"De que é feito um espectro? De signos, ou melhor, mais precisamente, de marcas, isto é, desses signos, nomes cifrados ou monogramas que o tempo risca sobre as coisas. Um espectro traz sempre consigo uma data, e é, assim, um ser intimamente histórico. Por isso, as velhas cidades são o lugar eminente das marcas que o flâneur lê como que distraidamente no decorrer das suas derivas e dos seus passeios; por isso as más obras de restauro, que embalam e uniformizam as cidades europeias, apagam as suas marcas, tornam-nas ilegíveis. E por isso as cidades - e de maneira especial Veneza - parecem-se com os sonhos. No sonho, com efeito, cada coisa faz sinal àquele que a sonha, cada criatura sua exibe uma marca, através da qual significa mais do que tudo o que os seus traços, os seus gestos, as suas palavras alguma vez poderiam exprimir. No entanto, também quem tenta obstinadamente interpretar os seus sonhos, está algures convencido de que eles nada querem dizer. Assim na cidade tudo o que aconteceu naquela calçada, naquela praça, naquela rua, naqueles alicerces, naquela rua de lojas, de repente condensa-se e cristaliza numa figura, ao mesmo tempo lábil e exigente, muda e amistosa, intensa e distante. Essa figura é o espectro ou o génio do lugar."
Giorgio Agamben, "Da Utilidade e dos Inconvenientes do Viver entre Espectros", in Nudez, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, pp. 52-53.
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