Thursday, June 24, 2010

FRESCO CALOR, ESCURO



"
1

Por esse caminho vais dar a um ribeiro
oculto nas pedras, e daí são dois passos pró inferno!
fiquei surpreso com a informação, assim da cara nua
à saída de casa, pousando a mala azul já encharcada,

como se houvesse destinos nesta terra! encolho os ombros,
as borboletas mudam de cor, gigantescas, violeta castanho,
tudo é real e diferente de si, mesmo as anémonas
e o cheiro de morte que deitam por dentro. os planetas,

acredito, emitem pequenos sinais, mas tenuamente
deitam-se no ovo oco do céu,
e a grande chuva entra-me pelo corpo e fica
dentro a chover, coisa inútil, intensa.

foi assim que aprendi que os homens morrem aos pedaços,
e muito antes de eu nascer já esta torpe história seguia
«o seu rumo», aqui e além facilitado pela chacina militar,
e ninguém pedirá a minha opinião, que não é nenhuma.

o poema traz consigo um fresco calor escuro,
é um pouco cão, miserável e mudo.
os fios elécricos atravessam a rua, lado a lado; o cigarro lançado
ao ar, explode contra as folhas.

dorme comigo, ribeiro seco.
deixa-me na lisa pedra que te encerra. tudo começa
no cais de água nenhuma; um pouco cão, mais nada:
a arte do soneto e alguma rima."


António Franco Alexandre, "Dos Jogos de Inverno", in Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 239-240.

No comments: