Wednesday, August 31, 2016

TOMBADO



"Corpo agora perdido
além de todo anseio
lá onde nem vestígio 
do perdido desejo

lá onde o que é lembrança
de palavras e atos
entre ódios e ânsias 
e demais artefatos

esvai-se por completo.
Corpo antes inteiro
tão tangível concreto

quase fictício agora, 
névoa sem cor nem cheiro
onde nem mais memória."


Paulo Henriques Britto, Formas do Nada, São Paulo: Editora Schwarcz, 2012, p. 31. 

Tuesday, August 30, 2016

PRINCÍPIO



"1 Os discípulos disseram a Jesus:
 2 Diz-nos como será o nosso fim.
 3 Jesus disse:
 4 Haveis então descoberto o princípio, 
 5 para quererdes procurar o fim?
 6 Pois onde estiver o princípio, 
 7 lá estará o fim. 
 8 Feliz daquele que se ativer ao princípio, 
 9 porque conhecerá o fim
10 e não experimentará a morte."


O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, p. 52. 

Monday, August 29, 2016

LÓGION 22


"1 Jesus viu crianças a mamar. 
 2 Disse aos discípulos:
 3 Estas crianças a mamar podem comparar-se 
 4 com os que entram no Reino. 
 5 Eles disseram:
 6 Então, sendo pequenos, 
 7 entraremos no Reino?
 8 Jesus disse-lhes:
 9 Quando fizerdes de dois um
10 e o interior como o exterior, 
11 e o exterior como o interior, 
12 e a parte superior como a inferior, 
13 de modo a fazer com que o homem e a mulher
14 sejam um só, 
15 para que o homem se não faça homem
16 e a mulher se não faça mulher;
17 quando obtiverdes olhos em lugar de um olho
18 e uma mão em lugar de uma mão
19 e um pé em lugar de um pé, 
20 uma imagem em lugar de uma imagem, 
21 então, entrareis no Reino."

O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, pp. 54-55. 

O SIGNO DE LEÃO


"1 Jesus disse:
2 Feliz do leão que o homem comer, 
3 porque o leão será homem;
4 mas abominável é o homem que o leão comer,
5 porque o leão será homem."



O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, p. 47. 

Sunday, August 28, 2016

ALMA VERDE



"Que grandeza, que perfeição, que beleza no Mundo Vegetal com a sua alma verde tão misteriosa, os seus eflúvios magnéticos, os seus aromas castos e penetrantes!"

Ângelo Jorge, Irmânia, ed. José Eduardo Reis, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 97.

Wednesday, August 24, 2016

POEMA


"Um velho armador dinamarquês estava sentado a recordar a juventude e como, quando tinha dezasseis anos, havia passado uma noite num bordel de Singapura. Aportara ali com os marinheiros do barco de seu pai e sentara-se a conversar com uma velha chinesa. Quando ela o ouviu dizer que era natural de um país distante, foi buscar um velho papagaio que lhe pertencia. Havia muitos, muitos anos, aquele papagaio fora-lhe oferecido por um inglês de boas famílias, seu amante na juventude. Nessa altura, já o rapaz pensava que o papagaio devia ter cem anos. Sabia dizer várias frases em todas as línguas, aprendidas no ambiente cosmopolita da casa. Mas havia uma frase que o amante da velha chinesa lhe havia ensinado antes de lho ter oferecido e que nem ela compreendia, nem nenhum visitante fora capaz de lhe dizer o que significava. Por esse motivo, já há muitos anos desistira de perguntar o que queria dizer. Mas já que o rapaz vinha de um país tão distante, talvez fosse a sua língua e conseguisse interpretar-lhe a frase.
O rapaz ficou estranhamente emocionado com a sugestão. Quando olhou para o papagaio e pensou que podia ir ouvir aquele bico terrível proferir palavras em dinamarquês, quase fugiu dali. Só ficou para fazer um favor à velha chinesa. Mas quando esta fez o papagaio proferir a sua frase, constatou tratar-se de grego clássico. A ave articulava as palavras muito lentamente e o rapaz sabia grego suficiente para o reconhecer: tratava-se de uma estrofe de Safo:

«A Lua desapareceu, e também as Plêiades, 
A meia-noite já se foi há muito, 
E as horas passam, passam, 
E eu aqui, deitada, sozinha.»

A velha, quando ele traduziu os versos, fez estalar os lábios e revirou os seus olhinhos amendoados. Pediu-lhe para repetir o poema e, enquanto o escutava, ia acenando com a cabeça em sinal de aprovação". 


Karen Blixen, África Minha, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, pp.  261-262. 

ACREDITAR


"Aconteceu nessa época ter em minha casa um criado, Zacharia, que havia perdido o quarto dedo da mão esquerda. Talvez por isso fosse uma coisa comum entre os nativos, pensava eu, e que tenha em vista facilitar-lhes a aritmética quando contam pelos dedos. 
Quando comecei a desenvolver as minhas teorias junto de outras pessoas, fui imediatamente interrompida e esclarecida. No entanto, ainda conservo o sentimento de que existe um sistema de caracteres numéricos nativo em que não existe o número nove e que para que eles funciona bem, e através do qual é possível descobrir muitas coisas.
Relativamente a isto, recordei-me de um velho clérigo dinamarquês que me declarou não acreditar que Deus tivesse criado o século XVIII". 


Karen Blixen, África Minha, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 226. 

Monday, August 22, 2016

CLAMANDO


"Quem clamando pelos anjos não ouviu o insuperável trilo do paraíso evolado das veredas onde o olhar se esvai e os demorados caules, florações, ou os mais móveis corpos se detêm em compactez celeste?"

Maria Velho da Costa, Da rosa fixa, 2ª ed., Lisboa: Quetzal, 1999, p. 173. 

INOMEAÇÃO



"O desejo de uma aurora insistente e primordial onde prevaleça a inomeação das coisas é o teu crime sublime, que eu, tecedeira de teias, conjuro os deuses a venerar, ó inquiridor de espaços circunscritos, vedados, tão brancamente cego quanto os anjos, sucedâneos terríveis do humano, feitos face ao  fazer-se da separação de luz e trevas, divina falta."

Maria Velho da Costa, Da rosa fixa, 2ª ed., Lisboa: Quetzal, 1999, p. 165. 

Friday, August 19, 2016

TENTAÇÃO



"Oferece-te onde não possas recusar após desvio, tentativas, tentações. Carne viva, há outra regra?"

Maria Velho da Costa, Da rosa fixa,  2ª ed., Lisboa: Quetzal, 1999, p. 68. 

Thursday, August 18, 2016

MEDIDA



"A medida mais alta 
da liberdade
é fazer-nos falta, 
quer à razão, quer à acção, 
que são, na nossa área e pesada condição, 
a nossa escravidão
e a nossa insaciedade."


Armindo Rodrigues, Barricada em Flor, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1978, p. 53. 

NÉVOA



"Odeio a forma bruta, a crua luz acesa;
Amo a sombra, o apagado, a nuvem, o indeciso, 
O sítio onde se muda a Natureza
No jardim do Paraíso. 

Quero viver longe de mim, de tudo, 
Lá onde a derradeira estrela desabrocha!
Que envolva este meu ser o que é escuro e mudo.
Esconde-me, ó distância, em tua névoa roxa!"


Teixeira de Pascoaes, Versos Pobres, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 47. 

Wednesday, August 17, 2016

LINHAS


"- Msabu - repetiu ele -, acho que é melhor levantar-se. Acho que Deus vem aí. 
Quando tal ouvi, levantei-me e perguntei-lhe porque pensava isso. Com gravidade, conduziu-me até à sala de jantar que dava para oeste, na direcção das colinas. Pelas janelas avistava agora um estranho fenómeno. Havia uma grande queimada nos montes e toda a erva estava a arder, desde o cume até à planície; da casa, quase parecia uma linha vertical. Na realidade era como se uma figura gigantesca se estivesse a deslocar, caminhando na nossa direcção. Fiquei algum tempo a olhar para aquilo, com Kamante a observar o fenómeno passado ao meu lado e, seguidamente, comecei a explicar-lhe o que se passava. Pretendia sossegá-lo, pois pensava que ele tinha ficado terrivelmente assustado. Mas a explicação não pareceu produzir uma grande impressão sobre ele; era evidente que considerava ter cumprido a sua missão ao chamar-me.
- Bom, está bem - disse ele -, talvez seja assim. Mas achei que era melhor chamá-la, para o caso de Deus vir aí". 


Karen Blixen, África Minha, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 38. 

Saturday, August 13, 2016

ABRASADO



"Ó Sol, deus abrasado, refulgindo,
A noite, ignoto crime, redimindo, 
Eu te bendigo e canto em minha treva,
Que para ti, fantástica, se eleva, 
Com todo o bruto peso do pecado, 
Já das pedras, das árvores, herdado."


Teixeira de Pascoaes, Versos Pobres, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 94. 

Thursday, August 11, 2016

JARDIM


"Temos dois paraísos: o da infância
E o da velhice; 
O da flor e o do fruto,
O da loucura e o da razão. 
O Jardim e o Pomar, 
A Primavera, Deusa helénica, 
O Outono, Deus da Ibéria. 
O resto é Inverno até à Gronelândia
E Verão até ao Cabo."


Teixeira de Pascoaes, Últimos Versos, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 140. 

Wednesday, August 10, 2016

KAIROS



"Estar é ser em duração tranquila
num aberto repouso. Nada mais é o ser. 
Podemos dizer que é a força divina
que se casa com o tempo e aceita os seus contornos."


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 46. 

Tuesday, August 9, 2016

ONDULAÇÃO



"Nesta paisagem, as ondulações não são tudo. 
Nesta paisagem, o homem não é nada. Elas têm dez. A nuvem mil."

Henri Michaux, Equador, trad. Ernesto Sampaio, Lisboa: Fenda, 1998, p. 99.

Monday, August 8, 2016

PODER



"Não seguir o coração, não cultivar os prazeres da vida, não viver em encontro com os outros, trazia sofrimento ao ka e, pior, ainda, engendrava a própria destruição do homem. O ávido, aquele que apenas via as vantagens materiais dos seus actos, fazia definhar o seu ka e com isso perdia o seu bem mais precioso, o seu poder vital. O poder de vida advinha, portanto, da capacidade do homem para se harmonizar com a criação."


Rogério Sousa, Em Busca da Imortalidade no Antigo Egipto, Lisboa. ed. Ésquilo, 2012, p. 45. 

SOMBRAS



"A escuridão deita-se nas ravinas como nos nossos sítios, a montanha suaviza a planície, os caminhantes arrastam atrás de si os seus bocados mais preguiçosos, até os vagões tomam uns ares amolecidos, afectados, distraídos: é a Sombra, a Sombra. Mas isto depressa acaba. O sol toma altura, recompõe-se rapidamente, encarniça-se contra todas as sombras. E em breve só temos sombra debaixo dos pés. A justiça implacável do Equador está de regresso."


Henri Michaux, Equador, trad. Ernesto Sampaio, Lisboa: Fenda, 1998, p. 82. 

Friday, August 5, 2016

CONHECIMENTO


"Quem conhece um mar, conhece o mar. Tem saltos de humor, como nós. E uma vida interior, como nós. Também se diferencia da terra em não apresentar, num só espectáculo, milhares de pontos diferentes e pessoais e independentes, árvores, pedras, flores. Os Antigos não descuravam esses pontos pessoais, e era a senhora dona pedra, o excelentíssimo senhor rio. Os sábios, e antes deles os judeus e os cristãos, acabaram com isso. Nos dias de hoje, quem consegue falar de um bosque como deve ser?"


Henri Michaux, Equador, trad. Ernesto Sampaio, Lisboa: Fenda, 1998, p. 31

LITORAL



"Na incoerência do vento com o seu sabor a areia
e a muros derruídos delinear uma figura
que condense em si a montanha do desejo
no seu profundo repouso, no seu puro reconhecimento."


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 33. 

Thursday, August 4, 2016

DOMÉSTICA



"A pedra e a madeira recortam-se nos seus arcos
e os silêncios geométricos acompanham as nuvens, 
enquanto os nossos gestos mergulham no tranquilo
mistério de uma fábula doméstica."


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 21. 

Wednesday, August 3, 2016

AGON



"Construir torres abstratas
porém a luta é real. Sobre a luta
nossa visão se constrói. O real 
nos doerá para sempre."


Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 37. 

Tuesday, August 2, 2016

ESPAÇO



"Tentemos criar um espaço de repouso
com sombras claras como num templo amado."

António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 47. 

Monday, August 1, 2016

DEGRAU



"Falta-me o tacto para poder tratar mais finamente por tu o universo. Falta-me, talvez, um verso - o verso com que fizesse pousar uma prosa definitiva. A renda ou a textura de tudo. E mesmo, de quando em quando, escrever sobre o nada."


João Habitualmente, Os Animais Antigos, Vila do Conde: objecto cardíaco, 2006, p. 40.