" EU (sentindo um vento extremamente glacial): - Como? Isso é novo para mim. Que significa essa cláusula?
ELE: - Significa renúncia, e nada mais. Pensas, acaso, que os ciúmes têm o seu domicílio somente nas alturas, e não nas profundezas também? Tu, ó distinta e bem-feita criatura, prometeste-te e uniste-te a nós. Não te será permitido amar.
EU (rindo-me involuntariamente): - Não amar? Ó pobre Diabo! Queres então justificar realmente a tua reputação de burrice e pendurar ao teu pescoço um chocalho, como se fosses um gato? Como é possível que tenciones basear negócios e promessas num conceito tão maleável e capcioso como é... o amor? Desejará o Diabo proibir a volúpia? Caso contrário, deverá aceitar em troca a simpatia e até mesmo a caritas, sob pena de ser burlado, como está escrito no Livro. Aquilo que apanhei e que, segundo afirmas, faz com que me tenha prometido a ti - de que, dize-me, deriva aquilo, a não ser do amor, ainda que este haja sido envenenado por ti, com a licença que Deus te outorgou? A aliança que nos liga, se é que te devo crer, tem, ela mesma nexo com o amor, imbecil que és! Pretendes que eu consinta e que me encaminhe para o bosque, para a encruzilhada das quatro veredas, em prol da minha obra. Mas assevera-se que a própria obra anda ligada ao amor.
ELE (proferindo uma risada nasal): - Dó, ré, mi! Podes ter a certeza de que as tuas fintas psicológicas não produzem sobre mim maior efeito do que as teológicas! Psicologia? Por amor de Deus! Ainda acreditas nela? Mas isso é a mais execrável mentalidade burguesa do século XIX! A nossa época está saturada dela até aqui. Em breve esse modo de pensar provocará apenas a sua raiva, e quem incomodar a vida, introduzindo nela a psicologia, vai simplesmente levar uma pancada na cabeça. Nós entrámos num período, meu caro, que não quer ser importunado pela psicologia... Isto, só de passagem. A minha condição era clara e correcta, determinada pelo legítimo zelo do Inferno. O amor fica-te proibido, porque queima. A tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma."
Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 337-338.
ELE: - Significa renúncia, e nada mais. Pensas, acaso, que os ciúmes têm o seu domicílio somente nas alturas, e não nas profundezas também? Tu, ó distinta e bem-feita criatura, prometeste-te e uniste-te a nós. Não te será permitido amar.
EU (rindo-me involuntariamente): - Não amar? Ó pobre Diabo! Queres então justificar realmente a tua reputação de burrice e pendurar ao teu pescoço um chocalho, como se fosses um gato? Como é possível que tenciones basear negócios e promessas num conceito tão maleável e capcioso como é... o amor? Desejará o Diabo proibir a volúpia? Caso contrário, deverá aceitar em troca a simpatia e até mesmo a caritas, sob pena de ser burlado, como está escrito no Livro. Aquilo que apanhei e que, segundo afirmas, faz com que me tenha prometido a ti - de que, dize-me, deriva aquilo, a não ser do amor, ainda que este haja sido envenenado por ti, com a licença que Deus te outorgou? A aliança que nos liga, se é que te devo crer, tem, ela mesma nexo com o amor, imbecil que és! Pretendes que eu consinta e que me encaminhe para o bosque, para a encruzilhada das quatro veredas, em prol da minha obra. Mas assevera-se que a própria obra anda ligada ao amor.
ELE (proferindo uma risada nasal): - Dó, ré, mi! Podes ter a certeza de que as tuas fintas psicológicas não produzem sobre mim maior efeito do que as teológicas! Psicologia? Por amor de Deus! Ainda acreditas nela? Mas isso é a mais execrável mentalidade burguesa do século XIX! A nossa época está saturada dela até aqui. Em breve esse modo de pensar provocará apenas a sua raiva, e quem incomodar a vida, introduzindo nela a psicologia, vai simplesmente levar uma pancada na cabeça. Nós entrámos num período, meu caro, que não quer ser importunado pela psicologia... Isto, só de passagem. A minha condição era clara e correcta, determinada pelo legítimo zelo do Inferno. O amor fica-te proibido, porque queima. A tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma."
Thomas Mann, Doutor Fausto, trad. Herbert Caro, 4ª edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 337-338.
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