Friday, July 29, 2011

VIVA O ÓCIO



"Um peixe cospe espuma
o grou branco brinca com as sombras
as vagas de jade são espelhos onde as nuvens de outono vêm
lavar-se
repouso no pequeno quiosque, brisa sob o sol frio.
Atravessando mil hastes de bambu, as três veredas de musgo"
Zhang Kejiu, Cinquenta "Xiaoling", selecç. e trad. Albano Martins, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 83.

Thursday, July 28, 2011

LOUVOR DO PRIMITIVO


(museu arqueológico, Istambul)

  
"Voltava a era de Afrodite e, dos quatro ângulos da terra, a Gog e Magog, todas as gentes correriam a beber na taça de oiro. O que nas aldeias serranas se cometia a céu descoberto, a favor dum ardil selvagem e por isso desconcertante, grassava nas cidades, nas grandes metrópoles da civilização, com outro estilo, mas não com menos denodo. A carne ululava pela carne; o homem estabelecia a sua lei moral nesta dualidade: «idealista, sim; animal, sempre.» Era a doutrina que andava sobre o caos; era a fórmula de regra pragmática com que pretendiam governar-se as gerações futuras."
Aquilino Ribeiro, Andam Faunos Pelos Bosques, Lisboa: Livraria Bertrand/Círculo de Leitores, 1983, p. 259.

Wednesday, July 27, 2011

HOMENS DE GESSO


"O homem é simplesmente um gesso, embora um gesso admirável, que se marmoriza e transfigura na lenta obediência às leis reveladas de Deus!
- E não trabalharia Deus algumas criaturas fora dos moldes e naturezas vulgares?
Creio que sim. A essas criaturas disse Deus talvez: ide e revelai-vos. E elas, revelando-se, revelaram-no, acrescentando Deus do génio inconsciente da sua imagem humanizada - milagre ainda divino!
- Que importa o Génio! disse o santo irado. O génio mundano só é apreciável quando serve a Alma.
Que tem criado em geral?
- Monstros. Embora monstros de Beleza."
Visconde de Vila-Moura, "Ismael", in Ficção e Narrativa no Simbolismo, selec. Fernando Guimarães, Lisboa: Guimarães Editores, 1988, p. 149.

Tuesday, July 26, 2011

CLÁSSICO


"Perdoai-me, Majestade, não é meu desejo perturbar a vossa solidão."

Miklós Szentkuthy, Escorial, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1991, p. 37.
 

Monday, July 25, 2011

NOVAMENTE, AS ESCOLHAS


"Imaginemos um homem cuja fortuna apenas rivalizava com a indiferença pelo que a fortuna em geral permite, e cujo desejo era, muito mais orgulhosamente, agarrar, descrever, esgotar, não a totalidade do mundo - projecto cuja ruína basta o seu simples enunciado -, mas um fragmento constituído dele: perante a indestrinçável incoerência do mundo, tratar-se-ia então de realizar até ao fim um programa, sem dúvida restrito, mas integral, intacto, irredutível.
Por outras palavras, Bartlebooth decidiu um dia que toda a sua vida seria organizada em torno de um projecto único cuja necessidade arbitrária não teria outro fim para além de si mesma."
Georges Perec, A Vida Modo de Usar, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 119.

Sunday, July 24, 2011

AS ESCOLHAS


(museu regional de Lamego)
 "A mutilação que causou a glória da Vénus de Milo poderia ser obra de um antiquário genial; as mutilações também obedecem a um estilo. Uma selecção a que é muito simples chamar gosto contribui para as ressurreições: a partir do Quattrocento, as colecções de antiguidades recolheram mais torsos do que pernas. Muitas vezes preferiram as estátuas de Lagash sem cabeça, os budas kmeres sem pernas, as feras assírias isoladas. O acaso quebra e o tempo metamorfoseia; mas somos nós que escolhemos."

André Malraux, O Museu Imaginário, trad. Isabel Saint-Aubyn, Lisboa: Edições 70, 2011, p. 182.
 

Saturday, July 23, 2011

DA TRANSFORMAÇÃO XILOPLÁSTICA


(museu regional, Lamego)

"A pintura que cobre as estátuas românicas de madeira que chegaram até nós foi transformada pelo menos por uma pátina, sempre pela decomposição; e a transformação que uma e outra introduzem atinge a própria natureza destas esculturas. O nosso gosto é tão sensível à decomposição requintada de cores destinadas a brilhar quanto o foi o gosto do século passado ao verniz dos museus; se uma Virgem românica pouco degradada e uma Virgem carcomida de Auvergne pertencem, para nós, à mesma arte, não é por a Virgem de Auvergne ser um vestígio da outra, mas porque a Virgem intacta participa, em menor grau, na qualidade que reconhecemos à Virgem minada. Tanto mais que as estátuas medievais não se encontram intactas: ou retiram da sua decomposição uma qualidade semelhante à que os bronzes devem à sua pátina; ou foram repintadas ao longo dos séculos (e não apenas as da Europa). Daí o carácter falsamente popular de tantas figuras românicas ou góticas de Espanha e de Itália."
André Malraux, O Museu Imaginário, trad. Isabel Saint-Aubyn, Lisboa: Edições 70, 2011, p. 179.

Friday, July 22, 2011

PODENDO AINDA SERVIR COMO HOMENAGEM A LUCIEN FREUD


"
83
Quem pudera sospeitar
que no amor e na fé
me havíeis de faltar!
Mas pois já isto assi é,
tudo é pera cuidar;
pois, por mais mal que se guarde,
sempre será meu amor
como a sombra, em quanto eu for:
quanto vai sendo mais tarde,
tanto vai sendo maior."

Cristóvão Falcão, Crisfal, pref. e notas Rodrigues Lapa, 3ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1978, p. 72.

Thursday, July 21, 2011

ONDE SÊ-LO QUISERA


"52
Junto de ua fonte era
o lugar onde fui posto,
onde sê-lo não quisera,
sendo bem lugar de gosto
pera quem gosto tivera;
mas a mim nem o passado
nem o que me era presente
nada me não fez contente,
que nisto o magoado
é como o muito doente.

53
Coberta era a fonte
de tam fresco arvoredo,
que não sei como o conte,
mui quieto e mui quedo,
por ser antre monte e monte.
A noite, de ventos muda,
como saudade escolha;
e, por que mais prazer tolha,
chovia água miúda
por cima da verde folha."

Cristóvão Falcão, Crisfal, pref. e notas de Rodrigues Lapa, 3ª edição, Lisboa: Sá da Costa, 1978, pp. 54-55.

Wednesday, July 20, 2011

CHAVE PARA O FUTURISMO


"DIABO (para Jesus) - Deixa de ser Deus um instante, e permite-me que goze um pouco da amável companhia desta senhora, que, há muitos anos, admiro!

MARQUESA (aflita, os olhos em Jesus) - Quererá ele a minha alma?

DIABO - A alma, senhora Marquesa, pode entregá-la a Jesus Cristo. Eu preferia o resto...

MARQUESA  - O resto quê?

DIABO - Esse corpo de rosa e neve. (Para o poeta) Não é assim que se diz em verso, meu poeta?

POETA - Ele também me conhece? A minha fama já chegou ao inferno!(Para o Diabo, referindo-se ao jornalista) E deste novel escritor você já ouviu falar?

DIABO - Conheço-o a si, a ele e a todas as pessoas que me cercam. No inferno, donde venho, é que vós existis na realidade. Lá é que você é um poeta e este senhor é um jornalista. Lá, é que os seres existem. Aqui, neste mundo, e ainda mais nesta Lisboa, sois meras sombras ilusórias. Sois reflexos emanados de inferno, onde as criaturas são estrelas e a vida tem o resplendor do sol.

SENHORAS - Ah! Ah!

OUTRAS - Que horror!

DIABO - Cá em cima, só existe o fumo; mas lá em baixo é que crepita a labareda (Referindo-se a Jesus) Este Deus tem a monomania dos espectros: É a segunda vez que os visita: Mas da sombra não pode sair a luz. Por mais sangue divino que injectes nestes defuntos, serão sempre a mesma carne inanimada. Não te sacrifiques mais. O segredo da vida pertence-me. A vida e o fogo do inferno (E num gesto de desdém) Fica-te com o segredo da morte e divagando entre fantasmas.

MARQUESA - Como o diabo discursa!

POETA - O diabo é futurista!"
Raul Brandão/Teixeira de Pascoaes, Jesus Cristo em Lisboa, Lisboa: Vega, 1984, pp. 84-85.

Tuesday, July 19, 2011

CASSANDRA


"Nas mãos o baraço das ervas
amarelecidas, azedas secas avermelhadas
no cabelo em madeixas, ergueu-se,
disse: as sombras andam
pelos caminhos, por ali passou a chuva,
as sombras já não passam.

Calou-se. As moscas percorriam
a luz da janela. Disse:
Trazias a envolver-te a fronte
as alegrias dos caminhos, a maré
dos dias, e das noites estreladas
canaviais ressoando de ecos.

Falou: hás-de arrastar
a corrente dos medos, respirar
trevas sem fim, andar
com a morte, brenhas de lamentações
enredando-te os passos.
Calou-se. Atravessei a soleira
para encher aos animais a manjedoura,
para colher sob o arco a camomila,
para ir buscar ao poço o sono."
Johannes Bobrowski, "Nas brenhas do tempo", in Como um respirar - antologia poética, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1990, p. 115.

Monday, July 18, 2011

MAS A MIM QUEM ME SUPORTA


"Crepúsculo.
Como desliza o campo
ao nosso encontro, a corrente larga,
planícies! Fria, fora de tempo,
a lua. Um golpe de asa agora.

Nas margens dos rios,
longe,
quando o amplo
céu os abraçava,
ouvimos cantar
na sombra das florestas. Um antepassado
procurava valas engolidas por ervas.

Coração de pássaro, leve, pedra
emplumada cavalgando o vento.
Caindo nas
névoas. As ervas e a terra
recolhem-te, um rasto
de morte no visco de um caracol.

Mas
a mim quem me suporta,
homem de olhos fechados,
boca perversa, com mãos
que nada seguram, que sequioso
segue o rio,
lançando na chuva
a respiração do outro tempo,
o que já não volta, o outro,
não nomeado, como nuvens,
um pássaro de asas abertas,
irado, contra o céu,
selvagem, contraluz."

Johannes Bobrowski, "Tempo da Sarmácia", in Como um respirar - antologia poética, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1990, pp. 11, 13.

Sunday, July 17, 2011

IN XANADU


"In Xanadu did Kubla Kahn
A stately pleasure-dome decree:
Where Alph, the sacred river, ran
Trough caverns measureless to man
         Down to a sunless sea.
So twice five miles of fertile ground
With walls and towers were gridled round:
And there were gardens bright with sinuous rills,
Where blossomed many an incense-bearing tree;
And here were forest ancient as the hills,
Enfolding sunny spots of greenery.

But oh! that deep romantic chasm with slanted
Down the green hill athwart a cedam cover!
A savage place! as holy as enchanted
As e'er beneath a waning moon was haunted
By woman wailing for her demon-lover!"

Samuel Taylor Coleridge, "Visionary Fragments" in Selected Poetry, London: Penguin Books, 1994, p. 230.

Saturday, July 16, 2011

THE ENTIRE WORLD IS UNREAL


"6. Two types of creatures come into existence in this world: the divine and the demonical. I have elaborated upon the divine at lenght, now hear Me describe the Demonical, O Partha.

7. Neither engagement in woedly action nor withdrawal from it is understood by the demoniacal. Neither purity, nor good behaviour or truth is present in them.

8. They say that the entire world is unreal, without foundation, without a Supreme Lord, created without a casual link - in short, that sensual enjoyment is it only raison d'être."
The Bhagavadgita, C. 16, trad. Vrinda Nabar & Shanta Tumkur, London: Wordsworth Editions, 1997, pp. 67-68.

Friday, July 15, 2011

MAIOR QUE A VIDA


"Olha uma última vez
dentro de um corpo fechado
que se abrirá e progride
e cresce durante os anos
que cresce o que é humano.

E já tu te desprendeste
desse objecto olhado
e já conheceste outra gente
com outro nome de invento

ainda o que fixaste te prende
no posto antigo
prendendo a força do olhar
o sentido que lhe deste
na única vez que viste

e o sentido que lhe é próprio
o poder de encantação
que se escapou dos olhos
se muito alerta viste."

Luiza Neto Jorge, "O seu a seu tempo", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 138.

Thursday, July 14, 2011

EPOPEIA


"32. I am Time, the destroyer of worlds, matured, and occupied now in destroying the world. Even were you not here, all the warriors, standing variously arrayed in the different armies, shall be no more."
The Bhagavadgita, C. 11, trad. Vrinda Nabar & Shanta Tumkur, London: Wordsworth Editions, 1997, p. 51.

Wednesday, July 13, 2011

THE FIRST VOWEL-SOUND


"31. I am the wind among the swift, Rama among those who wield weapons, the alligator among fishes, the Jahnavi [Ganga] among rivers.

32. In all creation I am the beginning, the end and even the middle, O Arjuna, the knowledge of the Self among knowledges, the Speech of all those who debate.

33. I am the first vowel-sound [a] among letters, the dual among compounds. I am also the inexhaustible Time, the Giver who faces all directions.

34. I am Death, destroyer of all, and the origin of all that will be in the future. Among women, I am fame, prosperity, speech, memory, intelligence, firmness and mercy.
(...)

40. There is no end to My divine manifestations, O Vanquisher of foes. What I have described is only a brief exposition of My limitless forms.

41. Whatever exists and is imbued with power, glory and magnificence, know that it has come out of a spark of My splendour.

42. But what is the point of your knowing all these details, o Arjuna? - I stand supporting the whole of this cosmos with a sole fragment of Myself."
The Bhagavadgita, C. 10, trad. Vrinda Nabar & Shanta Tumkur, London: Wordsworth Editions, 1997, pp. 45-46.

Tuesday, July 12, 2011

*P-H2TER-


"16. I am the prescribed ritual; I am the sacrifice; I am the food offered to ancestors; I am the medicine prepared from plants; I am the sacrificial mantra; I am also the ghee; I am the Fire, and the offering thrown into the Fire is also Me.

17. I am the father, mother, supporter and grandfather of this world. I am all that makes holy or which can be known. I am the utterance 'Aum', and I am also the rig, sama and yajur [Vedas],

18. The ultimate state, the supporter, the lord, the witness, the dewlling, the refuge, the friend, the origin, the destruction, the existence, the place of repose and the imperishable seed.

19. I cause the heat of the sun, I hold back and release the rain; I am immortality as well as death, the imperishable and the perishable too, O Arjuna."
The Bhagavadgita, C. 9, trad. Vrinda Nabar & Shanta Tumkur, London: Wordsworth Editions, 1997, p.40.

Monday, July 11, 2011

DOS CAMINHOS EM COTOVELO


"62. A man who contemplates the objects of sense develops an attachment to them; attachment gives rise to desire, and desire results in anger.

63. Anger gives rise to confusion, confusion to loss of memory. Loss of memory destroys intelligence and, once a man's intelligence is destroyed, he perishes.

64. But the man whose mind is disciplined and whose senses are under control is free from attachment and aversion though he moves among the objects of sense, and such a person attains serenity.

65. An in serenity, all his misery is destroyed; because the intelligence of the man of serenity is also steadied immediately."
The Bhagavadgita, C. 2, trad. Vrinda Nabar & Shanta Tumkur, London: Wordsworth Editions, 1997, p. 13.

Sunday, July 10, 2011

TENDO AINDA NA CABEÇA O "PEIXE DOURADO" DE PAUL KLEE


"Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete
Nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes."

Arsenii Tarkovskii, «8 ícones», trad. Paulo da Costa Domingos, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 25.

Saturday, July 9, 2011

JACTO


"A uma luz evanescente
Vemos mais agudamente
Que à da candeia que fica.
Algo há na figa silente
Que aclara a vista da gente
E aos raios afia."

Emily Dickinson, 80 poemas, trad. Jorge de Sena, Lisboa: Edições 70, 1978, p. 47.

Friday, July 8, 2011

HIDRODINÂMICA


"A luz é como uma aranha.
Desliza sobre a água.
Desliza sobre as arestas da neve.
Desliza sob as tuas pálpebras
E estende aí as suas teias -
As suas duas teias.

As teias dos teus olhos
Estão presas
À carne e aos ossos
Como a vigas ou à erva.

Há filamentos dos teus olhos
Na superfície da água
E nas arestas da neve."

Wallace Stevens, Harmónio, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, p. 199.

Wednesday, July 6, 2011

TURBILHONAMENTO


"Caí numa armadilha profunda
como dentro de um poço lodoso.
Ó quem poderá salvar-me desta imagem ardilosa
que assombra um amor movediço?
No fundo do poço há junquilhos de sombras
e o meu grito domina as águas.
O camaleão vigoroso observa das hórridas plantas
este meu precipício secreto."

Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 41.

Tuesday, July 5, 2011

LEGÍVEIS FRONTEIRAS



"Os que odeiam a circunstância, o arbítrio quotidiano? Conheço alguns, entregues à esterilidade de um ofício de formas puras, a um silêncio com o qual se pretende demarcar o obtuso rigor, as legíveis fronteiras entre ordens do sensível. Mas eu movo-me no ilegível entre elas. Prefiro sempre o que não vi no que vi. Por exemplo: gosto das pizzarias feitas em série iluminadas à noite. Distraem-me sem me distraírem da tristeza que contêm. Lembram-me aquários, morfologias aquáticas e esquivas a luz fluorescente. No interior dessas lojas, os mínimos gestos revelam tenebrosas almas."

Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 17.

Monday, July 4, 2011

AS ONDAS DA PERSISTÊNCIA


"Olharam pela janela. Nada; vazio. Só uma corrente muito fria fazia pensar que o comboio corria que nem uma fúria.
-Estranho - reparou Ryszpans. - Não se vê absolutamente nada. Vazio em cima, vazio em baixo, vazio à minha frente.
- Que sensações! Parece dia porque está claro, mas não se vê o sol e não há o mínimo sinal de nevoeiro.
- Voamos como no espaço. Que horas podem ser?
Olharam os relógios ao mesmo tempo. Passado um momento o engenheiro levantou os olhos e encontrou o olhar do companheiro que dizia o mesmo:
- Não posso ler nada. As horas fundiram-se numa só linha negra e ondulada...
- Pela qual os ponteiros passam com um movimento errante e sem sentido.
- As ondas da persistência transvazam-se uma na outra, sem princípio nem fim...
- O crepúsculo do tempo..."

Stefan Grabinski, "A linha cega", in O demónio do movimento, trad. Maria José e Wojciech Charchalis, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2003, p. 260.

Sunday, July 3, 2011

RENASCENÇA


"Quando escurece, é preciso acender rapidamente todas as luzes da casa. Nunca se sabe quando o eclipse do sol é total. E a morte precisa de luz para ver na escuridão."
Albano Martins, "Timbres e Alegorias", in  Assim são as algas (Poesia 1950-2000), Porto: Campo das Letras, 2000, p. 278.

Saturday, July 2, 2011

DAS TENTAÇÕES ECFRÁSTICAS : ANDY WARHOL, FLOWERS PHOTOS


"Não pode dizer-se que, na pintura antiga, o sentido religioso sustentasse a figuração: pelo contrário, o sentimento religioso tornava possível uma libertação das Figuras, um surgimento das Figuras fora de toda a figuração. E também não pode dizer-se que a renúncia à figuração seja mais fácil para a pintura moderna, enquanto jogo. Pelo contrário, a pintura moderna é invadida, sitiada pelas fotografias e pelos clichés que se instalam na tela antes ainda de o pintor começar o seu trabalho. De facto, seria um erro acreditar que o pintor trabalha sobre uma superfície branca e virgem. A superfície já está toda ela virtualmente investida por toda a espécie de clichés com os quais será necessário romper. E é na verdade isso que diz Bacon quando fala da fotografia: ela não é uma figuração do que se vê, antes aquilo que o homem moderno vê. A fotografia não é simplesmente perigosa por ser figurativa, mas sim porque pretende reinar sobre a visão, e consequentemente também sobre a pintura."
Gilles Deleuze, Francis Bacon - Lógica da Sensação, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro, pp. 46-47.