"Muitos anos depois, em Londres, retomara o antigo hábito. Era bom para o seu trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites. Como se o mais insignificante empregado de um bar ou arrumador de cinema tivesse uma vida dupla, e entrasse em pânico ao perceber que alguém o espiava. Ela gostava de infundir medo. E quando a enfrentavam, o que havia a fazer era ficar em silêncio e olhá-los fixamente, e depois voltar-se e ir embora. Com o coração a bater muito depressa, claro. Talvez a esfaqueassem durante uma das suas perseguições nocturnas."
Ana Teresa Pereira, O Mar de Gelo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 43.
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