Tuesday, September 30, 2025

IMENSA PUREZA

 


"Alguns iam pedir a Deus e aos seus pastores que os recebessem e lhes explicassem o que não estava certo. Entretinham-se a ensinar o padre-nosso às crianças nos orfanatos. Depressa atingiam o rubro, tomando a humilhação pela prece, a ruína do homem pela sua santidade. Isto permitia aos mais inteligentes entregarem-se a uma espécie de poesia. Deus continuava o seu velho ofício, deixando-se acomodar a todas as receitas. Nascimento de bons deuses, aparições de santos arrancados aos poetas que prefeririam ser tomados por funâmbulos de Notre-Dame. Imensa pureza, refúgios, indulgências. Poetas abriam escritórios de conversão, Rimbaud era atirado, apesar dos seus curas, para serem aceites pela juventude, explicavam que a oração e a poesia são faces de um acto único. Este Janus bifronte permitia todas as declarações sobre a pureza e a impureza da poesia, sobre a inspiração, a conversão e a inversão."

 

Paul Nizan, Aden-Arábia, trad.  José Borrego, Lisboa: Editorial Estampa, 1991, p. 67. 

Monday, September 29, 2025

LUX VIVENS, ANGELI



 "Ó cheios de glória, luz vivente, ó Anjos, 
que sob a divindade os divinos olhos
com a mística obscuridade de toda a criatura
fixais em ardentes desejos, 
que jamais podeis saciar. 
Ó glorioso gáudio aquele que vossa forma tem, 
intacta em vós de toda a obra de iniquidade, 
que primeiro no vosso sócio teve origem, 
no Anjo perdido, 
que quis voar
sobre o pináculo inacessível de Deus,
donde o próprio prevaricador  foi precipitado em ruína. 
Mas a prevaricação tornou-se instrumento
com que Deus consolidou a sua obra
de salvação."


Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, introd. e trad. Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 63. 

Sunday, September 28, 2025

ESCRITA




"Entre campos de água
e leiras de sargaço
na solidão, placentária, da casa
aro melancolias.
Como se de flores,
e não de espinhos,
se tratasse."


Luísa Dacosta, A Maresia e o Sargaço dos Dias, Alfragide: Edições Asa II, 2011, p. 29.

Saturday, September 27, 2025

DERROTA


 

"És o derrotado.
Por uma impressão, um domínio
de imagens onde os grandes trevos
desenham as suas sombras,

por um meio-dia sem esperança
ou virtude, uma floresta
de bichos atónitos no fulgor
desabrido de uma clareira.

Os nomes tinha coisas no início.
Depois perderam-se os nomes
na sua relação (sanguínea, densa)
com as coisas. As peças de que se compunha
a natureza deslocaram-se para parte incerta.

Escreves atestando a derrota."


Luís Quintais, Nocturama, Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 41.

Friday, September 26, 2025

EXPRESSIVIDADE E VOCABULÁRIO

 


"O meu Joaquim nunca se atrapalha com as palavras, consegue sempre dobrá-las a seu jeito. Outro dia era preciso um título para um momento do texto e que fizesse resssaltar a patetice do lobo. Ninguém saída da cepa torta, quando ele arranjou um título que foi aprovado por unanimidade. Pois se o lobo era lorpa, o que quadrava estava à vista: «a lorpeza do lobo.» Às vezes em História e Geografia as coisas não são tão fáceis, mas ele mesmo por caminhos não lógicos passa o pensamento. Outro dia no exercício escrito e a propósito da representação da Terra escreveu: «Os globos têm muitas inconveniências, porque as terras ficam duma pequenura tão grande que mal se vêem, por exemplo: Portugal!»"


Luísa Dacosta, Na Água do Tempo - diário, Porto: Edições Asa, 2005, p. 157. 

EDIFICAI

 




"Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? - Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas - vamos! - vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores;
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus
Edificai-vos, regalai os olhos!"


J. W. Goethe, Poemas, 4.ª ed., trad. Paulo Quintela, Coimbra: Centelha, 1986, p. 199.

Wednesday, September 24, 2025

ATENTO

 



"Escuta. Fica atento. Diante das árvores, das pedras,
das casas, de todas as coisas. Escuta-as,
porque elas dizem-nos o que são. Procura
compreendê-las. No seu centro, onde o espaço
termina, é o sentido que se vai encontrar
para depois nos pertencer: a seiva das árvores,
o quartzo que há numa pedra, dentro da casa
o quarto onde repousas. Assim é que nos unimos
às coisas. Consigo trazem a transparência,
ela é para ti, procura-a sem descanso. Agora
deixa que em cada uma das nossas pálpebras
fique a claridade. Escuta também o que pensas."


Fernando Guimarães, Sobre a Voz, Porto: Afrontamento, 2024, p. 132.

Monday, September 22, 2025

EQUINÓCIO

 



"Tocam-se as extremidades da Terra, mas não a franja, infinita, das galáxias. Conhecemos o fundo dos oceanos, mas não as marés de fel e de amargura que nos submergem.
Felizes os que têm fome de pão e sede de água, porque para alguns haverá ainda sobras e solidariedade. Mas os que têm fome e sede do inominável morrerão famintos e assedegados por todas as eternidades."

Luísa Dacosta, Na Água do Tempo - diário, Porto: Edições Asa, 2005, p. 86.

Sunday, September 21, 2025

O NOME

 




"O nome dos mortos é como o dos frutos. O ar
traz consigo as vozes há muito perdidas,
mas que vão ser recordadas ao chegarem
do passado. Quem as guarda é o tempo. Eles
continuam à espera e assim procuram o sítio
do coração, os braços estendidos para a noite
seguinte, fria, mas tão próxima. Sozinhos,
cobrem-se devagar com os panos da terra."



Fernando Guimarães, Sobre a Voz, Porto: Afrontamento, 2024, p. 12.

Saturday, September 20, 2025

EX MATERIA

 




"De madeira. As arcas. É nelas que encontramos
quase desfeitas as rendas, os panos estendidos,
as letras tecidas. Livros por onde passaram os gestos
de quem há muito os segurava, os abriu. Algumas
cartas presas com uma fita para ficar esquecido
o que nelas se dizia. Fotografias quase apagadas,
um desenho. O ar ali dentro conserva os perfumes
que eram antigos, como se alguém se aproximasse
de nós. Vemos os ramos, os frutos das coisas."



Fernando Guimarães, Sobre a Voz, Porto: Afrontamento, 2024, p. 58.

Friday, September 19, 2025

SENTIMENTO HUMANO

 



"Vós, ó Deuses, grandes Deuses
No vasto céu lá em cima,
Se vós nos désseis na terra
Mente firme, ânimo bom,
Oh! como vos deixaríamos
O vasto céu lá em cima!"



J. W. Goethe, Poemas, selec. e trad. Paulo Quintela, 4.ª ed., Coimbra: Centelha, 1986, p. 89.

Thursday, September 18, 2025

EXISTÊNCIA


 

"Se Deus existe, é porque existe no livro; se os sábios, os santos e os profetas existem, os intelectuais e os poetas, se o homem e o insecto existem, é porque encontramos os seus nomes no livro. O mundo existe porque o livro existe; pois existir é crescer com o próprio nome."


Edmond Jabès, O Livro das Questões, trad. Pedro Eiras, Porto: Flâneur, 2021, p. 33. 

Monday, September 15, 2025

VIVER

 


"Era ele o homem da aventura: e a aventura não é um romance, como se imagina. Não se aprende num livro. Não é feita nem para os românticos retardados, nem para os carcereiros. A aventura é sempre uma coisa vivida, e para a conhecer é preciso, antes de tudo, estar à altura de a viver, de a viver sem medo."


Blaise Cendrars, Rum, trad. Eduardo Valente da Fonseca, Lisboa: Ulisseia/Editores Associados, s.d., p. 50. 

Sunday, September 14, 2025

EXALTAÇÃO



"Um pastorzinho, só, mortificado,
longe está de prazer e contento,
firme em sua pastora o pensamento,
e o peito pelo amor dilacerado.

Não chora por o amor o ter chagado,
pois não lhe dói assim ver-se afligido,
embora o coração tenha ferido;
chora só por pensar que é olvidado.

Que só por pensar que é olvidado
por sua bela pastora em dor tamanha
se deixa maltratar em terra estranha,
o peito pelo amor dilacerado.

E diz o pastorzinho: Ai, desgraçado
daquele que meu amor tomou ausência,
e não deseja gozar minha presença,
o peito por seu amor dilacerado!

E ao fim de muito tempo, alcandorado
sobre uma árvore, abriu seus braços belos,
e morto assim ficou, suspenso deles,
o peito pelo amor dilacerado."



S. João da Cruz, Poesias Completas, trad. José Bento, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, p. 77.

BRANDEAR

 


"A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abraçara com a oura esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só brandeou para um lado, não havia ali espeques para a receber, é que não se pode ter tudo."


José Saramago, Memorial do Convento, 21.ª edição, Lisboa: Caminho, 1992, p. 203. 

Saturday, September 13, 2025

O SENTIDO DO TEMPO


 
"O sentido do tempo
é inverso
ao sentido do universo

e por isso

abrigai-vos
nestes ventos de palavras
que sonorizam
a iluminura da mente

não se sabe que bolsa
os guarda
e os conserva
até que o olho encontra
o papel."



Alexandra Soares Rodrigues, hic sunt leones, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2025, p. 88. 

Friday, September 12, 2025

MATHESIS

 



" - O que estás a tentar aprender?

- Paro às vezes no caminho das nascentes e interrogo os signos, o universo dos meus antepassados. 

- Investigas as palavras reencontradas. 

- Sim, as noites e as manhãs das minhas sílabas. 

- Perdes-te. 

- Há dois mil anos que caminho."


Edmond Jabès, O Livro das Questões, trad. Pedro Eiras, Porto: Flâneur, 2021, p. 16. 

Wednesday, September 10, 2025

SOLITUDO


 

"Como quem tece um xale
para o frio da alma
invento os teus braços
nos meus ombros, 
a verão da tua boca 
na minha pele. 
No meu outono, agreste, 
invento-te. 
E a tua lembrança,
que não foi nem houve, 
porque não existes
ou o teu destino é longe
e noutro lugar
atravessa a noite."


Luísa Dacosta, A Maresia e o Sargaço dos Dias, Alfragide: Edições Asa II, 2011, p. 57. 

Tuesday, September 9, 2025

IMAGINES

 



"imago
ou
a perpetuação do rosto

a cera
na 
solidez de um morto

a face 
no 
perpétuo sono

a tela do tempo
parada

imago 
ouro espelhado

na face 
para sempre mi(r)ada"



Alexandra Soares Rodrigues, hic sunt leones, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2025, p. 104. 

Monday, September 8, 2025

VAGAR




"na diagonal da casa a sombra transita
nas lajes do chão dos quintais e dos muros
dos tanques que já não vedam bem
a luz presente. a atmosfera paira abobadada
na extensão dos lameiros e sobre a casa.

há um bulício de fadiga que o animal come 
para não incomodar o sol, o trabalho da fotossíntese
nas árvores mais altas das ruínas dos soalhos,
as desquadrias das portas e janelas,
a demolição contínua das células, enquanto
o cavalo pasta a paisagem com vagar inquebrantável."



Óscar Possacos, curva, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 63. 

Sunday, September 7, 2025

COLHEITA

 




"na ancestralidade

o culto dos mortos
é
o culto das sementeiras

semear os mortos
para colher os vivos

o amanho da terr
grossa e lenta na sua acção
de putrefacção
porosa e húmida na sua acção
de frutificação

ceifar o cereal
aparar os cabelos
podar os pomares
limpar a pele
dos resquícios de células
alastradas no córtex
das árvores
e nos galhos secos
pendentes em penumbras ao vento
em cantilenas invernosas
arar a terra
massajar a respiração
na profundeza dos bolores
enredados nas flores
dos brancos alvéolos"


Alexandra Soares Rodrigues, hic sunt leones, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2025, pp. 15-16.

Saturday, September 6, 2025

ADMONITIO

 



"cada língua
nasce de um ovo
insolúvel e férreo

porém
estremecente a cada
entrechocar de conceitos
no núcleo da mente"



Alexandra Soares Rodrigues, hic sunt leones, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2025, p. 9.

Friday, September 5, 2025

ENTRE OS HOMENS E A HUMANIDADE



 
"Entre os homens e as humanidades, 
de mim mesma alheada cambaleio
a bordo de conceitos que não colam
e de esmolas que já não me alimentam.
À deriva, faço vénias, faço figas
- longo jogo da macaca nos passeios,
breve jogo da glória nas calçadas
ou da mão que ainda bate morta
mas não toca àquela porta
por ter medo da batota.

Se mulher entre os homens, quase vírus, 
se homem entre as fêmeas, mutilada
se menina entre adultos, quase bicho
se adulta entre crianças, acossada.

Por isso me lançam à sarjeta, 
me atiram às urtigas e eu me coço, 
recordando a doçura de hortelã
que sarava quando ardia este meu corpo."


Regina Guimarães, também dita Corbe, Lady Boom - as rainhas,  Hélastre, s.d., p. 3. 

Thursday, September 4, 2025

ESCOTE

 



" - E os pobres? - perguntou já ele ia a transpor os umbrais.
 - Os pobres, Reverendíssimo Senhor, vão para ao Céu.
- Percebo, continuarão a ter fome e a morrer de frio.
- É o escote que pagam para entrar no reino da Glória.
- Sim, mas pode ser que lho não aceitem. Não é de vontade..."


Aquilino Ribeiro, Dom Frei Bertolameu: legenda, Lisboa: Livraria Bertrand, 1959, p. 118. 

Wednesday, September 3, 2025

A CASA


 

"Protege-nos e guarda o que fomos.
O que nunca ninguém encontrará:
tectos onde deixámos olhares de dor, 
vozes que ficaram caladas, nas paredes.
A casa organiza o futuro esquecimento.
De súbito, uma corrente de ar e uma porta
fechando-se com uma pancada seca, como um aviso.
Somos cada um a sua casa, a que para si ergueu.
E que no fim fica vazia."



Joan Margarit, Animal de Bosque, trad. Àlex Tarradelas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta/Flâneur, 2024, p. 91. 

Tuesday, September 2, 2025

DÉCIMO SÉTIMO ANO


 

"Sobre a morte, penso que o mais exacto
é o que escreve Yeats: criámo-la nós.
Nossa é toda a espécie de gadanhas e esqueletos, 
de ressurreição e paraísos. 
Vou conhecendo cada vez melhor
esse bosque interior aonde vamos dar sozinhos
com convicção:
só compreender enobrece.
Porque a poesia é, para quem escreve, 
aprender a escrever-se. 
Para quem lê é aprender a ler-se."



Joan Margarit, Animal de Bosque, trad. Àlex Tarradelas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta/Flâneur, 2024, p. 31. 

Monday, September 1, 2025

VIVER ERA RESPIRAR

 



"Viver era respirar sob o cachecol
de manhã cedo, enquanto ligavam os aquecedores.
Nós, crianças, tivemos a liberdade
de ser tudo tão difícil para os mais velhos. 
Cresci no espaço mínimo
que fica entre a ordem e a desordem:
há sempre um buraco onde os outros
se esquecerão de ti. Só tens de saber
que o preço a pagar é a solidão."


Joan Margarit, Animal de Bosque, trad. Àlex Tarradelas, Rita Custódio e Miguel Filipe Mochila, Lisboa: Língua Morta/Flâneur, 2024, p. 41.