Saturday, May 12, 2012

PARA A SOBREVIVÊNCIA DO CORPO


"Para Bacon, e na sua acepção pitagórica, a amizade torna o corpo do interlocutor um espaço privilegiado para a troca e circulação de palavras. O corpo surge como um bloco de escrita e de palavras, um palco de definições e de manipulações discursivas cujo principal objectivo é evitar a ausência das palavras e do seu poder terapêutico. A nova dinâmica do corpo, baseada na amizade, alimenta e acciona a instituição do discurso como princípio vital para a sobrevivência do corpo. Nesta perspectiva, o silêncio é o estado mais perigoso, pois a total impossibilidade de exteriorização transforma as palavras desejadas em instrumentos poderosos, capazes de ferir e devorar o corpo. O silêncio ou a ausência de um interlocutor adequado e qualificado, um verdadeiro amigo, divide o eu em partes em conflito e reduz o corpo a um palco de violência e de impulsos canibalistas. Nascido da amizade, o discurso, que é a própria amizade, graças às palavras, viabiliza uma partilha de experiências que origina um novo espaço no qual habitam e se movem as palavras mais ameaçadoras e perigosas. A sede de amizade é uma sede de sobrevivência, a sobrevivência do corpo enquanto fonte de palavras obscuras e misteriosas."
Milad Doueihi, História Perversa do Coração Humano, trad. Ana Margarida Fonseca, Lisboa: Terramar, 2002, pp. 80-81.

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