Tuesday, April 29, 2025

ELOGIO DA SOLIDÃO

 



"Porque é que a solidão em mim é força,
certeza, confiança e decisão?
Porque é que a solidão é um limite, 
um foco, uma vontade, a vigilância?

Sei que tudo é dado estando um só
ou estando acompanhado com o seu verbo. 
Sei que tudo é nosso, em inocência,
na paz de estar seguro e sem algozes.

Os importunos são inimigos.
Ou não os oiçam quando estão falando
ou não lhes toquem."



João Rui de Sousa, O fogo repartido - poesia (1960-1980), Litexa, s. d., pp. 78-79. 

Sunday, April 27, 2025

CADA DIA VIVIDO

 


"Converte-se, pois, numa posição mental falha de apoio dialéctico o negativismo dogmático do homem do nosso tempo. Cada dia vivido é um valor vencido na caução imposta ao ser humano de viver matematicamente a sua morte. Este, afincando-se a um deliberado desconhecimento daquilo que mais o obrigatoriza em todas as imanências do quotidiano, pretende a todo o transe responder com altanaria às inculcações do Julgamento de que não está excluído."


António de Cértima, O Primeiro Dia do Homem Fora do Paraíso, Lisboa: Edições Ática, 1960, pp. 23-24. 

Friday, April 25, 2025

ATÉ ONDE A ÁGUA

 



"Se a alma pudesse ir, mas até onde
a água se acaba, o céu também se finda,
e o silêncio infinito é que se esconde
na vida que, findando, vive ainda...

Se pudesse esquecer, lá onde a linda
madrugada ideal mal nos responde
e o sentimento de uma paz infinda
envolve o coração, chega até onde

o que era humano e amargo se ilumina
e em flores de esperança multiplica
a sede de distância e de horizonte

e tudo esplende em som, em luz divina,
e alguma coisa de mais santo fica
do que morre e se esvai como uma fonte..."


Alphonsus de Guimaraens Filho, Antologia Poética, Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, pp. 98-99.

ABRIL POR DENTRO

 



"Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e o Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer."


Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia, 2.ªed., aument., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997, p. 457.

Thursday, April 24, 2025

A FELICIDADE CAMPESINA

 



"Do inquieto mar do mundo enfim cansado
Colher as velas quero; e aqui de fora,
Como aquele que junto à praia mora,
As tormentas verei, mas descansado.

Quem quiser que o navegue: e carregado
Do luzente metal, que o mundo adora,
Feliz à pátria volte: e muito embora
Empregos compre, e viva respeitado.

Palácios edifique; e neles tenha
Sempre assembleia aberta a gente nobre,
Que respeitosa as filhas lhe entretenha.

Que eu na humilde cabana que me cobre,
Como nela a virtude a viver venha,
Serei mais venturoso, inda que pobre."


Paulino António Cabral, Poesias, coligidas, prefaciadas e anotadas por Mário Gonçalves Viana, Porto: Livraria Figueirinhas, 1944, pp. 153-154.

Tuesday, April 22, 2025

VIDA ALDEÃ

 



"Depois que desta aldeia no retiro
A vide podo, enxerto o catapreiro,
Cultivo o meu casal, e do ribeiro
Eu mesmo as águas para o campo tiro;

Depois de a recolher somente aspiro
Do meu trabalho o fruto verdadeiro, 
Outros bens não pretendo, e deste outeiro
Ao mundo enganador as costas viro.

Procure-os quem quiser e diligente
Para os lograr o mercador ousado
Travesse o mar e outras nações frequente;

Às cortes passe; e em tudo afortunado
Títulos compre ilustres; que eu contente
Sem eles vivo aqui, mas sossegado."


Paulino António Cabral, Poesias, coligidas, prefaciadas e anotadas por Mário Gonçalves Viana, Porto: Livraria Figueirinhas, 1944, pp. 152-153. 

Monday, April 21, 2025

GUARDAR A FÉ (Para a memória do Papa Francisco)

 



"105. Ele é o Alfa e o Ómega,
Ele é o princípio e o fim,
princípio inenarrável e fim incompreensível.
Ele é o Cristo.
Ele é o Rei. 
Ele é Jesus.
Ele é o comandante, 
Ele é o Senhor,
aquele que ressuscitou dos mortos, 
aquele que está sentado à direita do Pai, 
aquele que nos trouxe o Pai e nos leva ao Pai.
A Ele a glória e o poder pelos séculos. Ámen."


Melitão de Sardes, Sobre a Páscoa (Perì Pascha), trad. Isidro Pereira Lamelas, Prior Velho: Edições Paulinas, 2021, p. 67. 

COMPASSO


 

"Não foi só Cristo que ressuscitou. Cantando, ressuscitamos todos, todos juntos."


Raul de Carvalho, "Aleluia dos Camponeses", in Realidade Branca, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, p. 181. 

Sunday, April 20, 2025

PÁSCOA


 
"103. Vinde, pois, todas as famílias humanas, 
todos vós, imersos nos pecados;
e recebei a remissão dos pecados.
Porque Eu sou a vossa remissão, 
     Eu sou a Páscoa da vossa salvação, 
     Eu sou o cordeiro imolado por vós,
     Eu sou o vosso resgate, 
     Eu sou a vossa vida, 
     Eu sou a vossa ressurreição,
     Eu sou a vossa luz,
     Eu sou a vossa salvação, 
     Eu sou o vosso Rei, 
Sou Eu que vos conduzo às alturas dos céus;
sou Eu que vos ressuscitarei;
sou Eu que vos mostrarei o Pai eterno.
Sou Eu que vos ressuscitarei com a minha [mão] direita."


Melitão de Sardes, Sobre a Páscoa (Perì Pascha), trad. Isidro Pereira Lamelas, Prior Velho: Edições Paulinas, 2021, p. 66. 

Saturday, April 19, 2025

UMA ÁRVORE E O SOL

 



"Árvore minha amiga, abençoada
Alminha vegetal, com que ternura,
Abres o brando seio à luz sagrada,
Que, como um vento místico, murmura.

Logo te viste mãe: e, para a Altura, 
Ergueste as mãos, alegre e alvoroçada;
E lembravas assim a Virgem Pura, 
Ao sentir-se do Espírito pejada.

E o teu corpo, todo ele, era uma flor, 
E perfumes de idílio e casto amor,
O céu azul doirado embriagavam...

Mas, na sua quimérica alegria, 
Essa árvore feliz nem sequer via
A sombra, que seus ramos projectavam..."


Teixeira de Pascoaes, As Sombras, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 78. 

Friday, April 18, 2025

TUDO

 






"8. De facto, como Filho, foi gerado,
como cordeiro, levado ao sacrifício,
como ovelha, imolado,
como homem, sepultado,
mas ressuscitou dos mortos como Deus,
sendo por natureza Deus e homem.


9. Ele que é tudo:
Lei, enquanto julga,
Logos, enquanto ensina,
graça, enquanto salva,
Pai, enquanto gera,
Filho, enquanto é gerado,
ovelha, enquanto padece,
homem, enquanto sepultado,
Deus, quando ressuscita."


Melitão de Sardes, Sobre a Páscoa (Perì Pascha), trad. Isidro Pereira Lamelas, Prior Velho: Edições Paulinas, 2021, p. 35.

PAIXÃO

 



"Chorar um homem!...
Ó suavíssima consolação das lágrimas! quem pudera merecer-te, à custa destas últimas agonias da vida!
Chorar um homem.... é delir no pranto espinhos, que o frenesi da desesperação não desencrava da alma!
Felizes são os que choram!... Experimentaste, ó Cristo, a felicidade das lágrimas! Aconselhaste-as ao género humano, que remias daquela grande dor, que, antes de ti, não podia respirar a atmosfera dum céu em que falaste!
Quiseste, ó Cristo, fazer os homens bons pela compaixão; e conseguiste amaciar o coração da mulher, que lava, com suas lágrimas muitas nódoas, degradantes ao género humano, indigno de ti, ó anjo da cruz e do resgate!
Ensinaste a sofrer e a chorar, filho da mais atribulada das mulheres! Há dezoito séculos que choraste; e a geração, que passa, vai deste horto de aflição e prece a buscar-te no mundo dos espíritos com as vivas reminiscências das tuas lágrimas!
A parte do mundo, que te adora, tem razão para adorar-te; porque foste tu quem pregou o sermão da montanha.
Foste tu, ó Nazareno, quem limpou na face da samaritana o escarro da afronta, e restaurou a dignidade perdida de Madalena!
A ti meus hinos de morte, a ti, mensageiro de Deus, que surgiste no dia das agonias do escravo e disseste: «Felizes os que choram!»"


Camilo Castelo Branco, Um Livro, 7.ª edição, Lisboa: Pareceria António Maria Pereira, 1968, pp. 262-263.

Thursday, April 17, 2025

AGUARDAR


 
"Tomei um pequeno pedaço de pão ázimo e, no tremor de minha mão, estava a piedade de Judas, a quem entreguei, como era o costume, pois junto de mim ficava. E naquele momento em que Judas recebeu a clara mensagem vinda juntamente como pão que lhe oferecia, desejei vê-lo como quando o escolhi, limpo e puro, a renegar o seu intento. Aguardei que ele vertesse uma lágrima, afastasse de si o prato e até mesmo se pusesse de joelhos. Pedro não se havia humilhado e à frente de todos, não respondera à minha severidade com a doçura da sua entrega? Corriam os instantes, mas ainda havia tempo para que Judas não se vestisse como traidor e mostrasse a iluminação que poderia vir de dentro dele, se a desejasse."



Dinah Silveira de Queiroz, Memorial do Cristo, Lisboa-Porto: Centro do Livro Brasileiro, 1983, ppp. 442-443.

Wednesday, April 16, 2025

LÍRICA DE PARDILHÓ

 




"Então acordo e sinto a meu lado
o esplendor tranquilo
da amada que respira
adormecida deitada sobre o flanco
vertendo a prata dum sorriso

nas ravinas da noite

esferas cantam a alegria
é um sítio de grama rociada

e passam horas
durante as que da rua
ouvindo vozes turvas
eu ficarei teimando
na claridade a todo o preço

de que me falam as aves."



Fernando Assis Pacheco, A Musa Irregular, 3.ª ed., Porto: Edições Asa, 1997, pp. 133-134.

Tuesday, April 15, 2025

FULGURAÇÃO DO OLHAR

 



"Olhar a obra plena e o olho que a vê
procurar o lugar inocupável
nem centro nem espaço circundante
só uma incisão
extenuada de cor até ao branco
que na sombra dessa hora
desvanece em pequenos nadas
poeira que o nosso olhar desmente

agitam-se, têm as temperaturas do sangue
a certeza das estações no seio da mudança
mas o rosto deslumbra-se no movimento feito
levantamos as pesadas pedras que pousam no silêncio
aguardamos factos, a fulguração
hábil condensada cheia
talvez a forma imensa
sublime e deus

o olhar desperta convida acontece
e onde se esquiva as pálidas coisas adormecem
sem a perfeição a alegria do olhar
sem salvação."


Rosa Alice Branco, "Monadologia Breve", Soletrar o Dia - Obra Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002 p. 183.

FRUTO DA CRUZ

 


"Por isso é régia, porque é celeste; e é palmiforme, porque alcançou a vitória. Ora eu não estou a falar dos frutos da palmeira, vós conhecei-los bem. Destilam mel, o seu sabor é doce, o seu aspeto é carnudo. E, na verdade, porque o que aqui se trata é do fruto da cruz, este cura as feridas, suaviza os unguentos, alimenta o estômago, restabelece os enfermos, conhece os desertos do Oriente e vive ali, onde o Salvador sofreu a paixão."


Potâmio de Lisboa, «Acerca da Substância», Escritos, tradução de José António Gonçalves e de Isidro Pereira Lamelas, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2020, p. 139. 

Monday, April 14, 2025

VOZES MISTERIOSAS

 


"Se o zeloso clero das cercanias do Bom Jesus vertesse à letra o tout est plein d'âmes, e o livro, que tal afirma, não escapasse ao Index do sacro colégio, veríamos as florestas mansíssimas da montanha invadidas por exorcistas e pelo machado, modos sabidos de afugentar almas das árvores. O grande poeta queria dizer que as árvores têm vozes misteriosas, e os corações audição interior que as escuta, e o entendimento lucidez que as compreende. Não me parece que ele quisesse denunciar à liturgia demonográfica legiões de almas penadas, daninhas à silvicultura. Deixemos dizer o poeta o que nós ignoramos, e deixemos também que as formosas romeiras do Bom Jesus se entendam com os espíritos da soledade, vestido das matizes da iriada borboleta, ou coruscantes na flor orvalhada com que brincam os primeiros raios de sol."


Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte, 4ª ed., Porto: Livraria Chardron/Lello, s.d., pp. 5-6. 

Sunday, April 13, 2025

TRAUMATA

 


"O homem barroco é um ser em crise, amedrontado, que se debate entre 2 polos contrapostos. E o jogo que vai empreender, através da arte, é fruto deste traumatismo, dessa angústia cósmica, que se traduz no uso das metáforas, do claro-escuro, no dinamismo escultórico e arquitectónico."


Mónica F. Massara, Santuário do Bom Jesus do Monte - Fenómeno Tardo Barroco em Portugal, Braga: Confraria do Bom Jesus do Monte, 1988, p. 13. 

RAMOS

 


"Dizer que eu amo gente de quem nem sei o nome, nem é preciso; que amo estas ruas estreitas cariciosamente recolhidas ao sol, um sol camarada; que amo este rio com barcos verdadeiramente azuis, tão azuis como o mar, tão azuis que se confundem; dizer que amo esta palavra anónima que corre de boca em boca dizendo que é Primavera..."

Raul de Carvalho, "Parágrafos", in Realidade Branca, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, p. 108. 

Saturday, April 12, 2025

TERREIRO

 


" - E a floresta? a linda floresta que cobre as capelinhas aliás menos interessantes do que as árvores e as fontes?
- Então são pouco interessantes as capelas? interrogou Assunção.
- Oh! minha senhora, com licença do padre-capelão direi que elas demonstram o atraso intelectual dos portugueses, não só pela hediondez artística dos judeus de barro, mas também porque visitantes crassamente fanáticos os mutilam a golpes de varapau. Em todo o caso não devem ir embora sem descer pelo interior da floresta.
- As senhoras e o Jaime, explicou o cónego, já disso faziam a tenção. Eu é que entrarei cá em cima na caleça, para os ir esperar no pórtico.
-Mas agora, tornou João Borges, quando vieram para a Mãe d'água, não viram o encantador panorama que se desenrola ao norte do terreiro dos Evangelistas?
- Só de passagem, respondeu Jaime.
- Ah! então, convida estas senhoras a acompanhar-te e vai vê-lo bem. São apenas algumas passadas. Vale a pena. Mas devem levar um cicerone que lhes designe as serras, as aldeias, todos os acidentes da paisagem."



Alberto Pimentel, O Arco de Vandoma, 2.ª edição, Lisboa: Parceria A. M. Pereira, Lda., 1972, p. 334.

FALAR

 




"Acharam-se então em plena floresta. Apenas ali falavam as aves e as fontes. No ar fino e puro respirava-se um subtil olor campestre. A quietação, a paz da natureza alastrava profunda e suavíssima.
Encantado, João Borges censurava-se por nunca ter ainda visitado o Minho e parava algumas vezes observando a paisagem pelas clareiras do arvoredo.
Mas a consciência do dever sobrepôs-se a todas as suas gratas impressões de touriste: era preciso, quanto antes, proporcionar algum descanso a Francisco Eduardo."


Alberto Pimentel, O Arco de Vandoma, 2.ª edição, Lisboa: Parceria A. M. Pereira, Lda., 1972, p. 308.

Friday, April 11, 2025

DA PINTURA

 




"Assim parecia que acabava Lactâncio, quando a senhora Marquesa prosseguiu, dizendo:
- Nem quem será o virtuoso e o quieto (se de santidade a menosprezar) que não faça muita reverência e adore as espirituais contemplações e devotas da santa pintura? Tempo mais asinha creio que minguasse que matéria nem louvores desta virtude. Ela ao melancólico provoca alegria; ó contente e ó alterado ao conhecimento da miséria humana; ao desaustinado move-o à compunção; o mundano à penitência; o não contemplativo à contemplação e medo e vergonha. Ela nos mostra a morte e o que somos, mais suavemente que doutra maneira; ela os tormentos e perigos dos Infernos; ela, quanto é possível, nos representa a glória e paz dos bem-aventurados, e aquela incompreensível imagem do Senhor Deus. Representa-nos a modéstia dos seus santos, a constância dos mártires, a pureza das virgens, a formosura dos anjos e o amor e caridade em que ardem os serafins, melhor mostrado que de nenhuma outra maneira, e nos enleva e profunda o espírito e a mente além das estrelas, a imaginar o império que lá vai."


Francisco de Holanda, Diálogos de Roma, I, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1955, pp. 27-28.

Thursday, April 10, 2025

ANIVERSÁRIO

 




"Desculpa ter erguido a voz. é que o alto está mais próximo do visível e eu precisava que tivesse ficado muito claro isto que acabei de te dizer. Que te encontrei no meio do caminho, e depois segui o desvio."

 

Daniel Faria, Sétimo Dia, 1:15., Lisboa: Assírio & Alvim, 2021, p. 47. 

Wednesday, April 9, 2025

E A HISTÓRIA É FEITA (para a memória de Fernando J. B. Martinho)

 



"O homem luta e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama
A sombra eterna."



Fernando Pessoa, "D. João o Primeiro", Mensagem19.ª ed., Lisboa: Ática, 1997, p. 34. 

Tuesday, April 8, 2025

VOO

 


"Antes de entrar no Templo, minha mãe viu Simeão agitado e feliz e de encontro ao céu, como um grande pássaro que houvesse descoberto o melhor grão.
- «O que ele me dissera de mau, a espada atravessando minha alma, era esquecido logo pela alegria Com que nos saudou. Acho que ele voava para a morte, como o grande pássaro feliz que me pareceu ser, tendo tido em nosso encontro a esperança do pouso, depois da agitação."

Dinah Silveira de Queiroz, Memorial do Cristo, Lisboa-Porto: Centro do Livro Brasileiro, 1983, p. 55. 

Monday, April 7, 2025

VENERANDO ESPAÇO

 



"O mundo abria santo
a órbita por que ia
iluminar o espanto
onde desenvolvia

o ímpeto do impacto
que o estrondo arredondara
para que fosse facto
mas, sobretudo, para

que o desenvolvimento
do estrondo fosse entrando,
não só em pensamento, 

mas, mais, em venerando
espaço que, infinito,
deduz a paz do mito."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 211. 

Friday, April 4, 2025

A VOCAÇÃO HIEROGLÍFICA

 




"A paisagem sobe a um altar
A paisagem desce
(sobe ou desce?)

Árvore é o poço do real
Árvore é o vértice
(poço ou vértice?)

Depois... Sim
depois de qualquer coisa...
há a fé e há a chave
há o barco e há o porto

É só abrir a fogo
o cadeado
e descobrir que nada
existe morto"



João Rui de Sousa, «Meditação em Samos», in O fogo repartido - poesia (1960-1980), Litexa, s. d., p. 122.

Thursday, April 3, 2025

CHARITAS

 


 

"Enfim, como fizera Boaventura, o Compendium declara que os laicos não podem fazer os mortos beneficiar de sufrágios senão pela realização de boas obras. Os beneficiários de indulgências não podem transferi-las nem para os vivos nem para os mortos. Em compensação, o Papa e só ele pode dispensar aos defuntos, ao mesmo tempo, indulgências por autoridade e o sufrágio das boas obras por amor (charitas). Assim a monarquia pontifical estende para fora o domínio do mundo cá em baixo o seu poder sobre o além: passa a enviar - por canonização - santos para o Paraíso e a subtrair almas para o Purgatório."


Jacques Le Goff, O Nascimento do Purgatório, trad. Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 312. 

Tuesday, April 1, 2025

NÃO É IMPUNEMENTE

 



"Vento de nenhuma ordem
levai-me onde é costume ir
quem tem mais para perder
do que para possuir.

Que na própria confusão
das coisas desirmanadas
se encontra a terra e o chão
das almas desencontradas.

Ah, este relógio
que, imperturbavelmente,
me deixa para trás
e segue para diante...

Solicitamente
me navego e exalto.
Tudo o que no homem
é sagrado e eterno
se ergue para o alto."


Raul de Carvalho, "Versos - Poesia II", in Realidade Branca, Lisboa: Círculo de Leitores, 1975, pp. 139-140.