Thursday, October 31, 2013

REVENANT



"Parece que o repouso perfeito nunca irá existir. Mesmo no paraíso, a serpente levanta a cabeça entre os ramos oprimidos da Árvore do Conhecimento. O silêncio da noite sem sonhos é quebrado pelo bramido da avalanche, pelo silvo dos súbitos dilúvios; o tinido do sino da locomotiva marca o seu movimento majestoso através de uma cidade americana adormecida; o fragor de remos distantes no mar... Seja como for, está a destruir o encanto do paraíso. A cobertura verdejante que nos envolvia, estrelada por diamantes de luz, parecia tremeluzir no incessante movimento dos remos, e o som do sino descontente aparentava não mais ter fim..."

Bram Stoker, A Jóia das Sete Estrelas, trad. Alexandra Tavares, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 10. 

Wednesday, October 30, 2013

VIVOS



"Estou rodeado de mortes
Defuntos caminham comigo na saída do cinema.
São muitos, 
                  sinto a presença ativa das magnólias 
queimando em seu próprio aroma.

Os mortos acomodam-se a meu lado
como numa fotografia. 
Ajeitam o paletó, a gola da blusa
e parecem alegres. 

São gente amiga
com saudade de mim
(suponho)
e que voltam de momentos imensamente vividos. 
Tentam falar e falta-lhes a voz, 
tentam abraçar-me
e os braços se diluem no abraço. 
Fitam-me nos olhos cheios de afeto. 

Ah quanto tempo perdemos, 
quanta desnecessária discórdia, 
penso pensar. 

É isto que me parecem dizer seus esplendentes rostos
neste entardecer de janeiro."


Ferreira Gullar, Em Alguma Parte Alguma, Lisboa: Ulisseia/Babel, 2010, p. 52. 

Tuesday, October 29, 2013

OLÍMPIA



" - Separação, separação, - gritou ele feroz e desesperadamente, beijando a mão de Olímpia, inclinando-se para a sua boca, tocando os lábios gelados com os seus ardentes! - Assim, tal como quando ele tocou a fria mão de Olímpia, se sentira possuído pelo horror interior, a lenda da noiva morta veio-lhe repentinamente à cabeça, mas Olímpia tinha-o puxado fortemente contra si, e aquele beijo parecia que os lábios a tinham animado para a vida. - O professor Spalanzani caminhava calmamente pelo salão vazio, os seus passos pareciam ocos e a sua figura, abraçada pelas sombras projectadas pelas luzes, oferecia uma visão fantasmagórica. - Amas-me - Amas-me, Olímpia? Somente essa palavra! - Amas-me? - Murmurava Nathanael, mas Olímpia suspirava, levantando-se: - Ah - Ah! Sim, tu minha bela estrela da manhã, referia Nathanael, surgiste e irás alumiar, irás explicar sempre o meu estado interior! - Ai, ai! replicava Olímpia continuamente."


E.T.A. Hoffmann, Contos Nocturnos; Contos Fantásticos, trad. Linguagest, Barcelona: Mediasat Group, 2004, pp. 30-31. 

Sunday, October 27, 2013

MEMÓRIA



"sofri a memória como um amigo pretérito. Hoje, ela abandonou-me. Deve ser isto o futuro. Interrogação ausente."

Rui Nunes, Os deuses da Antevéspera, 2ª ed., Lisboa: Vega, 1990, p. 61. 

Saturday, October 26, 2013

BENDITO SEJA O FRUTO



"A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós, 
por isso tenho de baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto. 

A poesia é, na verdade, uma 
fala ao revés da fala, 
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala. 
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma."


Ferreira Gullar, Em Alguma Parte Alguma, Lisboa: Ulisseia/Babel, 2010, p. 45. 

Thursday, October 24, 2013

CAMINHO DAS ESTRELAS



"No termo destas evoluções, o homem deixou de existir enquanto indivíduo; aliás, ele já nem faz falta. É este o caminho que conduz às estrelas."

Alfred Kubin, O Império do Sonho, trad. Manuela Torres, Lisboa: Vega, 1986, p. 156. 

Wednesday, October 23, 2013

UNHEIMLICHE



"Dá-se a sensação do sinistro quando qualquer coisa de sentido e pressentido, temido e secretamente desejado pelo sujeito, se faz, de forma súbita, realidade"


Eugenio Trías, O Belo e o Sinistro, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Fim de Século, 2005, p. 46. 

Tuesday, October 22, 2013

SOBRERREALISMO



"Em cima do barco
que esperta a corrente
é hoje que parto
para sempre

Todos os teus rostos
me verão chegar
ver-me-ás saciar
todos os teus gostos
alvuras e mostos
da lira solar

Hoje a noite é una
em luz e razão
Dois olhos - e espuma

Enfuna-te, escuna

Aproa ao vulcão"


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim/ Biblioteca de Editores Independentes, 2008, p. 152. 

Monday, October 21, 2013

AGUARDAR




"amara intensamente porque tudo estivera sempre perdido, não era mais do que a morte ao encontro de si-própria. Adquirira a solidão de quem se povoou de enigmas. E nela existia completamente iluminado. O que esperava dos outros era reconhecerem que o poderiam ter amado."


Rui Nunes, Os deuses da antevéspera, 2ª ed., Lisboa: Vega, 1990, p. 57. 

Sunday, October 20, 2013

IMPOSSÍVEL


"É impossível, não posso. 

Mas porque é que tu querias
Que me desse facilmente, 
Menos grave e desdenhoso?

- Para ter mais simpatias?
Porque me chamam vaidoso? 

Não tentes modificar-me. 
- Que maçada e que trabalho!

Deixa-me ser como sou:
Eu desprezo porque valho."


António Botto, Canções, ed., pref. e notas de Jerónimo Pizarro, Lisboa: Guimarães Editores / FNAC, 2010, p. 67. 

Saturday, October 19, 2013

O OUTONADO



"Completo estou eu de natureza,
em plena tarde de áurea madurez,
alto vento no verde trespassado.
Rico fruto recôndito, contenho
o vasto elementar em mim (a terra,
o fogo, a água, o ar) o infinito.

Jorro luz: douro o lugar escuro;
ressumo olor: a sombra cheira a deus;
emano som: a amplidão é funda música;
filtro sabor: a mole bebe minha alma, 
deleito o tacto de toda a solidão. 

Sou tesouro supremo, desprendido, 
com densa redondez de pura íris, 
do íntimo da acção. E sou-o todo. 
O todo que é o cúmulo do nada, 
o todo que se basta e é servido
pelo que todavia é ambição."


Juan Ramón Jiménez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, pp. 138-139. 

Friday, October 18, 2013

HORIZONTES DE CHAPA



"o homem grita para horizontes de cartolina
pergunta o menino à professora de trabalhos manuais: senhora, 
este é o azul do céu? este, de papel de lustro?"


Rui Nunes, Os deuses da antevéspera, 2ª ed., Lisboa: Vega, 1990, p. 37. 

Thursday, October 17, 2013

AS CASAS



"As casas tinham um papel fundamental. Às vezes, parecia-me que as pessoas estavam lá por causa delas, e não o contrário. Elas erguiam-se, silenciosas, e contudo diziam muito. Cada uma tinha a sua própria história, bastava saber esperar para a arrancar, pouco a pouco, aos velhos edifícios. Estas casas tinham um humor muito variável. Muitas odiavam-se umas às outras, sentiam ciúmes. Havia entre elas grandes refilonas, como a leitaria em frente; outras pareciam insolentes e linguareiras; o café que frequentava era um bom exemplo disso. Subindo um pouco mais, a casa onde morávamos era uma solteirona, ralada pelos desgostos. As janelas espiavam todos os escândalos a divulgar." 


Alfred Kubin, O Império do Sonho, trad. Manuela Torres, Lisboa: Vega, 1986, p. 75.

Tuesday, October 15, 2013

O CASTANHEIRO DO GÓLGOTA (PARA MARIA AGUSTINA)



"Os povos mais antigos tiveram as suas tradições sangrentas. Sacrificavam pessoas e bichos porque se tratava de oferecer aos deuses o que tinham de mais precioso. Mas nas árvores não tocavam. Elas eram consideradas um elo entre os homens e os deuses e serviam de intermediário nas ocasiões de desastre e de angústia. Anda há pouco tempo havia indígenas na Venezuela que falavam com as árvores, o que não é estranho mas só misterioso para os nossos sentidos empobrecidos pela razão. Perdemos, sem dúvida, muitas dessas faculdades naturais e o mundo atingiu por isso uma saturação da sua sobrevivência. Pergunto às vezes ao castanheiro do Gólgota se ele vai durar para além da agressão ao ambiente, mas, como não entendo a linguagem das árvores, fico sem resposta. Conheço, é verdade, certos princípios do esoterismo antigo, como o que diz que Deus é inacessível à nossa razão mas não ao nosso amor. Todos os objectos contêm um sentido para além das aparências. Talvez seja preciso que o deserto volte para criar homens fortes e sublimes. Nesse caso a natureza, na sua aparência doce e protectora, desaparecerá para dar lugar à radical insegurança do deserto, onde a liberdade pessoal consiste nos nossos queixumes e nas nossas preces. O castanheiro do Gólgota pertence à sociedade da honra, a menos má das sociedades imperfeitas. Respira nobreza e abundância, talvez não por muito tempo. Mas a criação não é obra do tempo. É fruto da acção dos homens e do espírito que sopra onde quer."

Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2000, p. 365. 

Monday, October 14, 2013

NO PAÍS DAS ALEGORIAS

(musée des Beaux-Arts, Lyon) 


"En el país de las Alegorías
Salomé siempre danza, 
ante el tiarado Herodes, 
eternamente; 
y la cabeza de Juan el Bautista, 
ante quien tiemblan los leones, 
cae el hachazo. Sangre llueve. 
Pues la rosa sexual
al entreabrirse
conmueve todo lo que existe, 
con su efluvio carnal
y con su enigma espiritual."


Rubén Darío, Obras Completas, tomo V- Poesía, Madrid: Afrodisio Aguado, 1953, pp. 921-922. 

Sunday, October 13, 2013

MEDOS


"A voz molhara-se de lágrimas. Reagi:
- Pois as mulheres devem ter sempre medo de nós. 
- És um simples... As mulheres de quem a gente não tenha medo não prestam para nada. (E acrescentou com melancolia): Faz de conta que estamos de acordo..."


Branquinho da Fonseca, O Barão, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1973, p. 65. 

Saturday, October 12, 2013

CLARIDADE



"A luz das velas esvaía-se branca na claridade da antemanhã. 
- Até isto me dá a sensação de estar longe do mundo. Parece que os outros viveram e eu fiquei lá para trás... feita em pedra. 
- Vai-lhe saber bem, a vida. 
- Julga possível, depois do que lhe contei? Uma mulher, sem amor, não vive. Ou supõe que algum homem pode amar-me?"


Branquinho da Fonseca, O Involuntário, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1973. p. 133. 

Tuesday, October 8, 2013

FAVOR



"«Concederam-te os deuses o favor
Da morte, que eles próprios não tiveram...
A morte, que é o sinal do criador, 
Porque - ai! - a Eternidade é criatura!»


Teixeira de Pascoaes, Marânus, Lisboa: Assírio & Alvim, 1990, p. 71.

Monday, October 7, 2013

HELENA



"A beleza é uma arma que fere e cega, 
mas que estaremos sempre dispostos a perdoar.
Os espartanos receberam-na sem rancor
e, como prémio pela infidelidade
consentida, Helena veio a ser adorada
como deusa do amor em duas cidades."

Paulo Teixeira, Orbe, Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 49. 

Sunday, October 6, 2013

AD INFEROS



"Durante este dia, os fornecedores de instrumentos de física, de armas, de aparelhos eléctricos, tinham-se multiplicado. A boa Marthe perdia a cabeça.
- O senhor está maluco? - perguntou-me. 
Fiz um sinal afirmativo. 
- E vai levá-lo com ele? 
Mesma afirmação. 
- Para onde? - perguntou. 
Indiquei com um dedo o centro da Terra. 
- Para a cave? - exclamou a velha criada. 
- Não - disse eu, por fim.  - Mais para baixo."


Júlio Verne, Viagem ao Centro da Terra, trad. J. Lima da Costa, 2ª ed., Lisboa: Bertrand Editora, 2013, p. 53. 

Saturday, October 5, 2013

CLICHÉS


"livre, passeio pela evidência das coisas, junto ao rio, como um poeta infeliz. Afinal sou um poeta infeliz que passeia junto ao rio, à sua imensa cumplicidade. Porque há uma grande verdade nos poetas infelizes. As palavras é que não conseguem atingir tal verdade. Os poetas infelizes são os poetas medíocres, por isso passeiam pelas margens dos lugares-comuns: as noites de luar e as praias vazias. É esse o precipício. Após as revoluções pseudo-vitoriosas, escolhemos um lugar furtivo na manhã e nele, incógnitos, nos suicidamos"

Rui Nunes, Os Deuses da Antevéspera, 2ª ed., Lisboa: Vega, 1990, p. 11. 

Friday, October 4, 2013

OUTRO TEMPO



"Pois a alma não conhecerá outro leito de morte, 
entre muralhas que em vão tentam
deter avanço e conquista de exércitos;

aprazados dia e hora, neste lugar
onde as estátuas jacentes se sucedem
umas sobre as outras, desde a respiração
da flecha presa entre a corda e o arco
ao século do morteiro e da metralha, 
um, dois e quatro séculos mais tarde
e somados vinte voltaremos, num puro valimento, 
a largar em lentas camadas esta fidelidade
nossa ao nome e à pele da pátria. 

(Esse estremecimento em que o mundo e ramagem
se comovem à passagem de um vento
que levanta as cinzas de outro tempo.)"


Paulo Teixeira, Orbe, Lisboa: Caminho, 2005, p. 32.

Thursday, October 3, 2013

A DESUMANIZAÇÃO



"Estar morto deve ser inteligente. A morte deve ser pura inteligência. Não acredito que existam mortos burros. Deus não ia guardar paciência para ter com ele almas burras. O corpo é um traste. A alma deve ser incrível. Quando nos virmos ao espelho e só ali estiver a alma vamos pasmar de maravilha. Maravilhadas com o que somos ou sabemos ser. Viveremos apenas nas costas dos olhos. Entendes. Seremos apenas as costas dos olhos. O lado de dentro."


Valter Hugo Mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p. 39. 

Wednesday, October 2, 2013

SIMPLIFICAÇÃO



"Depois, respondi-lhe: talvez a morte seja só uma maneira de simplificar a alma. A morte é a simplificação das almas. Deixa-as libertas dos infinitos pormenores do corpo. Libertas da sua vulnerabilidade. Ele deteve-se por um instante. Eu repeti: o corpo suja a alma."


Valter Hugo Mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p. 62.