura, ao mesmo tempo lábil e exigente, muda e amistosa, intensa e distante. Essa figura é o espectro ou o génio do lugar."


Giorgio Agamben, "Da Utilidade e dos Inconvenientes do Viver entre Espectros", in Nudez, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, pp. 52-53.

Sunday, June 13, 2010

THOUGH WISE MEN AT THEIR END KNOW DARK IS RIGHT


"Não entres docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite serena.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis acções ter dançado na baía verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o voo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram o seu caminho,
não entram docilmente nessa noite serena.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entre docilmente nessa noite serena.
Odeia, odeia a luz que começa a morrer."


Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 41.

Friday, June 11, 2010

AVANÇAR E RECUAR



"Somos um brinquedo em mãos estranhas. Tentamos avançar e recuamos. Queremos o que não queremos. Mas esta contradição é o que tem o homem de mais nobre, é mesmo o sinal humano. Se o homem fosse mau unicamente, não seria um ente contraditório, a negar-se até ao suicídio ou afirmando-se até à auto-idolatria suprema, como Nietzsche."


Teixeira de Pascoaes, O Penitente (Camilo Castelo Branco), 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 143.

Thursday, June 10, 2010

PASSA O TEMPO, O MUNDO NÃO


"Correm turvas as águas deste rio,
que as do céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio,
uas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida.
O mundo, não; mas anda tão confuso
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece."


Luís de Camões, Lírica Completa - II, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1994, p. 304.

Wednesday, June 9, 2010

NÃO TE ESQUEÇAS



"Ouve a luz
Como ainda tem o sabor das algas

Deixei-lhe escrito um recado
Das nuvens

Não te esqueças de ouvir a luz

Não te esqueças que ao sol pôr
Também eu morro

Não te esqueças"


Daniel Faria, Poesia, edição de Vera Vouga, 2ª ed., V. Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006, p. 431.

Tuesday, June 8, 2010

POEMA ROMÂNTICO JÁ ULTRAPASSADO



"Vamos viver sobre a terra com a independência de fantasmas?

Talvez um dia possamos encontrar uma extensão sem limites
encerrada num vale estreito: domínio exclusivo
tranquilo.
O outro o tempo não se aperceberá mais
desta cena repetida: provoco e atiro a sinceridade.

Uma tarde
pelo fim de maio
coloco entre as legendas do sol a nomenclatura de plantas
flores quase desconhecidas.

Se chove estamos mais perto do verão
quais são os teus projectos de fuga?"


João Miguel Fernandes Jorge, "Porto Batel" in Obra Poética, vol. 1, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 73.

Sunday, June 6, 2010

LÓGICA



"Ai d' aqueles que, um dia, depuseram
Firmes crenças n'um bem que lhes voou!
Ai dos que n'este mundo ainda esperam!
Terão a sorte de quem já esperou...

Ai dos pobrinhos, dos que já tiveram
Oiro e papéis que o vento lhes levou!
Ai dos que têm, que ainda não perderam,
Que amanhã, serão pobres como eu sou.

Ai dos que, hoje, amam e não são amados,
Que, algum dia, o serão, mas sem poder!
Ai dos que sofrem! ai dos desgraçados

Que, breve, não terão mais p'ra sofrer!
Ai dos que morrem, que lá vão levados!
Ai de nós que ainda temos de viver!


António Nobre, Despedidas, Lisboa: Vega, s.d., p. 11.

Thursday, June 3, 2010

PARA A VOZ DOS DEUSES



"Nem sempre foi assim. Os deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no acto do amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira. Outrora, também eu ouvi a voz dos deuses no amor, na guerra, nos sonhos e na tempestade - até mesmo na fala de outros mortais."


João Aguiar, A Voz dos Deuses, 14ª ed., Porto: Edições Asa, 1993, p. 14.

Wednesday, June 2, 2010

DESEJO DA ILHA VERDE




"Porque não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmúrio das vagas sonolentas, ao sussurro da brisa do norte?"


Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero, 4ª ed., Lisboa: Biblioteca Ulisseia, s.d., p. 57.

Tuesday, June 1, 2010

JUNHO ABAFADIÇO, SAI A ABELHA NO CORTIÇO




"Bebeste para esquecer
As mágoas do coração;
Mas ele é que não se esquece,
Ele é que não adormece,
Como adormece a razão."


João de Deus, Campo de Flores, 6ª ed., Lisboa: Companhia Editora Portugal-Brasil, s.d., p. 201.