"EU: - Então quereis vender-me tempo?
ELE : - Tempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro, não é só com esse artigo que o Diabo faz negócios. Só ele não nos faria merecer o preço do fim que será nosso. O que importa é a espécie de tempo que se fornece! Um tempo grandioso, um tempo louco, um tempo totalmente endiabrado, com fases de júbilo e de folia, mas também, como é natural, com períodos um tanto miseráveis ou mesmo inteiramente miseráveis. Não tento negá-lo e até o realço orgulhosamente; pois é assim que deve ser, de acordo com a natureza e a mentalidade dos artistas, que, como se sabe, tendem a exceder-se em ambas as direcções, e para os quais é perfeitamente normal ultrapassarem um pouco os limites. Na sua vida, o pêndulo vai ininterruptamente de cá para lá, entre a exuberância e a melancolia. Esse vaivém é comum; é, por assim dizer, ainda burguesmente moderado à maneira dos nuremberguenses, em comparação com aquilo que nós propiciamos. Pois, nesse género, oferecemos o máximo: proporcionamos enlevos e iluminações, experiências de desembaraço e desregramento, de liberdade, segurança, facilidade, sensações de poder e triunfo, que fazem o nosso homem perder a fé nos seus próprios sentidos e ainda lhe proporcionam uma admiração colossal pelas suas próprias realizações, que até pode induzi-lo a renunciar de bom grado a qualquer estima que venha de outros e de fora, sob o frémito do narcisismo e até mesmo o delicioso horror a si, cujo efeito o leva a considerar-se porta-voz da Graça e monstro divino. E, do outro lado, há de vez em quando descidas igualmente profundas, igualmente gloriosas, não só a vácuos e ermos e impotentes desolações, mas, também a dores e enjoos. Esses são, aliás, males familiares, que sempre existiram e pertencem à índole da gente; apenas se intensificam notavelmente em virtude da iluminação e da já mencionada embriaguez. São dores que se aceitam com prazer e orgulho em troca de enorme gozo, dores que conhecemos dos contos de fada, as dores da Pequena Sereia, à qual parecia que facas afiadas lhe feriam as belas pernas humanas, adquiridas, após ter entregue o seu rabo de peixe. Conheces a Pequena Sereia, de Andersen, não é verdade? Ela poderia ser uma boa amante para ti. É só pedir, e meto-a já na tua cama.
EU: - Será que não te podes calar, animal cretino?"
Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 313-314.