Thursday, March 6, 2014

MOIRISAR-SE



" - A matéria que me cá mandou - responderia o eu com ambições de graça - desde que o amor das cristãs lhe desmiolou a cavidade craniana, anda em cata de moiras encantadas, no ímpio propósito de moirisar-se, se alguma envolver as madeixas negras, destrançadas com pente de oiro e pérolas. Neste ruim fadário, aquela pobre matéria, onde me acho transmigrado por efeito de não sei que malfeitorias da minha vida anterior, vagamundeia por castelos velhos, pardieiros ensilveirados, e toda a espécie de ruinarias. Eu vou, naquele corpo onde me ele leva; porém assim que sinto latejar-lhe no coração alguma saudade de amigo, aperto com ele, estampo-lhe painéis de bem tristes memórias em tudo que possa lisonjear-lhe os sentidos grosseiros, e avoejar ao amigo, que lhe deu no coração o rebate da saudade. Por isso aqui estou."


Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, 4ª ed., Porto: Livraria Chardron, s.d., p. VIII. 

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