Wednesday, January 31, 2018

MONSTRO


"- Se queremos que o relógio de sol da vida mostre a mão, que é como quem diz, o ponteiro - comentou Van, desenvolvendo a metáfora no roseiral de Ardis Manor em fins de agosto de 1884 -, devemos sempre lembrar-nos de que a força, a dignidade e o prazer do homem consistem em despeitar e desprezar as sombras e as estrelas que escondem de nós os seus segredos."


Vladimir Nabokov, Ada ou Ardor, trad. Fernando Pinto Rodrigues, Lisboa: Teorema, 2004, p. 38. 

Tuesday, January 30, 2018

CRESÇO



"Neste leito de ausência em que me esqueço,
desperta um longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço, 
mal sabe o coração desnecessário. 

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário, 
luas onde me acordo e me adormeço. 

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho - o precário no precário. 
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário, 

de silêncio e silêncio me apodreço. 
Entre o que é rosa e lodo necessário, 
passa um rio sem foz e sem começo."


Ferreira Gullar, in A Circulatura do Quadrado, org. António Ruivo Mouzinho, Porto: UNICEPE, 2004, p. 339. 

Monday, January 29, 2018

ACTO



"Se iluminar-se
o puro acto
lento se ousasse
no tempo exacto
quase só graça
de ser o espaço
de nada a nada
no ouro acto
de iluminar-se."


José Augusto Seabra, Desmemória, Porto: Brasília Editora, 1977, p. 42. 

Sunday, January 28, 2018

REFLUINDO


"Ondulavas de sulco em sulco, diluída nas últimas raízes, sob o fulgor das pálpebras sem sombra: e logo derivavas, pelo lençol da página, alagada, alagada. Refluindo: de quando?"

José Augusto Seabra, Desmemória, Porto: Brasília Editora, 1977, p. 52. 

Saturday, January 27, 2018

CÍRCULO



"Desabitado move-se: na sombra
a sombra, entrecerrando
as pálpebras: diáfano
de escombros."

José Augusto Seabra, Desmemória, Porto: Brasília Editora, 1977, p. 64. 

Wednesday, January 24, 2018

ASSISTIDO


"O verdadeiro cinema é o que (se) passa na nossa cabeça - melhor, na parte de trás (a radiotransmitir da morte) da nossa cabeça. Um processo alucinatório - como se diz das drogas, assistido. Daí poder-se afirmar, na senda de Epstein, que o cinema é a poesia exteriorizada, continuada por outros meios visíveis, as imagens."

Fernando Guerreiro, Imagens Roubadas, Várzea da Rainha (impr.): Enfermaria 6, 2017, p. 36. 

Tuesday, January 23, 2018

AS COUSAS



"As Cousas - Os homens são os meus prisioneiros. Os corpos d'elles são os laços com que os prendemos... A belleza é a cadeia de ouro da nossa tyrannia. 
Os homens mexem-se. Não são reaes. Elles mesmos provam que o movimento não existe."

Fernando Pessoa, "As Cousas", in Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patrício Ferrari, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 111. 

Monday, January 22, 2018

DISFARCE



"E o que é a Vida senão o disfarce do que deveria ser? O Vício não raro despoja a Virtude dos seus aspectos mais sagrados e a si próprio com estes se ornamenta. 
Assalta o poder o ambicioso, não o sensato. A escola e o templo não são domínio único do sábio, nem do probo. Quem não viu já fanáticos arvorarem em exclusivo seu o imenso Deus?"


Manuel Jorge Marmelo, Adolescente Agrilhoado, 4.ª ed., Lisboa: Caminho, 1987, p. 35. 

Sunday, January 21, 2018

AS SETAS


"As setas
- cruas - no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na mudez jovem

as setas
-firmes - confirmando
                        a carne."

Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 106. 

Saturday, January 20, 2018

A PROVA


"A prova, realidade dos fantasmas, reside nos efeitos que eles em nós produzem, no modo como nos afectam, ou seja, como, pelas paixões (sentidos), nos mudam a nós (o nosso comportamento, noção das coisas) e ao próprio mundo em que existimos."

Fernando Guerreiro, Imagens Roubadas, Várzea da Rainha (impr.): Enfermaria 6, 2017, pp. 24-25. 

Friday, January 19, 2018

EXISTE




"O que existiu existe
talvez porque não tenha

chegado ainda a hora de pronunciar
as palavras da senha

Não quererá ainda o instante parar
ou nem sequer virá

os factos vencem 
os argumentos, só eles mantêm

no uso inveterado do real
a persistência"


Gastão Cruz, Existência, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 51. 

Thursday, January 18, 2018

AO ARREPIO


"A educação dos arrepios não é bem feita neste país. Ignoramos as verdadeiras regras e, quando tal sucede, somos apanhados desprevenidos. 
É o Tempo, certo. (Será igual ao vosso?). Seria preciso chegar mais cedo do que ele, percebe o que quero dizer, só um poucochinho mais cedo. Conhece a história da pulga na gaveta? Sim, claro. E é tão verdade, não é? Já não sei dizer o que dizer. Quando é que finalmente nos vamos ver?"

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 164. 

Wednesday, January 17, 2018

PROPRIEDADES



"Escreve-lhe ainda:
Não imagina tudo o que há no céu, é preciso tê-lo visto para crer. Olhe, as... mas não lhe direi já como se chamam. 
Embora pareçam muito pesadas e a ocupar quase todo o céu, grandes como são, pesam menos do que um recém-nascido. 
Chamamos-lhe nuvens. 
É verdade que delas sai água, mas não é apertando-as nem triturando-as. Isso seria inútil porque elas têm muito pouca. 
Mas, à força de ocuparem extensões e extensões, larguras e larguras, e também profundidades e profundidades, e de se fazerem emproadas, conseguem enfim deixar cair algumas gotinhas de água, sim, de água. E ficamos todos molhados. Fugimos, furiosas por termos sido apanhadas, porque ninguém sabe quando é que elas vão largar as suas gotas; às vezes ficam vários dias sem largar nenhuma. E não valia de nada ficarmos em casa à espera."


Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, pp. 163-164. 

Tuesday, January 16, 2018

BRUTAL


"Paraste já no mundo
por fim desconhecendo se vigias ou dormes

não te moves ignoras
o código brutal do movimento"

Gastão Cruz, Existência, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 63. 

Monday, January 15, 2018

ESTRADA


"Paisagens tranquilas ou desoladas. 
Paisagens da estrada da vida mais do que da superfície da Terra. 
Paisagens do Tempo que se escoa lentamente, quase imóvel e às vezes como que de marcha atrás. 
Paisagens de retalhos, de nervos lacerados, de «saudades».
Paisagens para tapar as feridas, o aço, o estoiro, o mal, a época, a corda ao pescoço, a mobilização. 
Paisagens para abolir os gritos. 
Paisagens como um lençol puxado até à cabeça."

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 155. 

Sunday, January 14, 2018

ACEITAR



"A - E isso tem sentido?
B - Não, nem tudo pretende ter. Tem tanto sentido como esta noite e este luar e tudo quanto tens dito. De que serve raciocinar, provar, convencer? Veem os factos e é tudo differente. Quanto melhor, meu velho, acceitar a obscuridade lucida das coisas e amar o vago por não termos outro amor!"


Fernando Pessoa, "Salomé", in Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patrício Ferrari, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 184. 

Saturday, January 13, 2018

FOTOGRAFIA



"Entre o momento de pegar na folha seca do plátano pondo-a à frente da boca para impedir o excesso ou a perda de palavras, e o final do tempo anunciado, quanta vida e quanto nada.

Esses olhos incidem no futuro, poços abertos não atentos à traição da realidade. Cada momento promete o que não tem e é o que não é, até à vinda do supremo impostor, o instante que mata."


Gastão Cruz, Existência, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 25. 

Friday, January 12, 2018

AO OLVIDO


"B - Ah, lembro-me bem! Era na casa velha da quinta antiga e ao serão; depois de coserem e de fazerem meia, o chá vinha, e as torradas, e o somno bom que eu haveria de dormir. Dá-me isto outra vez, tal qual era, com o relogio a tictacar ao olvido, e guarda para ti os Deuses todos. Que me é um Olympo que me não sabe às torradas do passado? Que tenho eu com os deuses onde não sôa o meu relogio antigo?
Talvez tudo seja symbolo e sombra, mas não gosto de symbolos e não gosto de sombras. Restitue-me o passado e guarda a Verdade. Dá-me outra vez a infancia e leva Deus comtigo."


Fernando Pessoa, "Diálogo no Jardim do Palácio", in Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patrício Ferrari, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 82.

Thursday, January 11, 2018

FARINHA INVISÍVEL


"Quando me virem, 
Bom,
Não sou eu.

Nos grãos de areia, 
Nos grãos dos grãos. 
Na farinha invisível do ar, 
Num grande vazio que se sustenta como de sangue, 
É aí que vivo. 

Oh! Não tenho nada de que me gabar: Pequeno! pequeno!
E se me agarrassem, 
Fariam de mim o que quisessem."

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 72. 

Tuesday, January 9, 2018

NADAR


"A alma adora nadar. Para nadar, há que deitar-se de barriga. A alma despega-se e parte. Parte a nadar. (Se a vossa alma parte quando estais de pé, ou sentados, ou de joelhos, ou apoiado nos cotovelos, para cada posição corporal diferente a alma partirá com uma locomoção e uma forma diferentes, segundo concluirei mais tarde)."
Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 47. 

Monday, January 8, 2018

DESQUICIADO


"La merienda se celebró en el corral de la casa al anochecer y, según cuentan las viejas crónicas, ni la villa de Toro, de la que Pedrosa dependía, conoció en sus mejores años un fasto semejante, tan alegre y desquiciado, en el que participaron hasta los perros y animales de labor. La burra de Tomás Galván, la Torera, bebió una herrada de vino de Rueda y pasó la noche rebuznando y coceando por las calles del pueblo, hasta que de madrugada se murió."

Miguel Delibes, El hereje, Barcelona: Ediciones Destino, 1998, p. 210. 

Sunday, January 7, 2018

DÚVIDAS


"Mientras oraba, se mantenía sereno. Era al marchar y tomar agua bendita em la pequeña pila, a la puerta de la capilla, cuando surgían las dudas: al rezar y santiguarse había pensado en el sacrificio de Nuestro Señor o en el juego de zancos que le aguardaba en el patio?" 
Miguel Delibes, El hereje, Barcelona: Ediciones Destino, 1998, p. 176. 

Saturday, January 6, 2018

REGES


"Os magos partiram. E eis que o astro que tinham visto a Oriente os conduziu até onde eles tivessem chegado à gruta, e por cima da cabeça da criança ele parou. Quando o viram lá, com Maria sua mãe, os magos tiraram presentes dos seus sacos, ouro, incenso e mirra. Mas como o anjo os tinha advertido para não tornarem a passar pela Judeia, voltaram para suas casas por um outro caminho."

"Evangelhos da Natividade e da Infância", 21: 3-4, in Evangelhos Apócrifos, trad. Madalena Cardoso, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 95. 

Friday, January 5, 2018

BRILHAE



"Brilhae eternamente e sem tempo, astros do mundo em que brilhaes! Voae sem fim ou começo, aves da terra de que soes aves. 
Nasceu à Morte Inteira o Salvador do Mundo."


Fernando Pessoa, "Sakyamuni", in Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patrício Ferrari, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 168. 

Thursday, January 4, 2018

LUGAR



"Voix de X: Vous êtes toujours la même. J' ai l'impression de vous avoir quitée hier."


Alain Robbe-Grillet, L'année dernière à Marienbad, Paris: Éditions J'ai Lu, s.d., p. 47.

Wednesday, January 3, 2018

MEMÓRIA



"fui encontrar madame bovary,
trajando lycra negra e cabedal,
a sair de uma loja tax free, 
já na sala de embarque. por sinal

foi ela quem me viu. eu não a vi, 
cheio de educação sentimental.
aproximou-se e disse: « - por aqui?»
em pose colunável. informal

e desflaubertizada, ela acendeu 
com um isqueiro de ouro a cigarrilha. 
ofereci-lhe um café. não quis, segura

e coleante, pois. num gesto deu
a entender que brilha e vibra e brilha 
por desistir de ser literatura."


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Porto: Edições ASA, 2002, p. 137. 

Tuesday, January 2, 2018

ALUMBRADOS



"(...) le preguntó si conocía en su pueblo a un tal Pedro Lanuza, padre de dos rapazas bien apersonadas y ligeras de cascos, y no había terminado de formular la pregunta cuando Minervina rompió a reír: 
- Toda la famila alumbrada, señora Blasa. 
- Y qué quieres decir con eso?
- Lo que oye, señora Blasa, alumbrados, de esos que dicen que Nuestro Señor prefiere ver a un hombre y una mujer en la cama que en la iglesia rezando latines. 
- Eso dicen en tu pueblo? Siempre fue un poco rara esa familia. 
Minervina se esforzó por recordar más cosas para complacer a la señora Blasa, para caerle en gracia:
- También dicen que Nuestro Señor viene a ellos sin más que sentarse e esperar. Que basta quedarse quietos y aguardar para que el Señor los ilumine. Por eso les dicen también los dejados."


Miguel Delibes, El hereje, Barcelona: Ediciones Destino, 1998, p. 66. 

Monday, January 1, 2018

LANDSCAPE WITH CATTLE AND A HORSE IN WINDY WEATHER



"Não tenta nada de que se tivesse já esquecido;
o seu objectivo, agora, é organizar o presente."


Nuno Júdice, Meditação Sobre Ruínas, Lisboa: Quetzal, 1999, p. 23.