Saturday, November 30, 2024

SENHOR DA CAMPA

 



"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando."



Vinícius de Moraes, O Operário em Construção, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, p. 120.

APREENDER

 


"Dizem os físicos que inicialmente havia o caos, mas não é verdade. O caos persiste nos meus braços e nas minhas pernas, sou uma espécie de substância atómica distraída da estabilidade necessária. 

Às vezes, olho-me por dentro, tentando apreender o pensamento de algum Deus que eventualmente por aí exista, e se assim é, será um pensamento obrigatoriamente caótico, disperso, criativo, hesitante, irónico e cruel. Irritante. Um pensamento de criança. Igual ao do mundo. Igual a mim."


Risoleta Pedro Natálio, O Corpo e a Tela, Lisboa: Hugin, 1997, p. 34. 

Thursday, November 28, 2024

POUSIO

 


"Pousou, de súbito, o frio.
E apareceu um lugar
que era só seu próprio limbo.
Ou uma pausa. Da qual
avultava o fora íntimo
e abria uma espécie de ar.
Que parava. Para o brilho
ir caindo. Se apagar
de forma a fundar-se um sítio
cujo horizonte se vai,
insensível, retraindo.
Recolhendo-se. Por trás
talvez se confundam bichos
e alheiem matagais
na letargia de um ritmo
que prepara o ir nevar."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 129.

NOVEMBRO

 



"Novembro atinge aquela transparência
que se enreda nas árvores, de sorte
que apareça nos troncos a tristeza
feliz de quem os olhe.
E os ramos por onde trepa
ainda a lenta circulação da noite
retém retículas, e a análise discreta
do deslumbrado ver com que se doure.
Assim, Novembro reina.
Mas, se por acaso, chove
somos Novembro reclinado à beira
da transparência que confina a morte."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 124.

Tuesday, November 26, 2024

CREPÚSCULO

 



"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória: ti, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluidos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"


Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal, 1991, p. 275.

Monday, November 25, 2024

SOPRO

 


"Soprou: não te aproximes
dos deuses
sem te acautelares. Ampara

o que não pode
senão amassar
o oculto pão da recusa.

E bebe, infinitamente
bebe

o estrondo repetido
de cada gota

caindo."


José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 71.

Sunday, November 24, 2024

FERMOSA

 


"Ficou despois de morta mais fermosa do que dantes era, pelo que a puseram aonde fosse vista de todos e as mulheres da vila a vinham ver, tocando algumas coisas em seus pés, as quais guardavam por relíquias, porque tinham por mais certo que estava sua alma na glória"


Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 185. 

Saturday, November 23, 2024

UM TEMPO DE ESTRUTURA FRÁGIL

 



"Andando foram. E, depois de andarem,
com a noite a chegar pelo caminho,
abriu-se um tempo de estrutura frágil
que poderia acompanhar os rios.
Aí, parar era possível. Árvores
sugeriam o sono. Mesmo o ritmo
acomodava o lucilar da margem
à sede vagarosa com que os bichos
pungiam o costume dos lugares.
E os deixavam a anoitecer no brilho.
Pararam por ali. Já era tarde.
Passara o tempo a aparecer antigo."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 50.

Friday, November 22, 2024

DENSIDADE




"Puro é o deserto. Porque só mensura
a antiguidade de estar
sendo o em si mesmo. Que pulsa
por um tempo que é quase que sinal
de apenas longe a dilatar a sua
profundidade. Onde vai arredondar-se
essa expansão segura
que sitia um quase virtual
retraimento de matéria. E uma
densidade nem quase material.
Mas o deserto insiste. Indiferente à altura
e à idade arcaica das formas animais."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 39.

Thursday, November 21, 2024

RENTAVA

 



"O sem sítio rentava o onde arcaica
havia a massa de se instaurar, e em sítio.
Nem o ainda media. Nem mais nada
senão silêncio. Para, depois, o brilho
de um prelúdio em negrura iniciática
concentrar a vertigem do vazio.
Depois ainda, foi a vertigem estaca.
Que a vacuidade prévia pegou brio
e estrondo. De onde apareceu a massa
de uma força que sacudia em ciclos
a glória desastrada
que recomeça na dos cataclismos.
E a tudo presidia, não palavra,
mas o silêncio na palavra inscrito."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 10.

Wednesday, November 20, 2024

ENCONTRO

 




"Tudo tende para o encontro
para o uno e a totalidade, 

seres míticos e grandes espíritos
sarianos, a fórmula mágica

e invariável dos devotos
na oração eterna, 

o vínculo entre a palavra primitiva
e a sua ideia pós-diluviana."



Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 85. 

Tuesday, November 19, 2024

COBERTA

 





"Coberta de absurdos
a parede

devolve-me os mortos,
tempo e sombra subindo
no quarto, equações

rangendo, postigo
de sangue apertando
a abordagem do susto."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 127.

SOUCIS

 




"Que nada te perturbe: rumor,
trabalho, a carne
peregrina da terra

imersa na escuridão, o
salto

que o poema pode
desenhar. Ne te fais pas
de soucis, come

a lanterna dupla
do riso, sobe

os andaimes das equações
e lambe, sobretudo
lambe
as privadas lágrimas
do sofrimento."


José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 152.

Sunday, November 17, 2024

ROCHA ALTA

 



"Já a Pastora chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia,
Dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
E entr' ela, e el-Rei só a lança se metia.
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou Céu lhe escaparia,
Quando COMBA gritou: ó rocha alta, onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.
Ó Maravilha grande! abriu-se a dura pedra.
Obedeceu à Santa a rocha dura,
Obedeceu à Santa, e abriu-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.
Também a lança do Mouro abriu a pedra,
Ao pé fica assinada a ferradura,
Ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
E na pedra a lançada se conhece.
Tanto que em si recolheu, cerrou-se
A dura rocha, assim de Deus mandada."



António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 29.

DORMITÓRIOS

 



"Não se diz no letreiro que morreu de vinte e um anos, senão que os viveu, porque quem morre ao mundo sempre vive pera Deus e assi nunca morre, e foram, como está dito, seus anos vinte e um, bem poucos a respeito de muitas virtudes que já tinha alcançado; pelo qual em o mesmo letreiro se lhe aplica o que lemos de Enoc no livro do Eclesiástico, isto é, que brevemente cumpriu muitos tempos. Diz mais: que dormiu em paz, porque os mortos hão-de ressuscitar com tanta facilidade das sepulturas como os que dormem de seus leitos e por isso os adros são chamados cemitérios, que é o mesmo que dormitórios. Quando lemos que dormiu em paz, podemos coligir que teve a morte dos justos, que andam na vida sempre diante de Deus, até que no fim se vêm a unir e abraçar com Ele e a descansar em paz, como pedimos nas exéquias de nossos defuntos, sabendo que são bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor" 

 

Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 102. 

Saturday, November 16, 2024

VOAR

 



"Quero voar
sem qualquer depois, esquecer

a fome das manhãs, a
incansável
desdita respiratória. Houve

um falso acordar
um dia, pequeno
relâmpago nenhum."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 118.

Friday, November 15, 2024

SILÊNCIO NEVRÓTICO

 




"Tudo é um branco demasiado vago
na tarde imensa...


A árvore do tédio exala um calor ébrio
que abre o pano do medo
e aprofunda as feridas do tempo.


A rotina com a sua cor sem memória
elogia os vultos que afagaram o Outono.
Estende a cidade na poeira das sombras.


Eu vagamente bêbado de incertezas
deponho o meu fantástico desprezo
na tristeza redonda do momento.


E deixo-me morrer
na curva austera dum silêncio nevrótico."



José Bação Leal, Poesias e Cartas, Porto: Tipografia Vale Formoso, 1971, p. 28.

Thursday, November 14, 2024

SÓ POR DENTRO

 




"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."



David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 178.

PRAESIDIUM

 



"Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!"



David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 179.

Monday, November 11, 2024

FUGIDIA

 


"A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. «A verdade não nos foge»: esta fórmula de Gottfried Keller assinala, na concepção da história própria do historicismo, precisamente o ponto em que essa concepção é destruída pelo materialismo histórico. Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela."


Walter Benjamin, O Anjo da História, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 11. 

Sunday, November 10, 2024

ACREDITAR

 


"Conceição tinha outro, de que dizia maravilhas: As Tristezas à Beira Mar. E, lentamente, foi-se estreitando entre ambos uma amizade nova, cimentada em mágoas e alegrias colhidas nos romances. Uma vez, Ramiro perguntou a Conceição se acreditava em tudo o que os romances diziam. Ramiro disse-lhe que sim: que os romances eram mais verdadeiros que a vida, pois apenas se contavam neles tristezas e desgraças, e tristezas e desgraças eram a única coisa verdadeira que o homem encontrava neste mundo."


João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 309. 

Saturday, November 9, 2024

ELEGANTE FIGURA CÉNICA

 



"Depois já será tarde
para te alcançar no caminho por onde avanças.
Aguardo aqui sentado sentindo o afastamento,
procuro calcular bem os tempos e as distâncias,
as capacidades locomotoras dos meus passos
ou até da minha corrida lesta
ao longo desta paisagem ocelada e formosa.
Mas no fundo o que me interessa
é o cálculo e não a prática,
ou quem sabe depois exercite a prática, em
elegante figura cénica,
após o cálculo de
já não te encontrar no caminho."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 344.

VER NASCER A CLARIDADE

 



"Vem ver nascer a claridade
ver a sombra transformar-se em lume. Como
sabes, sou sempre novo
e falarei em cores
para poderes colorir as camélias."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 298.

Tuesday, November 5, 2024

PAUSAS DE LUZ

 



"Nas pausas de luz
trazidas pelos dias com chuva
no regaço enrolas grãos de cinza.
Despedes-te da tarde
num alhear de fogo
enquanto a lua se afunda
nas poças da rua
num agudo rebramir de vozes."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Dióspiro - Poesia Reunida 1977-2007, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 202. 

Sunday, November 3, 2024

ABISMADO

 


“Onde acabava o céu e começava a terra? E as árvores rumorejavam, os ralos cantavam – um estrépito novo, profundo, incessante, enchia a noite. Ficou um momento debruçado, escutando a amplidão sonora: invadiu-o uma tristeza diferente de todas as tristezas. Sentiu as lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Dir-se-ia que a vida acabara para ele. Como era possível uma pessoa ficar assim de repente como morta, tão longe de tudo que amava? Entre o ser debruçado daquela janela e aquele que momentos antes se abraçara a chorar ao pescoço do pai já não havia relação alguma. Tudo o que até então se lhe afigurara a vida – a sua própria vida – era agora uma coisa tão distante como os montes que costumava fitar, abismado, do alto do Castelo de Leiria. Imaginava que para além ninguém podia ser feliz: era como se o mundo acabasse ali e depois fosse a frieza desolada de um planeta morto. Nesse planeta habitava agora.”


João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 22. 

Saturday, November 2, 2024

DIA DOS MORTOS


 
“Esta visão deu a Rochester uma satisfação cínica, alimentando provavelmente a sua invocação do «Nada», um soberbo poema existencial que não perdeu nenhum do seu brilho.

«Ó Nada, mais velho até que a Escuridão
Já existias mesmo antes da Criação
E és o único que não teme a extinção.

Antes de haver Espaço e Tempo, não havia tal.
Quando o Nada Primitivo criou algo natural,
Tudo – o quê? - se gerou da união original.

Mas teu poder foi comandado por algo profundo
Que da tua mão, cheia de um vazio fecundo,
Fez homens, bichos, fogo, água, ar e mundo.”


Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 102.

Friday, November 1, 2024

SONETO DE OUTONO

 




"Dizem-me os teus olhos, claros como o cristal:
«Qual é, para ti, estranho amante, o meu mérito?»
- Sê bela e cala! Meu coração, que só preza
A candura dos primitivos animais,

Não quer revelar-te o seu segredo infernal,
Embalo cuja mão me predispõe ao sono,
Nem a seu negra lenda lavrada a fogo.
Odeio a paixão, e o espírito faz-me mal!

Amemo-nos docemente. No abrigo, o amor,
Emboscado, retesa o seu arco fatal.
Conheço os engenhos do seu velho arsenal:

Crime, horror, loucura! - Ó pálida margarida!
Não serás tu, como eu, um sol outonal,
Ó minha branca, ó fria Margarida?"



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 151.