"Estarei louco? Também é uma hipótese sensata: não estou em coma, estou fechado num autismo letárgico, julgo estar em coma, julgo que aquilo que sonhei não é verdade, julgo ter o direito de o tornar verdadeiro. Mas como pode um louco pôr uma hipótese sensata? Mais, somos loucos sempre em relação à norma dos outros, mas aqui os outros não estão, a única medida sou eu e a única coisa verdadeira é o Olimpo das minhas memórias. Estou aprisionado no meu isolamento fúnebre, neste feroz egotismo. Assim sendo, se esta é a minha condição, porquê fazer diferença entre a minha mãe, o Angelo Urso e a rainha Loana? Estou a viver uma ontologia esboroada. Tenho o poder soberano de criar os meus próprios deuses, e as minhas próprias Mães.
Por isso, agora rezo: «Ó boa rainha Loana, em nome do teu amor desesperado, não te peço que acordes do seu sono de pedra as tuas vítimas milenárias, mas apenas que me devolvas um rosto... Eu, que da ínfima lagoa do meu sono forçado vi aquilo que vi, peço-te que me leves mais para cima, rumo a uma aparência de saúde.»
Não é costume os miraculados, apenas por terem expressado a sua fé no milagre, ficarem curados? Então, eu quero com muita força que a rainha Loana me possa salvar. Estou tão tenso nesta esperança, se não estivesse já em coma, teria uma apoplexia.
E, finalmente, Deus é grande, vi. Vi como o apóstolo, vi o centro do meu Alefe, do qual transluzia não o infinito mundo, mas a miscelânea das minhas recordações. Assim a neve se derrete ao sol, e assim ao vento aflora nas folhas leves a sentença da Sibila.
Ou seja, certamente vi, mas a primeira parte da minha visão foi tão ofuscante que foi como se a seguir tivesse recaído num sono enevoado. Não sei se num sonho se pode sonhar estar a dormir, mas é certo que, se estou a sonhar, estou também a sonhar que agora acordei e que recordo aquilo que vi."
Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, trad. Simonetta Neto, Lisboa: Difel, 2005, pp. 386-387.
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