Saturday, January 31, 2015

GEOMETRIA



"E isto enche o mundo de melancolia, traduz a vida severa no scenário severo, ou debate-se com desespêro até aos pés de Deus. E mais ainda, vai mexer no fundo da nossa alma, vai revolver coisas indefinidas e amargas e acordar preguntas que não têm resposta. Que estou aqui a fazer na solidão, com o pêso das estrelas em cima - cada vez mais estrêlas em cima de mim? Que estou eu a fazer na vida?"

Raul Brandão e Maria Angelina, Portugal Pequenino, ed. fac-símil da edição de 1930, Coimbra: A Bela e o Monstro Edições, 2013, p. 149. 

Friday, January 30, 2015

CHEGADO O TEMPO



"Oh chegou o tempo! Oh chegou o tempo de exaltar!
Havia no cais altos navios de música. Havia promontórios
de campeche; frutos silvestres que rebentavam... Mas o que fizemos
dos altos navios de música que havia no cais?"


Saint-John Perse, Elogios, trad. Jorge Melícias, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 35. 

Thursday, January 29, 2015

OS PORMENORES



"Não, não: não há nada no mundo que se possa imaginar, nem a mínima coisa. Tudo se compõe de tantos pormenores únicos que não se podem prever. Ao imaginar, passa-se por cima deles e não se lhes dá pela falta, apressado como se é. As realidades, porém, são lentas e indescritivelmente circunstanciadas."

Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, trad. Paulo Quintela, 3ª ed., Porto, O Oiro do Dia, 1983, p. 145. 

Tuesday, January 27, 2015

CONTAR A VIDA


" - É uma longa jornada, Incubu. - Quartelmar, diga-lhe que não há jornada que o homem não possa empreender - replicou o barão (que evidentemente estimava e considerava aquele singular zulu). - Nada há que o homem não possa fazer, nem desertos que não possa atravessar, nem montanhas que não possa subir, se puser nisso alma e vontade. O essencial é contarmos a vida por coisa nenhuma, alegremente prontos a conservá-la ou a perdê-la segundo Deus ordenar."

Rider Haggard, As Minas de Salomão, trad. Eça de Queirós, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, pp. 49-50. 

Monday, January 26, 2015

TANQUE




"Vem uma mudança ocultar nos olhos
os ossos da cegueira,e  então o ventre
mergulha na morte como o aparecimento da vida."


Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 19. 

Sunday, January 25, 2015

ÁSPERO



"Este mundo, meus amigos, é áspero de atravessar; e os destinos violentos impõem-se por vezes com uma lógica inexorável."

Rider Haggard, As minas de Salomão, trad. Eça de Queirós, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, p. 9. 

Friday, January 23, 2015

ESCUTA



"Tudo é conhecido: o apelo das estrelas
traz a alegria para que possa viajar com os ventos,
ainda que a pergunta das estrelas ao cercarem 
ao longo das estações as torres que há no céu
mal se possa escutar antes que elas se extingam. 
Escuto a felicidade, e dizer 'Sê feliz!'
que soa como uma campainha ao longo dos corredores
e também 'Nenhuma resposta!', e ignoro
o que se possa responder aos gritos das crianças
que chegue trazido pelos ecos, ou o homem da geada
e os fantasmas dos cometas sobre as suas mãos erguidas."


Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 35. 

Thursday, January 22, 2015

ECO BRANCO



"Quando chega o homem da neve?  - perguntam as crianças.
Serão capazes de segurar as suas mãos um cometa?
Enquanto que, vinda de todos os lados, a poeira
não lance nos olhos das crianças um prolongado sono
e os seus fantasmas não tenham povoado as sombras, 
nenhum eco branco há-de descer dos tectos."


Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 35. 

Tuesday, January 20, 2015

VAGUEAR




"Podemos muito bem, se for esse o nosso desejo, vaguear sem destino pelo vasto mundo do acaso. Que é como quem diz, sem raízes, exactamente da mesma maneira que a semente alada de certas plantas esvoaça ao sabor da brisa primaveril."

Haruki Murakami, Em busca do Carneiro Selvagem, trad. Maria João Lourenço, Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2007, p. 80. 

Monday, January 19, 2015

GELADO



"Porque nos gela o vento de Leste e nos refresca o do Sul
não o saberemos enquanto não fiquem vazias as fontes dos ventos
e que os de Oeste deixem de estar submersos
naqueles que transportam consigo a casca das árvores e os frutos
porque vem a pedra feri-lo e é suave a seda
há-de a criança perguntar ao longo de cada dia; 
porque a chuva das noites e o sangue do seio
satisfazem a sua sede, para ela será sempre obscuro."


Dylan Thomas, A Mão ao Assinar Este Papel, trad. Fernando Guimarães, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 35. 

Thursday, January 15, 2015

A VERDADE



"A morte é a verdade e a verdade é a morte

Tão contente de vento, ó folha que nomeio
como quem à passagem te colhesse, 
palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim
do alto da tua inatingível condição

De muito longe vinda, inviável lembrança
indecisa nas mãos ou consentida
por alguma impossível infância
E a alegria é uma casa recém-construída

Face melhor de todos nós, ó folha 
dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento, 
no calmo outono, o dos primeiros frios, sais
do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema
como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá

Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida"


Ruy Belo, O Problema da Habitação, 4ª ed., Lisboa: Presença, 1997, p. 25. 

Wednesday, January 14, 2015

VIVER




"Vivir quiero conmigo;
gozar quiero el bien que debo al cielo, 
a solas, sin testigo, 
libre del amor, de celo, 
de odio, de esperanzas, de recelo"


Fray Luis de León, Poesías, Madrid: Diario El Sol, 1991, p. 12. 

Tuesday, January 13, 2015

SOPRO



"Nos rios a norte do futuro
lanço a rede que tu
hesitante afundas
com sombrias escritas por
pedras."


Paul Celan, "Sopro, Viragem", in Sete Rosas Mais Tarde - Antologia Poética, trad. João Barrento, 2ª ed., Lisboa: Cotovia, 1996, p. 121. 

Monday, January 12, 2015

SOBERBA


" - Cuántas veces - le dijo a don Álvaro -, habrás comparado mis mejillas a las rosas, mis labios al alhelí, y mi talle a las azucenas que crecen en ese jardín! Quién pudiera creer entonces que la flor de mi belleza y juventud se marchitaría antes que ellas? Vana soberbia la de los pensamientos humanos! El hombre se figura rey de la naturaleza y, sin embargo, él sólo no se reanima, no florece con el soplo de la primavera."

Enrique Gil y Carrasco, El señor de Bembibre, Madrid: Cátedra, 2014, p. 432. 

Sunday, January 11, 2015

MONTIUM



"(...) dejaban descubierta del todo la terra roliza y ensangrentada que los alimenta y, en las montañas lejanas una triste corona de vapores y nublados oscilaba en giros vagos y caprichosos al son del viento, cruzando unas veces rápidamente la atmósfera en masas apiñadas y descargando recios aguaceros y entreabriéndose otras a los rayos del sol para envolverle prontamente en su pálide y húmeda mortaja."


Enrique Gil y Carrasco, El señor de Bembibre, Madrid: Cátedra, 2014, pp. 334-335. 

Saturday, January 10, 2015

MORADAS



"Como si uno entrase en una parte adonde entra mucho sol, y llevase terra en los ojos, que casi no los pudiese abrir. Clara está la pieza, mas él no lo goza por el impedimento, o cosas de estas fieras y bestias, que le hacen cerrar los ojos para no ver sino a ellas."

Santa Teresa de Jesus, Castillo Interior, o Las Moradas, Barcelona: Editorial Ramón Sopena, 1972, p. 20. 

Thursday, January 8, 2015

FELICIDADE




" - Oh, es verdad! Hubiéramos sido demasiado felizes!
- No cabía tanta ventura en este angosto valle de lágrimas."


Enrique Gil y Carrasco, El señor de Bembibre, Madrid: Cátedra, 2014, p. 227.

Wednesday, January 7, 2015

NOUS SOMMES CHARLIE



"Uma gente em fuga de outra gente, 
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens. 

Deixam para trás um tal seu tudo, 
campos semeados, umas galinhas, cães, 
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira. 

Levam às costas os cântaros e as trouxas, 
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.

É em silêncio que alguém desfalece, 
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém 
e alguém sacode o filho morto. 

Nunca é pela estrada que têm à sua frente, 
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos, 
no alto, um avião errante rodopia.

Oportuna seria a invisibilidade, 
uma parda rochosidade, 
ou ainda melhor a inexistência 
durante um pouquinho ou por mais tempo. 

Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê. 
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem, 
de que forma e com que intenções. 
Se puder escolher, 
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida."


Wislawa Szymborska, Instante, trad. Elzbieta Milewska, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006, pp. 67; 69. 

Tuesday, January 6, 2015

GUIAR




"A morte do escritor
não se quer resolver dentro de mim. 
Mas não tenho gosto na infelicidade
e por isso busco o meu caminho
como um verme sabe do seu, dentro da terra. 
Muitas coisas me valem quando Deus fica estranho
e do que é mínimo, às vezes, 
vem o desejado conforto. 
Informativo popular coração de Jesus
é o nome de um calendário de parede. 
ABENÇOAI ESTE LAR está escrito nele. 
O coração sangra na estampa, 
mas o rosto é doce, próprio a enternecer
as mulheres da cozinha, feito eu. 
Toquem mal o piano, vou me deliciar
- nada é mesmo perfeito - 
uma gota de mel desce em minha garganta. 
No dia 8 de janeiro está escrito na folhinha:
A FÉ GUIOU OS MAGOS - LUA NOVA AMANHÃ.
Lua nova, 
que nome mais bonito pra um consolo."



Adélia Prado, "O Coração Disparado", in Com Licença Poética, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 37. 

Monday, January 5, 2015

A CRIAÇÃO


"A criação. O criar-se a si mesmo. Aprender a morar em si mesmo, como diz Stirner. Eis o que o artista faz. Vai buscar energias ao mundo, mas se quer a santidade, se quer a perfeição, vai beber às profundezas de si mesmo, aos espíritos que vivem em si, aos desertos e abismos interiores."

A. Pedro Ribeiro, O Caos às Portas da Ilha, Porto: Edita-me, 2014, p. 103. 

Sunday, January 4, 2015

FUNDIR




"Quando a beleza se funde
com o espírito
há explosões
que vêm de dentro
quando a beleza se funde
com o espírito
há mundos que se abrem
loucura
criação
quando a beleza se funde
com o espírito
há aves livres
banquetes
celebração
quando a beleza se funde
com o espírito
és tu à mesa
és tu ao balcão
quando a beleza se funde
com o espírito
já não há mais mercado
nem prisão."


A. Pedro Ribeiro, O Caos às Portas da Ilha, Porto: edita-me, 2014, p. 45. 

Saturday, January 3, 2015

O REAL SERÁ



"o real será
a tradução da sombra, 
a intranquilidade
de existirmos?

será como numa 
auto-estrada o carro
que pede ultrapassagem
abusando dos códigos?

o real será 
a epígrafe 
de sermos?

uma espécie de canto
que a música transcende?
uma realidade?"


Vasco Graça Moura. Antologia dos Sessenta Anos, Porto: Edições ASA, 2002, p. 24.

Friday, January 2, 2015

PEQUENA ORDEM



"Agora a ordem das palavras nem sempre era a mesma porque havia o sentido que se sobrepunha. Teodoro gostava da leitura contínua, onde podia situar-se e saber por onde ir. Depois de conhecer todas as regras poderia finalmente movimentar-se na sua fantasia e tentar testar a sua pequena ordem individual com o grande caos do mundo."

Tiago Patrício, Trás-os-Montes, Lisboa: Gradiva, 2012, p. 105. 

Thursday, January 1, 2015

PRIMA PORTA




"O centro do deserto é um outro deserto
onde dizê-lo se estrutura
onde o acaso se desvenda
para ser o gosto que permanece
na língua
e este gosto é o mesmo

o sabor do saber que nada sabe de si."


Laureano Silveira, "Os Secretos Felinos", in O Lado Negro do Lado Branco, Porto: Limiar, 1993, p. 168.