Monday, February 29, 2016

SECRET



"Sentia-me feliz. Ao invés do que poderia presumir do bestializante efeito de tão nutridas horas voltadas ao cevo exclusivo da carne e da luxúria, eu não estava positivamente materializado. Pelo contrário, uma lúcida embriaguez me erguia e doirava as ideias, dominadoramente. Sentia e verificava muito bem que esta obsidiante e irresistível criatura, que o mais misterioso e feliz dos acasos me deparara, não era só simpática à minha animalidade, não era só apetecida dos meus sentidos; antes na mutuação celeste dos seus gozos havia um não sei quê de eterizante e fino...o que quer que fosse de iluminado e alto, que me afagava o pensamento e me falava ao espírito.
Tudo isto porque era magra."


Abel Botelho, O Livro de Alda, 3ª ed. Porto: Livraria Chardron, 1922, p. 42. 

Sunday, February 28, 2016

DOMESTICIDADE



"No dia seguinte, já dia alto, veio a Eternidade trazer-nos leite à cama."


Abel Botelho, O Livro de Alda, 3ª ed. Porto: Livraria Chardron, 1922, p. 40. 

Saturday, February 27, 2016

DESLUMBRADOS


"Ai de nós, se as cousas e as almas nos aparecessem na sua nudez e realidade! Morreríamos deslumbrados ou fulminados. Morreríamos de espanto ou de cruel desilusão!Este planeta, este bloco de pedra e ferro, é um habitat de sombras e de sonhos, um exílio de deuses falecidos. E os deuses esperam ressurgir."

Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Lisboa: Livraria Bertrand, 1973, p. 224. 

Thursday, February 25, 2016

EMPSUCHOS



"A alma, eis a verdade; a vida espiritual, 
Não revelada ainda...
Doirada sugestão, silêncio matinal, 
Escura luz infinda."


Teixeira de Pascoaes, Vida Etérea, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 189.

Wednesday, February 24, 2016

RELEVOS



"A forma, eis a aparência:
A imagem desenhada em tintas mentirosas;
Superfície inconstante da existência, 
Relevos da ilusão fingindo dar as cousas."


Teixeira de Pascoaes, Vida Etérea, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 189. 

CONVICÇÃO



"Num mundo de múltiplos deuses, a descrença nunca pode ser total. Apenas se pode verificar a rejeição de um deus e a aceitação de outro, ou ainda - como no caso de Epicuro e dos seus seguidores - a convicção de que os deuses pouco importam, uma vez que deixaram desde há muito de se ocupar dos assuntos humanos."


John Gray, Sobre humanos e outros animais, trad. Miguel Serras Pereira, 2ª ed., Alfragide: Leya/lua de papel, 2008, p. 115. 

Monday, February 22, 2016

CARÊME



"E também nós, sem darmos por isso, fechámos o nosso carnaval com uma Quarta-feira de Cinzas, com o que não receamos deixar triste nenhum dos nossos leitores. Continuando a vida a ser no seu conjunto, como o carnaval romano, inabarcável, insuportável e problemática, desejaríamos antes que cada um de vós, tal como nós, atentasse nesta sociedade de máscaras despreocupadas e se lembrasse da importância de cada um dos momentâneos e tantas vezes aparentemente insignificantes prazeres da vida."

Johann Wolfgang Goethe, Viagem a Itália, trad. João Barrento, Lisboa: Bertrand, 2016, p. 399. 

Sunday, February 21, 2016

URPFLANZE



"Sob este céu podemos fazer as mais extraordinárias observações. O ponto fulcral da questão, encontrei-o claramente, e sem lugar para dúvidas; tudo o resto me aparece já como um todo, apenas com alguns pontos a clarificar. A planta primordial (Urpflanze) será a mais estranha criatura do mundo, que até a natureza me invejará."

Johann Wolfgang Goethe, Viagem a Itália, trad, João Barrento, Lisboa: Bertrand, 2016, p. 345. 

Saturday, February 20, 2016

PARA O DIVINO UMBERTO ECO



"Estarei louco? Também é uma hipótese sensata: não estou em coma, estou fechado num autismo letárgico, julgo estar em coma, julgo que aquilo que sonhei não é verdade, julgo ter o direito de o tornar verdadeiro. Mas como pode um louco pôr uma hipótese sensata? Mais, somos loucos sempre em relação à norma dos outros, mas aqui os outros não estão, a única medida sou eu e a única coisa verdadeira é o Olimpo das minhas memórias. Estou aprisionado no meu isolamento fúnebre, neste feroz egotismo. Assim sendo, se esta é a minha condição, porquê fazer diferença entre a minha mãe, o Angelo Urso e a rainha Loana? Estou a viver uma ontologia esboroada. Tenho o poder soberano de criar os meus próprios deuses, e as minhas próprias Mães. 
Por isso, agora rezo: «Ó boa rainha Loana, em nome do teu amor desesperado, não te peço que acordes do seu sono de pedra as tuas vítimas milenárias, mas apenas que me devolvas um rosto... Eu, que da ínfima lagoa do meu sono forçado vi aquilo que vi, peço-te que me leves mais para cima, rumo a uma aparência de saúde.»
Não é costume os miraculados, apenas por terem expressado a sua fé no milagre, ficarem curados? Então, eu quero com muita força que a rainha Loana me possa salvar. Estou tão tenso nesta esperança, se não estivesse já em coma, teria uma apoplexia. 
E, finalmente, Deus é grande, vi. Vi como o apóstolo, vi o centro do meu Alefe, do qual transluzia não o infinito mundo, mas a miscelânea das minhas recordações. Assim a neve se derrete ao sol, e assim ao vento aflora nas folhas leves a sentença da Sibila. 

Ou seja, certamente vi, mas a primeira parte da minha visão foi tão ofuscante que foi como se a seguir tivesse recaído num sono enevoado. Não sei se num sonho se pode sonhar estar a dormir, mas é certo que, se estou a sonhar, estou também a sonhar que agora acordei e que recordo aquilo que vi."



Umberto Eco, A  Misteriosa Chama da Rainha Loana, trad. Simonetta Neto, Lisboa: Difel, 2005, pp. 386-387. 

Friday, February 19, 2016

HÁ ROCHEDOS




"Há rochedos que são estátuas misteriosas. 
Nós vemo-los, além, nas serras arenosas, 
Desenhados na tela, em brasa do sol-pôr...
Ó frontes que enrugou e empederniu a dor!
Há rochedos que são perfis extraordinários. 
Alguns, ao vir da lua, evocam os calvários. 
Este, lembra dum Deus o mutilado torso;
Aquele, abre, de noite, uns olhos de remorso.
Outros, têm a atitude ideal de quem medita.
O rosto duns contrai uma expressão aflita
E neles transparece um gesto de loucura. 
A sombra duns, à tarde, é sombra de ternura. 
Outros, rezam, ao vento, as mágoas do luar...
Outros, dum alto cerro, olham o céu e o mar."


Teixeira de Pascoaes, Vida Etérea, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 167. 

Thursday, February 18, 2016

SEGURO



"Por quanto mais tempo poderei ser um muro em redor da minha terra verde
Por quanto mais tempo poderão as minhas mãos
Proteger esta ferida, e as minhas palavras
Pássaros luminosos no céu, consolando, consolando?
E tremendo
Ser assim exposta: como se o coração
Pusesse uma máscara e penetrasse no mundo."


Sylvia Plath, Três Mulheres, trad. Ana Gabriela Macedo, Lisboa: Relógio D' Água, 2004, p. 45. 

Wednesday, February 17, 2016

CONTEMPLAR


"A porta do túmulo dá para a nossa infância. Quando penso entreabri-la, imagino contemplar o sol dos primeiros dias, a paisagem onde eu fui a inocência, e o verbo, nos meus lábios, afogado em comoção, é um vagido apenas. O nosso pobre corpo, evoluído, emurchecido, floresce, involui; as rugas alisam, a pele satura-se de aurora, tingem-se de oiro vivo os cabelos, e o coração desencantado entra num novo encantamento."

Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 132. 

Tuesday, February 16, 2016

CRÉPITO


"E eu, quase sem existência, apenas fito uns olhos ausentes na labareda, louca de fumo a crepitar desejos incendidos."

Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 68. 

Monday, February 15, 2016

LONGE




"O real e o imaginário são duas sombras do mesmo corpo ausente."


Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 46. 

Sunday, February 14, 2016

FLUTUA



"O ser não manda, obedece, flutua, sem jamais parar, ao sabor das águas infinitas. Quando desejamos descobrir, em nós, qualquer cousa de imutável e perpétuo, apenas vemos um turbilhão de fumo, levado pelo vento..."

Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 89. 

Saturday, February 13, 2016

SOBRESSALTO



"O céu tinge-se dum vago sobressalto... é luz do dia? alvor funéreo da noite morta?... que estranheza, que palidez, no rosto dos viandantes! É uma interrogação e um espanto..."

Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 54. 

Friday, February 12, 2016

FICAM



"Ao longe viste os ramos do que somos
tocados pelo vento. Os mesmos lábios
disseram o que em ti se espalha como
a areia, estas dunas, o prenúncio

da substância extrema que se amolda
a tudo. E unidos ficam por mais tempo
até que sejam a dispersa forma
de se perderem num mais firme gesto

que dissipe as sementes junto aos sulcos 
há muito entreabertos para serem
o lugar do repouso. Este era o súbito 

vislumbre das suspeitas que nos trazem
o impulso com que possas receber
apenas outro dom, a identidade."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 85.

Thursday, February 11, 2016

ODE


"Pouco é viver
mas pesa
como todo o ser
como toda a luz
como a concentração do tempo."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 47. 

Wednesday, February 10, 2016

ABERTOS


"Andam-me na cabeça sonhos destes. A minha impaciência em avançar leva-me a dormir vestido, e não há coisa melhor do que ser acordado antes do nascer do Sol, meter-me na carruagem e ir ao encontro do dia entre o sono e a vigília, deixando correr livremente a fantasia."

Johann Wolfgang Goethe, Viagem a Itália, trad, João Barrento, Lisboa: Bertrand, 2016, p. 150. 

Monday, February 8, 2016

PERA ONDE


"Igreja - Quem sois? Pera onde andais?
Alma - Não sei pera onde vou...
sou salvagem;
sou ua alma que pecou
culpas mortais
contra o Deus que me criou 
à Sua imagem. 

Sou a triste, sem ventura, 
criada replandecente
e preciosa, 
angélica em fermosura, 
e, per natura, 
como raio reluzente, 
lumiosa. 
E, por minha triste sorte
e diabólicas maldades, 
violentas, 
estou mais morta que a morte, 
sem deporte, 
carregada de vaidades 
peçonhentas."


Gil Vicente, Auto da Alma, Porto: Livraria Avis, s.d., p. 37. 

FORMADA



" Anjo - Alma humana, formada
de nenhua cousa, feita
mui preciosa, 
de corrupção separada, 
e esmaltada 
naquela frágoa perfeita, 
gloriosa:

planta neste vale posta
pera dar celestes flores, 
olorosas, 
e pera serdes tresposta
em a alta costa, 
onde se criam primores
mais que rosas; 
planta sois e caminheira, 
que, ainda que estais, vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira 
é ser herdeira
da glória que conseguis:
andai prestes."


Gil Vicente, Auto da Alma, Porto: Livraria Avis, s.d., pp. 11, 13. 

Saturday, February 6, 2016

IN ARCADIA



"E então abriu-se diante de mim um novo mundo. Aproximava-me das montanhas, que cresciam a olhos vistos."

Johann Wolfgang Goethe, Viagem a Itália, trad, João Barrento, Lisboa: Bertrand, 2016, p. 40.

Thursday, February 4, 2016

ASSISTÊNCIA



"Vivia a Vida trágica e profunda."

Jaime Cortesão, Poesias-I, Lisboa: Portugália Editora, 1967, p. 55. 

Wednesday, February 3, 2016

AUDITE-VIDETE-TACETE



"Ouve, vê e cala,
e viverás vida folgada:
teu vizinho louvarás,
tua porta cerrarás,
quanto podes não farás,
quanto sabes não dirás,
quanto vês não julgarás,
quanto ouves não crerás,
se queres viver em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando falares, que te mande,
de quem falas, onde e quê,
e a quem, como e quando:
nunca fies nem porfies
nem a outro injuries
não estês muito na praça
nem te ries de quem passa,
seja teu tudo o que veste
a ribaldo não doestes
não cavalgarás em potro,
nem ta molher gabes a outro,
não cures de ser picão
nem travar contra razão.
Assim lograrás tas cãs
com tuas queixadas sãs."


D. João Manuel, "Regra para quem quiser viver em paz", in Garcia de Resende, Antologia do Cancioneiro Geral, org. Maria Ema Tarracha Ferreira, Lisboa: Ulisseia, 1994, p. 253. 

Tuesday, February 2, 2016

VERDADE



"- Aparece gente de talento, de vez em quando - dizia Nikolai Nikolaievitch. - Mas a moda, neste momento, está em organizar círculos e associações de todas as espécies. O espírito gregário é sempre o refúgio da ausência de dons; quer se trate de ser fiel a Soloviov, a Kant ou a Marx, pouco importa. Para procurar a verdade é preciso isolamento e cortar relações com todos aqueles que não a amem bastante. Há alguma coisa no mundo que mereça fidelidade? Poucas coisas. Creio que é preciso ser fiel à imortalidade, esse outro nome, mais intenso, que tem a vida."

Boris Pasternak, O Doutor Jivago, trad. Augusto Abelaira, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, p. 17. 

POTÊNCIA



"«Que o mundo é eterno, uma vez que aquilo que por natureza pode existir em todo o tempo que há para vir, também por natureza pôde ter existido em todo o tempo que já passou.»"


"Erros Condenados em 7 de Março de 1277 (seleção)", in Boécio de Dácia, A Eternidade do Mundo, trad. Mário Santiago de Carvalho, Lisboa: Edições Colibri, 1996, p. 96.