Saturday, May 31, 2014
PENUMBRA DA PEDRA
"Nestes meus dias sentados
pela penumbra da pedra
há rios que estão repousados
numa extensão que carrega
os lentos nomes dos lagos
as chagas que o tempo lega.
É o caminho sensato
é a fuga à fantasia:
não pensar no chocolate
nem nessa lua que é parte
dum roteiro de alegria;
nem naquilo que sofrido
como amor nunca cumprido
é um quebrado vitral
em torreões destruídos;
nem no estertor hibernal
dum Mahler (esta tristeza
tão enrolada na cal
bem ao rés da nossa mesa);
nem em quanto aqui recorde
o que nos quebra e nos cega
quando a derrota já morde
após o cio da refrega.
Nestes meus dias sentados
alguém cansado sossega."
João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, pp. 27-28.
Friday, May 30, 2014
MERGO
"Mergulhava-me nessas sombras e nessa luz, nessas nuvens e nessas ondas; incorporava-me nessa natureza e julgava confundir-me com a imagem daquela que era toda essa natureza para mim."
Lamartine, Rafael, Lamego: Edições Crisos, 1946, p. 201.
Thursday, May 29, 2014
VIRGO
"E de novo a ave que era o seu coração afundou-se e pareceu morrer. Distraidamente, como que num sonho, recebeu dele a chávena de café. Estava consciente apenas da sua silenciosa figura, sentada ali em cima do tronco, como se fosse uma sombra, com uma chávena de esmalte nas mãos, bebendo o café em silêncio. A vontade fugira-lhe das pernas, ele tinha poder sobre ela: a sombra dele estava nela.O cigano, enquanto soprava o café quente, tinha consciência apenas de uma coisa, do misterioso fruto da sua virgindade, a perfeita candura do seu corpo.Acabou por pousar a chávena de café junto do fogo e por se virar para olhar a Yvette. O seu cabelo caía-lhe sobre a face, enquanto tentava beber da chávena quente. No seu rosto havia aquela terna aparência de sono, que tem a flor adormecia quando se abre por completo e, ela, como uma misteriosa flor temporã, estava inteiramente desabrochada, como uma flor branca que abre as suas três pétalas como asas, para um voo no sonhar acordado da sua breve florescência. O sonhar acordado da sua virgindade totalmente desabrochada, fascinante como uma branca flor brilhando ao sol, caíra sobre ela."
D. H. Lawrence, A Virgem e o Cigano, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 86.
Wednesday, May 28, 2014
18 ANOS
"Não se pode nascer mas
pode-se morrer
inocente."
Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 73.
DEBALDE
"...uma coisa difícil de definir, salvo como uma náusea física da vida."
Barão de Teive (Fernando Pessoa), A Educação do Estóico, ed. Richard Zenith, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 47.
Monday, May 26, 2014
LANÇAR
"Somos pressurosos.
Mas o andar do tempo
tende-o por cousa pouca
no que permanece.
Tudo o que se apressa
passará em breve;
pois só o que fica
nos iniciará.
Não lanceis o ânimo,
moços, no que é rápido,
no tentar do voo.
Tudo é repousado:
o escuro, o claro,
a flor e o livro."
Rainer Maria Rilke, "Sonetos a Orfeu", in Poemas, 5ª ed., trad. Paulo Quintela, Porto: Asa, 2003, p. 211.
Sunday, May 25, 2014
RUIR
"Sinto em mim o ruir dos desmoronamentos.
Sou um caos, aonde os vários elementos
Se chocam com fragor, em grande confusão,
Como na antemanhã o sol e a escuridão!
Metade do meu ser é noite; outra metade
É enérgico fulgor, vibrante claridade!
Sou um triste castelo ao pé dum mar brumoso...
Como uma onda, o velho tempo proceloso
Meus alicerces mina, e, pedra a pedra, eu caio,
A luz esverdeada e trágica do raio!"
Teixeira de Pascoaes, Para a Luz, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 96.
Saturday, May 24, 2014
INTERIOR
"Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre. Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece."
Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, trad. Paulo Quintela, 3ª ed., Porto: o oiro do dia, 1983, p. 30.
Friday, May 23, 2014
GÓTICO
"O criador de imagens arrepende-se
no líquido lugar da realidade."
Gastão Cruz, "Referentes", in Órgão de Luzes - poesia reunida, Lisboa: IN-CM, 1990, p. 170.
Thursday, May 22, 2014
AVISOS
"A morte dura toda a vida. Qualquer outra hipótese deixa de ser imediatamente."
Paul Valéry, Apontamentos. Arte, Literatura, Política & Outros, trad. Luís Fernando Quaresma, Lisboa: Editora Pergaminho, 1994, p. 67.
Tuesday, May 20, 2014
PENSAR
"É possível, pensa esse nada, que se não tenha ainda visto, reconhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milénios para observar, reflectir e anotar e que se tenha deixado passar os milénios como um recreio da escola em que se come o pão com manteiga e uma maçã?"
Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, trad. Paulo Quintela, 3ª ed., Porto: o oiro do dia, 1983, p. 43.
Monday, May 19, 2014
HORAS
"Não vos inquieteis, ó homens! a respeito dos vossos sentimentos e não receeis que o tempo os leve. Não existe hoje, nem amanhã, nas ressonâncias poderosas da memória, o que existe é sempre. O que deixa de sentir, nunca sentiu! Há duas memórias: a dos sentidos, que se gasta com os sentidos, e que deixa perder as coisas perecíveis, e a da alma, para a qual o tempo não existe, e que revive ao mesmo tempo em todos os pontos do passado e do presente da sua existência; faculdade da alma, que tem, como a própria alma, a ubiquidade, a universalidade e a imortalidade do espírito! Tranquilizem-se os que amam: o tempo só tem poder sobre as horas e não sobre as almas."
Lamartine, Rafael, Lamego: Edições Crisos, 1946, pp. 104-105.
Sunday, May 18, 2014
LEVANTE
"Da escuridão a terra levantou a cabeça
toda a luz sob as pedras
se perdera
os cabelos cobriam-se de
desespero e cinza
Estamos presos na praia humedecida
e que temíveis astros é que guardam
esta nossa vazia fala humana?
Escolho-a pois entre a mudez e o canto
A primavera não esconde os ramos
quando nascem as folhas e as flores
não semeia de noite o semeador
nem lavra o lavrador na escuridão
como pode gerar a madrugada
a cadeia nocturna
que gela os nossos ossos e prende o livre amor?"
Gastão Cruz, "Os nomes desses corpos" in Órgão de Luzes - poesia reunida, Lisboa: IN-CM, 1990, p. 125.
Saturday, May 17, 2014
EXTREMO
"Quanto mais perto estou do extremo dia
em que a humana miséria sói ser breve,
mais olho o tempo a andar veloz e leve
e meu nele esperar vão se abrevia.
E a meus cuidados digo: - Curta via
falaremos de amor, que duro deve
terreno fardo como fresca neve
fundir-se; e a paz a nós lá se anuncia:
pois cairá com ele aquela esperança
em que errámos em vão tão longamente,
e o riso e o pranto e o temor e a ira.
Mas claro então veremos que outra gente
às duvidosas coisas mais se avança
e muita vez em vão assim suspira."
Vasco Graça Moura, As Rimas de Petrarca, Lisboa: Bertrand Editora, 2003, p. 127.
Friday, May 16, 2014
INFINITO
"- Rafael - dizia-lhe eu algumas vezes - porque não escreves? - Ora essa! - respondia ele. - Porventura escreve o vento os seus cânticos sobre estas folhas sonoras das árvores? Escreve o mar os gemidos das suas praias? Nada do que se acha escrito é belo; o que há de mais divino no coração do homem nunca daí sai. O instrumento é de carne; a nota é de fogo. O que se há-de fazer? Entre o que se sente e o que se exprime, - acrescentava ele com tristeza- há a mesma distância que entre a alma e as vinte e quatro letras dum alfabeto, isto é, o infinito. Queres traduzir numa flauta de cana a harmonia do universo?"
Lamartine, Rafael, Lamego: Edições Crisos, 1946, pp. 12-13.
Thursday, May 15, 2014
LAÇOS
"Em certa medida intimamente ligado a esse antepassado primitivo, é igualmente solidário de tudo o que dele se separou por via de descendência divergente. Neste sentido, pode dizer-se que cada indivíduo se mantém unido à totalidade dos seres vivos através de traços invisíveis. É, portanto, inútil tentar reduzir a finalidade à individualidade do ser vivo. Se existe finalidade no mundo da vida, ela envolve a vida inteira num único abraço indivisível."
Henri Bergson, A Evolução Criadora, trad. Miguel Serras Pereira, Coimbra: Almedina, 2008, p. 407.
Wednesday, May 14, 2014
FUTURO
"É inútil querer determinar um fim para a vida, no sentido humano da palavra. Falar de um fim é pensar num modelo preexistente que só tem de se realizar. É, no fundo, supor que tudo está dado, que o futuro se pode ler no presente. É acreditar que a vida, no seu movimento e na sua integralidade, procede como a nossa inteligência, que não é mais do que uma vista imóvel e fragmentária dela, e que se coloca sempre naturalmente fora do tempo. A vida progride e dura. Não há dúvida que poderíamos sempre, olhando para um caminho já percorrido, marcar-lhe a direcção, considerá-la em termos psicológicos e falar como se tivesse tivesse perseguido um fim."
Henri Bergson, A Evolução Criadora, trad. Miguel Serras Pereira, Coimbra: Almedina, 2008, pp. 415-416.
Tuesday, May 13, 2014
EXTRALAVAGANTE
"O homem sentiu um aperto de grande alegria. Era um mero fabuloso. Apontou a arma, avançou mais e os cardumes que o rodeavam escaparam-se por todos os lados. Mas o peixe, nada. Não podia estar morto àquela profundidade e sobretudo inteiro e sem mácula como de facto se apresentava. Em águas tão povoadas, uma majestade como aquela não levaria um minuto a ser esquartejada pelos monstros vorazes do oceano e depois discutida, guerreada, até os derradeiros e mais pobres despojos se sumirem nas tocas dos lavagantes ou nas tenazes dos sórdidos caranguejos."
José Cardoso Pires, O Anjo Ancorado, Lisboa: TVguia Editora, 1996, p. 52.
Monday, May 12, 2014
HEROICO
"Ali, duas mulheres numa caleche, que fugiam de Paris insurgido, ao verem um oficial da Guarda ferido, coberto de sangue e deitado sob os blocos de pedra que cercavam, nesse tempo, a igreja da Madeleine, que estava ainda em obras, puseram a carruagem à sua disposição, e ele fez-se conduzir por elas ao Gros-Caillou, onde se encontrava então o Marechal de Raguse, ao qual disse militarmente:- Meu Marechal, devem restar-me umas duas horas; mas, durante essas duas horas, destaque-me para onde queira!..."
Barbey D'Aurevilly, "A Cortina Carmesim", in As Diabólicas, trad. J. Teixeira de Aguillar, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 14.
Sunday, May 11, 2014
POSIÇÃO
"Era uma aldeola de desgraça e apresentava-se numa estranha posição perante o mundo. Não parecia virada para os astros, se bem que encarrapitada a tão grande altura; ligada ao mar, ainda menos, pois toda a sua tendência era apegar-se à rocha para não se espatifar lá em baixo. E quanto à terra firme, virava-lhe costas muito simplesmente."«A terra não os quis. Foi expulsando estes infelizes mas, diante do abismo, eles resistem-lhe.»Tal foi a lenda que se representou no espírito de Guida: a terra expulsando um punhado de malditos."
José Cardoso Pires, O Anjo Ancorado, Lisboa: TVguia Editora, 1996, p. 27.
Saturday, May 10, 2014
SOMBRAS ELEVADAS
"Canto dissecante,
Alude cínico,
Na sua ebriedade sibilina,
Aos fundos
Dourados
Do divino,
Ecoa a profanação imponente
Das sombras elevadas
Nas que apaga a desfear a tela.
É a sombra plana que projecta
No lugar da luz branca,
Luz mortiça,
De linhas visuais
Claras,
Parcamente
Iluminadas."
José Emílio-Nelson, Ameaçando Vivendo - Obra Poética II [2005-2009], Porto: Afrontamento, 2010, p. 117.
Wednesday, May 7, 2014
TOMBOS
"Com seus tombos internos, as nevralgias sabotam
os trilhos que nos poderiam conduzir, pela sombra,
à perfeita ficção de um mundo definido pela polidez
esclerosada do discurso. Porque a Beleza, no perímetro
em que vivemos, é sempre uma meretriz de baixo coturno,
lamentando-se por ter perdido as sapatilhas um dia
em que dançava nua, atenta aos horrores da paisagem,
sobre o relevo dos túmulos. Acerca dos padrões de lantejoulas
ou o berloque das rimas, escreveu Baudelaire, deixando-
nos contudo uma incómoda pergunta: a que
se referia ele ao dizer que só quem no sonho
se soube corromper pode aspirar um dia a descansar
pela palavra no solo que lhe reservou a sepultura?
(La porte est fermée: tu ne ressusciteras plus!)
Fernando Guerreiro, Grotesco, Lisboa: Black Sun Editores, 2000, pp. 35-36.
Monday, May 5, 2014
HOMAGE
"A dúvida é uma homenagem prestada à esperança. Não uma homenagem voluntária. A esperança não consentiria em não ser mais do que uma homenagem. O mal insurge-se contra o bem. Não pode fazer menos do que isso."
Isidore Ducasse (Conte de Lautréamont), Os Cantos de Maldoror, trad. Pedro Tamen, V. N. Famalicão: Quasi Edições, 2004, p. 264.
Saturday, May 3, 2014
O DESCONHECIDO
"E conhecerás a natureza do éter e do éter todos
os sinais, e da pura e brilhante luz do sol
as obras invisíveis e de onde provêm;
e saberás os efeitos circulares da lua a girar
e a sua natureza, e conhecerás o céu que os contém a toda a volta
de onde ele nasceu e, como conduzindo, o obrigou
a Necessidade a conter [no seu limite] os astros."
Parménides de Eleia, Sobre a Natureza, trad. António Monteiro, Lisboa: Lisboa Editora, 1999, p. 44.
Friday, May 2, 2014
DA SABEDORIA
"HIPÓCRATES: La vida és breve y el arte es largo, el tiempo es corto, la experiencia es peligrosa y el juicio es dificil. No debes contentarte con hacer tú solo lo conveniente, sino que también deben ayudar el enfermo los que le rodean y los elementos externos."
Maimónides, Obras Médicas, vol. III, trad. Lola Ferre, Córdoba: Ediciones El Almendro, 2004, p. 31.
Thursday, May 1, 2014
INDUSTRIAR
"Só somos tocados, instruídos ou industriados pelo absolutamento outro, ou estranho. Só o dom do estranho nos pode ensinar, industriar, o inquietante e absolutamente estrangeiro."
Carlos M. Couto Sequeira Costa, Vedutismo, Coimbra: Pé de Página Editores, 2005, p. 46.
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