"Num dia prazenteiro, nos confins da eternidade, enquanto as Sombras de todos os grandes escritores se repousavam nos Campos Eliseos em leitos de asfódelos e moli, felizes por nada mais ouvirem da boca uns dos outros do que abundantes citações das suas próprias obras (pois Júpiter tinha-lhes generosamente enfeitiçado os ouvidos), acercou-se-lhes, com ar triunfante, uma Sombra de todos desconhecida. Ela (pois a recém-chegada evidenciava tais sinais de sexo como o cabelo curto e um andar masculino) sentou-se no meio deles e, com um sorriso de superioridade, disse-lhes:- Após séculos de opressão resgatei os meus direitos das garras dos deuses ciumentos. Na Terra fui a Poeta da Reforma e cantei para ouvidos desatentos. Agora aguardam-me a honra e a glória eternas.Mas assim não aconteceu e depressa se tornou na mais infeliz das imortais, desejando em vão vaguear de novo na escuridão dos lagos infernais. Júpiter não lhe tinha enfeitiçado os ouvidos e o que ouvia dos lábios das Sombras bem-aventuradas era a citação incessante das obras delas. Como se isso não bastasse, foi-lhe negada a ventura de repetir os seus próprios poemas. Não se lembrava de um único verso, pois Júpiter tinha decretado que a memória deles habitasse nos penosos domínios de Plutão, enquanto parte do sistema."
Ambrose Bierce, Esopo emendado & outras fábulas fantásticas, trad. Fernando Gonçalves, Lisboa: Antígona, 1996, pp. 27-28.
No comments:
Post a Comment