Saturday, November 30, 2013

ANOITECER



"No dia seguinte esperava-os uma longa viagem. A lua incidia directamente nos olhos fechados de Heféstion. Suavemente, Alexandre puxou a cortina até meio, com medo que os poderes da noite lhe fizessem mal."


Mary Renault, Fogo do Céu, trad. Tomás Vaz da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 310.

Friday, November 29, 2013

LAGO



"Junto às águas claras do lago Lychnidis, com o lodo do combate já assente, enguias e solhas limpavam os cadáveres que flutuavam à deriva. Os lírios esmagados adormeceram para voltar a florescer no ano seguinte; as acácias brancas caíram como neve com as primeiras brisas e esconderam o sangue. As viúvas choravam os seus mortos, os aleijados retomavam as suas antigas actividades, os órfãos a quem nunca nada faltara conheceram a fome. O povo inclinava-se perante o destino, como perante uma enfermidade do gado ou um granizo fora do tempo sacudindo as oliveiras. Todos, incluindo viúvas e órfãos, foram levar as suas oferendas de agradecimento aos santuários; os ilírios, famosos piratas e mercadores de escravos, podiam ter ganho. Os deuses, compadecidos com as suas ofertas, não lhes revelaram o conhecimento de que apenas haviam sido um meio e não um fim. Na dor, mais que na alegria, o homem aspira a saber que o universo gira em torno de si."

Mary Renault, Fogo do Céu, trad. Tomás Vaz da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, pp. 301-302. 

Thursday, November 28, 2013

TEMPO SEM DEUSES



"Poesia de inverno: poesia do tempo sem deuses
Escolha
Cuidadosa entre restos

Poesia das palavras envergonhadas
Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas
Quem ousaria dizer:

Seda nácar rosa

Árvore abstracta e desfolhada
No inverno da nossa descrença."


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 85. 

Wednesday, November 27, 2013

ALITERATTO






"Assim o Minotauro longo tempo latente
De repente salta sobre a nossa vida
Com veemência vital de monstro insaciado"


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, Lisboa: Caminho, 2004, p. 51. 

Tuesday, November 26, 2013

PERDER



"Eu me perdi na sordidez de um mundo
Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo
Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 19. 

SIGNOS



"Meu signo é o da morte porém trago
Uma balança interior uma aliança
Da solidão com as coisas exteriores"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Lisboa: Caminho, 2004, p. 40. 

Sunday, November 24, 2013

ASSIM AS MEMÓRIAS



"Habitamos um corpo em perigo.
Com um pouco de sorte
estas folhas fatigadas pela chuva irão permanecer
(dezembro vai começar
os trabalhos do inverno e
o sol menos quente: assim
as memórias.)
Deixemos em paz os jardins a mão no bolso esquerdo
não tarda a esquecer. 
Dormir é deixar a saliva viajar pelos teus livros
naturalmente
saberei julgar à maneira de um canteiro
negligente
trabalhando sobre a pedra. 
Que procuras? (a missa acabou
dezembro vai começar e
o sol menos quente.
Podemos partir para a guerra?) podemos partir?"


João Miguel Fernandes Jorge, "Vinte e Nove Poemas", in Obra Poética, vol. 3, 2ª ed.,  Lisboa: Presença, 1988, p. 58. 

Saturday, November 23, 2013

BOMBARDA



"A civilização nasceu, como um sino, no interior do invólucro de matéria mais grosseira, mais vulgar: falsidade, prepotência, expansão ilimitada de todos os eus individuais, de todos os povos, foram esse invólucro. É tempo, agora, de o retirar? O metal fundido está solidificado, as tendências boas, proveitosas, os hábitos da alma nobre tornaram-se tão seguros e gerais que já não seja preciso mais apoio na metafísica e nos erros das religiões, nem rudezas e violências como o mais poderoso aglutinante entre homem e homem, povo e povo? Para responder a esta pergunta, já nenhum aceno de um deus nos pode ser útil: aí, é a nossa própria inteligência que tem de decidir."


Friedrich Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1997, fr. 245, pp. 225- 226. 

Friday, November 22, 2013

EXISTIR



"Só desejo o comêço do amor
em que o tempo não existe. 
O tempo fica do lado de fora. 
O comêço do amor, por dentro, permanece eterno, 
tal como o último momento antes da morte."


António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 183. 

Thursday, November 21, 2013

EXALTANTE



"O fatum é um pensamento exaltante, para quem compreende que faz parte dele."


Friedrich Nietzsche, A Vontade de Poder, vol. I, trad. Isabel Henninger Ferreira, Porto: Rés Editora, 2004, p. 148. 

Wednesday, November 20, 2013

PRIMORDIAL



"Os portugueses descobriram o mundo moderno. As outras nações moldaram-no. Tiveram a virtude primordial de serem secundárias. 

Quando um admirador de Marconi fala de ondas hertzianas, parece falar de algo criado por Marconi, ignorando que existe um homem chamado Hertz. É isto a civilização."


Fernando Pessoa, Heróstrato e a Busca da Imortalidade, ed. Richard Zenith, trad. Manuela Rocha, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 121. 

Monday, November 18, 2013

O REGRESSO



"Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar, 
o passado no passado, o presente no presente, 
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho. 

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama. 
Para trás ficam portos, ilhas, lembranças, 
cidades, estações do ano. 
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca."


Manuel António Pina, Todas as Palavras - poesia reunida, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 351. 

Sunday, November 17, 2013

TEMER



"O animal teme a morte porque vive, 
O homem também, e porque a desconhece.
Só a mim me é dado com horror
Temê-la por lhe conhecer a inteira
Extensão e mistério, por medir
O infinito seu de escuridão."


Fernando Pessoa, Fausto Tragédia Subjectiva, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 168. 

Saturday, November 16, 2013

PASSA



"De tudo o que é novo nasce um novo prazer, 
mas eu sei que não é boa a jovem morte.

Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar, 
nem é como o vinho, nem é como o sumo das uvas."


Al-Houtay'a, in Herberto Hélder, O Bebedor Nocturno, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 104. 

Friday, November 15, 2013

TREPAR



"Desejar e gozar levam-nos à dor. É desagradável o rigor da mulher amada, mas a contínua amabilidade e doçura ainda o são, para dizer a verdade, em maior grau, pois o descontentamento e a cólera nascem da estima em que temos a coisa desejada, aguçam o amor e vivificam-no. A saciedade engendra o fastio, que é uma paixão embotada, entorpecida, cansada e adormecida."


Michel de Montaigne, Ensaios (seleção), trad. R. Correia, Lisboa: Amigos do Livro, s.d., p. 288. 

Thursday, November 14, 2013

MORTAIS



"JULIAN - Look at this black water. Do you think if I vanished from the earth without trace, and my body was never found, and no one knew what had happened to me - do you think the legend would grow that Hermes had descended and carried me away, and that I had been taken up into the company of the gods?

MAXIMUS - The time is at hand when mortals will not need to die to live as gods upon the earth."



Ibsen, Emperor and Galilean, trad. Michael Meyer, London: Methuen, 1986, parte 2, at. III, p. 285.

Wednesday, November 13, 2013

CAMINHO



"Dentro do medo e das suspeitas, 
com a mente agitada e os olhos aterrados,
fundimos e planeamos o que fazer
para evitar o perigo
certo que desta forma horrenda nos ameaça. 
No entanto equivocamo-nos, não está esse no caminho;
falsas eram as mensagens 
(ou não as ouvimos, ou não as sentimos bem). 
Outra catástrofe, que não imaginávamos, 
brusca, torrencial cai sobre nós, 
e desprevenidos - como teríamos tempo - arrebata-nos."


Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio D' Água, 1994, p. 27. 

Tuesday, November 12, 2013

TUFOS DE ERVA



"São tufos de erva. Poderia ter escolhido outro motivo. Mas o que me apetece pintar eram tufos de erva. O que é que um tufo de erva tem de relevante? Talvez nada. Ou talvez tudo. 

Poderia passar a eternidade a pintar tufos de erva. Sem que o motivo se esgotasse. Ou até que eu me transformasse num tufo de erva."


Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu [poesia reunida], Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 301. 

Monday, November 11, 2013

MAIS DOCE QUE A UVA MADURA



"Ó Galateia, mais alva que a pétala do níveo ligustro, 
mais florida do que prados, mais esbelta que o alto amieiro, 
mais brilhante que vidro, mais brincalhona que o cordeirinho, 
mais macia que conchas polidas constantemente pelas ondas, 
mais agradável que no Inverno o sol, que a sombra no Verão, 
mais majestosa que a palmeira, mais vistosa que alto plátano,
mais reluzente que o gelo, mais doce que a uva madura, 
mais suave que as penas do cisne, e também que o requeijão, 
e, se não fugires, mais formosa que um jardim bem regado.
E também, Galateia, mais casmurra que bezerro não domado, 
mais dura que um carvalho velho, mais falsa do que as ondas, 
mais inconstante que ramos de salgueiro e vinha de uva branca, 
mais inamovível que os rochedos, mais impetuosa que um rio, 
mais soberba que o aplaudido pavão, mais violenta que o fogo, 
mais espinhosa que silva, mais brutal que ursa que deu à luz,
mais surda que o mar, mais desapiedada que serpente pisada, 
e, coisa acima de tudo o resto que eu gostaria de te poder tirar, 
mais veloz quando foges, não tanto como o cervo acossado
pelo sonoro ladrar, mas antes do que os ventos e a veloz brisa."


Ovídio, Metamorfoses, trad. Paulo Farmhouse Alberto, 2ª ed., Lisboa: Cotovia,2010 llivro XIII, vv.789-807, pp. 332-333. 

Sunday, November 10, 2013

VIDA



"A única saída possível é uma saída para a Vida, para a Alegria, o Dom, a liberdade da inventividade, o fluxo, o acontecimento, a vontade de poder criar (e continuar, e continuar)."


Carlos Couto Sequeira Costa, Vedutismo, Coimbra : Pé de Página Editora, 2005, p. 64. 

Saturday, November 9, 2013

PESSANHIANA


"Eu voltei aos meus passeios nocturnos à beira do rio. A corrente tinha trazido para a margem uma série de conchas, corais, espinhas e escamas de peixe. Surpreendeu-me encontrar tantos despojos pertencentes à fauna marítima. A margem estava constelada de signos místicos. Eu estava convencido de que os homens de olhos azuis teriam podido entender esta linguagem simbólica. Havia ali segredos, sem dúvida: as asas de insectos, por vezes tão belas, dos morcegos e das baratas apresentavam manchas que podiam constituir um alfabeto perdido. Mas faltava-me a chave."


Alfred Kubin, O Império do Sonho, trad. Manuela Torres, Lisboa: Vega, 1986, p. 207. 

Thursday, November 7, 2013

NOCTÂMBULO



"Um dia via o mundo como um magnífico tapete de cores, reduzindo-se os contrastes mais surpreendentes a uma harmonia total; outras vezes percorria com o olhar uma vasta filigrana de formas. Na escuridão, soava à minha volta uma sinfonia de órgão, composta de sons nos quais os ruídos patéticos e suaves da natureza formavam acordes distintos. Sim, como um sonâmbulo, eu conseguia ter sensações inteiramente novas."


Alfred Kubin, O Império do Sonho, trad. Manuela Torres, Lisboa; Vega, 1986, p. 154. 

Wednesday, November 6, 2013

SOBRENATURAL


"- O que quer então você que sejam esses intrusos? - exclamou o juiz Koltz. 
- Seres sobrenaturais - respondeu  o magister Hermod com uma voz que se impunha. - Por que não haviam de ser espíritos, espectros, fantasmas, talvez mesmo algumas dessas perigosas lamies que se apresentam sob a forma de lindas mulheres? 
Durante esta enumeração, todos os olhares se haviam dirigido para a porta, para as janelas, para a chaminé da grande sala do Rei Matias. E, na verdade, cada qual perguntava a si próprio se não ia aparecer um ou outro desses fantasmas sucessivamente evocados pelo mestre-escola.
- Contudo, meus bons amigos - arriscou-se Jonas a dizer -, se esses seres são génios, não compreendo por que razão teriam acendido lume, visto que não têm nada para cozinhar."


Júlio Verne, O Castelo dos Cárpatos, trad. Emílio Campos Lima, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 40. 

Tuesday, November 5, 2013

PORTA


"Não esqueçamos que nunca olhamos os olhos apenas por serem olhos; cada um de nós ignora qual a cor da íris de quase todos os seus amigos. Os olhos são o olhar: são os olhos para o oculista e para o pintor. Nada existe de menos desinteressado que a nossa visão."


André Malraux, As Vozes do Silêncio, trad. José Júlio Andrade dos Santos, 2º vol., Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 16. 

Monday, November 4, 2013

ARCANO



"Pois está escrito no arcano dos sonhos que as existências se incorporam e se renovam, modificam-se e continuam contudo imutáveis, como a alma de um músico numa fuga. E, assim, a memória é desvanecida, rapidamente, no sono. 
Parece que o repouso perfeito nunca irá existir. Mesmo no paraíso, a serpente levanta a cabeça entre os ramos oprimidos da Árvore do Conhecimento. O silêncio da noite sem sonhos é quebrado pelo bramido da avalanche, pelo silvo dos súbitos dilúvios; o tinido do sino da locomotiva marca o seu movimento majestoso através de uma cidade americana adormecida; o fragor de remos distantes no mar... Seja o que for, está a destruir o encanto do paraíso. A cobertura verdejante que nos envolvia, estrelada por diamantes de luz, parecia tremeluzir no incessante movimento dos remos, e o som do sino descontente aparentava não mais ter fim..."


Bram Stoker, A Joia das Sete Estrelas, trad. Alexandra Tavares, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, pp. 9-10. 

Friday, November 1, 2013

O QUE SE FOI SE FOI



"O que se foi se foi
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura. 

Se o que se foi regressa, 
traz um erro fatal: 
falta-lhe simplesmente
ser real. 

Portanto, o que se foi, 
se volta, é feito morte. 

Então por que me faz 
o coração bater tão forte?"


Ferreira Gullar, Em Alguma Parte Alguma, Lisboa: Ulisseia/ Babel, 2010, p. 43.