Saturday, August 31, 2013

TURBILHÃO


"Com tudo isso, meu caro poeta, o momento presente é triste, é amargo. Sentimo-nos tão deslocados! Parece-nos este mundo tão pouco o nosso mundo! Quase que temos a consciência de uma gradual fossilização, da transformação lenta da nossa carne e do nosso sangue numa substância estranha, morta, mineral, sentimos que alguma coisa nos soterra e a pouco e pouco nos reduz ao estado de seres paleontológicos, representantes dum período já obsoleto nas sucessivas estratificações históricas da humanidade."


Antero de Quental, "Carta a António Molarinho de 26 de agosto de 1889", in Cartas II, org. Ana Maria Almeida Martins, Lisboa: Universidade dos Açores/Editorial Comunicação, 1989, p. 953. 

Friday, August 30, 2013

EM MEMÓRIA DE SEAMUS HEANEY


"The end of art is peace
Could be the motto of this frail device
That I have pinned up on our deal dresser -
Like a drawn snare
Slipped lately by the spirit of the corn
Yet burnished by its passage, and still warm."

Seamus Heaney, Antologia Poética, selec. e trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1998, p. 71. 

Thursday, August 29, 2013

RESERVA


"A respeito da comida, observa o que puderes, mas não comas nada do que é sacrificado aos ídolos, pois esse culto é reservado a deuses mortos."

Didaqué, s. trad., Lisboa: Paulus, 2013, VI-3, p. 23.  

Wednesday, August 28, 2013

PAULO



"Como Paulo, todo o homem é um ser desorbitado. As resistências que ele encontra, desviam-no da direcção inicial ou natural; e o desgraçado caminha sempre aos encontrões da sorte, não sendo ele, na realidade, mas esse espectro que o impele, através da noite. O homem não é ele próprio: é apenas a sombra vã do seu destino. Ser, só Deus."

Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 134.

FALHA




"Há espíritos que não alcançam nenhuma praia; nem esta, em que pousamos os pés, nem a outra, em que fantasticamente divigamos. A igual distância das duas, flutuam na imensidade indefinida. São as ondas do mar alto."

Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 169.

Sunday, August 25, 2013

DESÍGNIOS




" - Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que o homem dispõe para se orientar no mundo. Aquilo que eu não compreendi foi a relação entre os signos. Cheguei até Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os delitos e no entanto era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor de todos os crimes, e descobrimos que cada crime tinha no fundo um autor diferente, ou então nenhum. Cheguei a Jorge perseguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio inicial, e depois tinha-se iniciado uma cadeia de causas e causas concomitantes, e de causas em contradição entre si, que tinham procedido por conta própria, criando relações que não dependiam de desígnio algum. Onde está toda a minha sabedoria? Comportei-me como um obstinado, perseguindo um simulacro de ordem, quando bem devia saber que não há uma ordem no universo."

Umberto Eco, O Nome da Rosa, trad. Maria Celeste Pinto, 16ª ed., Lisboa: Difel, 1990, p. 486.

MENEAR




"Venho depor nele o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida.
Quero pensar só comigo; quero falar a sós com o meu coração.
Os homens não me deixam; amparai-me vós, solidões amenas, abrigai-me, ó soledade, o tesouro das tuas selvas; abre-me o santuário das tuas grutas.
Eu perguntei aos troncos pelas idades que viram correr, e os troncos me responderão, meneando as suas ramas: «Elas passaram!»"

Almeida Garrett, Flores sem Fruto, 5ª ed., Lisboa: Editorial Comunicação, 1988, pp. 58-59.  

Friday, August 23, 2013

O RISO





" - Manduca, jam coctum est - sussurrou Guilherme. 
- O quê? - perguntou Jorge, que pensava que ele aludia a algum alimento que lhe era apresentado. 
- São as palavras que, segundo Ambrósio, foram pronunciadas por São Lourenço na grelha, quando convidou os carrascos a voltá-lo do outro lado, como também recorda Prudêncio no Peristephanon - disse Guilherme com ar de santo. - São Lourenço sabia portanto rir e fazer coisas ridículas embora fosse para humilhar os seus próprios inimigos. 
- O que demonstra que o riso é coisa bastante próxima da morte e da corrupção do corpo - rebateu Jorge, com um grunhido, e devo admitir que se comportou como bom lógico."

Umberto Eco, O Nome da Rosa, trad. Maria Celeste Pinto, Porto: col. Público, 2002, p. 92. 

EXEMPLA


"- As imagens marginais induzem muitas vezes a sorrir, mas com fins de edificação - respondeu. - Como os sermões para tocar a imaginação das piedosas multidões é preciso inserir exempla, não raro facetos, assim também o discurso das imagens deve permitir estas nugae. Para cada virtude e para cada pecado há um exemplo tirado dos bestiários e os animais fazem-se figura do mundo humano."

Umberto Eco, O Nome da Rosa, trad. Maria Celeste Pinto, Porto: col. Público, 2002, p. 78. 

Monday, August 19, 2013

VIDA BURRA

 
"Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale de Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus ?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é tudo contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada - erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e em bichos, e nos doidos - não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo."

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 37ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 48.

GUARDAR

 
 
"Ora, eu que sempre fui entusiasta admirador dum quadro em que Hipócrates rejeita os tesouros de Artaxerxes, com magnífico gesto de repulsão, remedei exactamente o velho de Cós na atitude escultural.
- Padre ! Guarde os seus tesouros! - clamei com ênfase. - Os génios, quando se abrem são gratuitos, como as nuvens que chovem a abundância do céu, e também fazem a lama na terra."
 

Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, vol. II, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 73.

Friday, August 16, 2013

SOMOS/FOMOS



"Somos no futuro, imaginando; e recordando, somos no passado. O presente pertence aos bichos da terra e ao nosso corpo. É o instante em que ele nos dói, o instante em que ele pousa os pés nas brasas e se houve um gemido. Ser é ser em esperança, em luz da aurora, que a vida brota do futuro e precipita-se, morta, no passado."
 


Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 29.

FECUNDO

 


"O pecado é mais fecundo que a virtude. A virtude é ponto de chegada e não caminho a percorrer; e chegar é parar. O valor não está na criatura mas no seu trabalho. O que há de belo numa estátua não é ela própria: é o esforço do artista que, em seus relevos, transparece, como um palpitar de vida no mármore, grito aprisionado no silêncio."

Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 25.

TOQUE



"Nessa íntima auréola é que vivemos e tocamos nas cousas exteriores. Interiormente é que tocamos o exterior. É com os dedos da alma que pegamos numa pedra: e a pedra, a si mesma, se reconhece, em nossas mãos."
 


 Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 19.

VITA




"A vida é desejo sempre insatisfeito, um desejo maior que o desejado. A fome idealiza o fruto, para o tornar inatingível. A nossa vida é o nosso fantasma, à nossa frente, e nós, atrás dele, pobre animal atrás do dono."
 


Teixeira de Pascoaes, S. Paulo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1984, p. 24.

Tuesday, August 13, 2013

DEMASIADO HUMANO

 


"Para ela, em tais ocasiões, não interessava se ele falava a sério ou não, pois na verdade não sabia o que estava a dizer. Por isso atirou em ar de troça: «Qual é a moeda de troca nesse teu mundo?»
Ele não hesitou. «A lágrima.»
«Não é justo», objectou ela. «Algumas pessoas têm de trabalhar muito por uma lágrima. Outras têm-nas só de pensar nelas.»"

 
Paul Bowles, O Céu que nos Protege [The Sheltering Sky], trad. José Agostinho Baptista, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 167.

PASSEIO

 


"Ficou a contemplar melancolicamente o vale, a língua à procura das sementes de figo entre os dentes, com as pequenas e tenazes moscas sempre a agarrarem-se à cara. Ocorreu-lhe que um passeio pelo campo era uma espécie de resumo da própria passagem pela vida. Nunca se tem tempo para saborear os pormenores; diz-se: outro dia, mas sempre com a convicção oculta de que cada dia é único e final, de que nunca haverá regresso, de que nunca haverá outra vez."
 

Paul Bowles, O Céu que nos Protege [The Sheltering Sky], trad. José Agostinho Baptista, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 133.

PAR




"«Por favor não fales disso agora.» Havia agonia na sua súplica. «Tudo o que dizes aqui em cima assusta-me. Está a escurecer, o vento sopra, não consigo suportar isso.
Port sentou-se, rodeou-lhe o pescoço com os braços, beijou-a, afastou-se um pouco e olhou-a, voltou a beijá-la, afastou-se de novo, repetindo várias vezes a sequência- Havia lágrimas nas faces de Kit. Ela sorriu desamparadamente quando ele as secou com os dedos indicadores.
«Sabes que mais?», perguntou Port com grande fervor. «Acho que ambos temos medo da mesma coisa. E pela mesma razão. Nunca fizemos por entrar verdadeiramente na vida. Estamos agarrados ao exterior por tudo aquilo que possuímos, convencidos de que vamos cair à próxima pancada. Não é verdade?»"


Paul Bowles, O Céu que nos Protege [The Sheltering Sky], trad. José Agostinho Baptista, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 101-102.

THE SHELTERING SKY



"«Sabes», disse Port, numa voz que soava irreal, como soam as vozes depois de uma longa pausa de profundo silêncio, «o céu aqui é muito estranho. Tenho às vezes a sensação de que é uma coisa sólida lá em cima, protegendo-nos do que está para além.»
Kit sentiu um ligeiro arrepio quando disse: «Do que está para além?»
«Sim.»
«Mas o que é que está para além?», perguntou ela em voz muito fraca.
«Nada, acho eu. Apenas escuridão. A noite absoluta.»"
 

Paul Bowles, O Céu que nos Protege [The Sheltering Sky], trad. José Agostinho Baptista, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 101.

Friday, August 9, 2013

HOMEM




" - Nesse caso, não queria estar no teu lugar nem por um reino! - declarou Catherine, com grande ênfase (e parecia sincera). - Nelly, ajuda-me a fazer-lhe ver que isto é uma loucura. Diz-lhe que espécie de homem é o Heathcliff: um enjeitado, sem educação, sem cultura; uma charneca árida, de tojo e pedras!"

 
Emily Brontë, A Colina dos Vendavais, trad. Ana Maria Chaves, Lisboa: RBA Editores, 1994, p. 115.  


ALTO




 
" Ela riu-se e agarrou-me quando fiz menção de me levantar da cadeira.
- Não é nada disso - exclamou. - Só ia dizer que o Céu não parecia ser a minha casa e eu desatei a chorar para voltar para a terra e os anjos ficaram tão zangados que me explusaram e me lançaram no meio do urzal, e eu fui cair mesmo no topo do Alto dos Vendavais, e depois acordei a chorar de alegria. Este sonho explica o meu segredo tão bem como o outro: sou tão feita para ir para o Céu como para casar com Edgar Linton; e esse monstro que está lá dentro não tivesse feito o Heathcliff descer tão baixo, eu nem teria pensado nisto: seria degradante para mim casar-me agora com Heathcliff; por isso, ele nunca saberá como eu o amo; e não é por ele ser bonito, Nelly, mas por ser mais parecido comigo do que eu própria. Sea qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais, e a do Linton é tão diferente delas como um raio de lua de um relâmpago, ou a geada do fogo."
 

Emily Brontë, A Colina dos Vendavais, trad. Ana Maria Chaves, Lisboa: RBA Editores, 1994, p.  94.

HAWORTH


" - Meu Deus, mas que actividade mais ociosa.
- Pelo contrário, uma actividade deveras activa e cansativa. Neste preciso momento estou a exercê-la e peço-lhe, por isso, que continue. Já reparei que as pessoas desta região exercem sobre as pessoas da cidade a mesma atracção que a aranha de uma prisão exerce, em comparação com a aranha de uma vivenda, sobre os seus ocupantes; e, no entanto, essa profunda atracção não se deve exclusivamente à situação de observadores. As gentes desta terra vivem de facto de uma forma mais autêntica, mais ensimesmada, e menos virada para as mudanças superficiais, para as coisas externas. Sinto-me capaz de acreditar que aqui seria possível acontecer um amor eterno. E logo eu, que não acreditava que o amor pudesse durar mais de um ano."

Emily Brontë, A Colina dos Vendavais, trad. Ana Maria Chaves, Lisboa: RBA Editores, 1994, p. 75.