Wednesday, January 7, 2015

NOUS SOMMES CHARLIE



"Uma gente em fuga de outra gente, 
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens. 

Deixam para trás um tal seu tudo, 
campos semeados, umas galinhas, cães, 
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira. 

Levam às costas os cântaros e as trouxas, 
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.

É em silêncio que alguém desfalece, 
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém 
e alguém sacode o filho morto. 

Nunca é pela estrada que têm à sua frente, 
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos, 
no alto, um avião errante rodopia.

Oportuna seria a invisibilidade, 
uma parda rochosidade, 
ou ainda melhor a inexistência 
durante um pouquinho ou por mais tempo. 

Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê. 
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem, 
de que forma e com que intenções. 
Se puder escolher, 
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida."


Wislawa Szymborska, Instante, trad. Elzbieta Milewska, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006, pp. 67; 69. 

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