Tuesday, June 30, 2015

OS DESVARIOS



"Mas depressa o desejo de falar se torna mais forte e dá rédea solta à língua; fala com calor, apaixonadamente. O seu discurso é desordenado, febril, como em delírio; nem sempre se compreende o que diz; mas mesmo assim deixa perceber, pelas palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade. Quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. É difícil traduzir para o papel os seus desvarios. Fala da maldade humana, da violência que espezinha a justiça, da bela vida que com o andar dos tempos reinará sobre a Terra, das grades e das janelas, que a cada instante lhe recordam a obstinação e a crueldade dos opressores. Tudo é um caótico amontoado de coisas velhas mas não caducas."

Anton Tchekov, A Enfermaria Nº 6, trad. Maria Luísa Anahory, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 10. 

Monday, June 29, 2015

COMO AS AVES LENTAS PASSAM



"Como as aves lentas passam - 
Em frente olha
O guia e frescos lhe sopram 
Contra o peito os eventos quando
Em volta dele tudo cala, alto
No ar, mas abaixo dele jaz brilhante
A riqueza das terras, e com ele estão
Por primeira vez os filhos perscrutando triunfo. 
Mas ele os modera
Com o bater das asas."


Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 449. 

Sunday, June 28, 2015

O LEDO VIVER


"Não pode triste viver
Quem esperanças deixar
Nem há no mundo prazer
Igual a desesperar. 

A esperança comprida
Bem vedes quão pouco dura, 
E dura sempre a tristura
Antes e depois da vida. 

Quem esperança tomar
Sempre tristeza há-de ter:
Quem quiser ledo viver
Saiba-se desesperar."


D. João de Meneses (m. 1514), in Poesia Portuguesa do século XII a 1915, org. Cabral do Nascimento, Lisboa: Verbo, 1972, p. 27. 

Saturday, June 27, 2015

SEM PERGUNTAS



"Abandonados
os espaços em que chegam as respostas, quando
as paredes desabam e desfiladeiros, das árvores
voam as sombras, quando se abandona
a erva debaixo dos pés,
solas brancas pisam o vento - 

a sarça chameja, 
ouço-lhe a voz, 
onde não havia perguntas águas
passam, mas eu não tenho sede."


Johannes Bobrowski, Como um Respirar - antologia poética, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1990, p. 93. 

Friday, June 26, 2015

PARA O ALTO



"Uma agulha de silêncio cruza de lado a lado 
o pensamento, despenha-se no fulcro da atenção, 
sangrando. 

Mergulho o meu amor no exemplo
do girassol - tu és através da sala inebriada, 
através dos dias pausados. 
a razão do meu 
tropismo. 

As noites tremem nas pálpebras, nas pálpebras.
E o sangue é uma coisa que se inventa, 
demoradamente, a custo de

silêncios."


Vasco Gato, Imo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 103. 

Thursday, June 25, 2015

REFLETIR



"A História torna-nos livres ao elevar-nos além do condicionalismo do ponto de vista significativo, nascido da nossa própria vida; mas ao mesmo tempo, o seu significado torna-se mais inseguro. A reflexão sobre a vida torna-nos profundos; a reflexão sobre a História, livres."

Dilthey, Origens da Hermenêutica, trad. Alberto Reis, in Textos de Hermenêutica, Porto: Rés, s.d., p. 175. 

Tuesday, June 23, 2015

AGUARDAR



"Desaparecem as claras relações da autobiografia; abandonamos o curso da vida e mergulhamos no oceano infinito."

Dilthey, Origens da Hermenêutica, trad. Alberto Reis, in Textos de Hermenêutica, Porto: Rés, s.d., p. 174. 

Sunday, June 21, 2015

ENIGMÁTICO


"Quem uma vez esteve diante desse enigma indecifrável da nossa própria natureza fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após."

Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, S. Paulo: Penguin, 2011, pp. 156-157. 

Friday, June 19, 2015

CHEGADA



"O CORO (Antístrofe I) - Conseguiram, movidos pelo rancor, chegar a estas margens, nos seus barcos de sólida quilha, com o seu numeroso exército negro. 

DÁNAOS - Numerosas são também as tropas que eles aqui encontrarão, com braços endurecidos pelo sol a pino. 

O CORIFEU - Suplico que não me deixes só, meu pai. Uma mulher sozinha nada vale. Marte não a habita."


Ésquilo, As Suplicantes, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 49. 

Wednesday, June 17, 2015

FACES


"DÁNAOS - (...) E agora, ao lado das numerosas lições de modéstia gravadas na vossa memória pelo vosso pai, inscrevei ainda esta máxima: que só o tempo revela o que vale um grupo de desconhecidos. Todas as línguas estão sempre prontas a dizer mal dos estrangeiros e facilmente se inclinam a sujá-las com insinuações. Por isso peço que não me cubram de vergonha com essa beleza que sobre vós chama o olhar dos homens. Não é fácil olhar o tenro fruto maduro: todos querem meter-lhe o dente, homens e animais, bem o sabeis, os monstros que voam e os monstros que andam sobre o solo."

Ésquilo, As Suplicantes, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 59. 

Tuesday, June 16, 2015

GUARDAR




"O CORO - Não conseguireis vergar a nossa inflexível decisão. 

AS AIAS - E vós não conheceis o futuro. 

O CORO (Antístrofe 3.) - Pois se ninguém pode ler no espírito de Zeus, abismo insondável!

AS AIAS - Curai de medir melhor os vossos votos!

O CORO - Que medida quereis que observemos?

AS AIAS - Guardai-vos de escrutar com excessiva curiosidade os segredos dos deuses."


Ésquilo, As Suplicantes, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., pp. 61-62. 

Monday, June 15, 2015

CENTRO



"Nunca sei o que as pessoas pretendem ao queixar-se da solidão. 
Estar só é um dos maiores prazeres da vida, é pensar os seus
próprios pensamentos, 
é fazer as suas pequenas tarefas, ver o mundo além
e sentir-se completo numa enraizada ligação
com o centro de todas as coisas."


D. H. Lawrence, Os Animais Evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 209. 

Sunday, June 14, 2015

TEMPOS DIFÍCEIS



"- A razão é essa! - explodiu Luísa, sem se poder dominar. 
- Não me digas que é essa a razão, porque tal não é possível. Vão imediatamente fazer qualquer coisa lógica!"


Charles Dickens, Tempos Difíceis, Trad. Domingos Arouca, 2ª ed., Lisboa: Romano Torres, 1957, p. 23. 

Saturday, June 13, 2015

OS FACTOS



" - Os Factos devem guiá-los e dirigi-los em tudo - expôs mais uma vez o cavalheiro - Esperamos, dentro em breve, ter um Conselho de Facto, composto por comissários de Facto, que obriguem o povo a viver apenas à base das realidades. A palavra Fantasia tem de ser banida por completo. Nenhum objecto de uso ou de adorno deve representar uma contradição da realidade. Na vida real não andamos sobre flores, portanto, também não o devemos fazer sobre tapetes com flores. Na nossa loiça não vêm poisar pássaros exóticos e borboletas; não se deve pois permitir que se utilize loiça com desenhos de pássaros exóticos e borboletas. Para tudo, devem utilizar-se unicamente combinações e modificações de cores primárias, de figuras matemáticas susceptíveis de serem provadas e demonstradas. É isto a nova descoberta. É isto a realidade. É isto o gosto."


Charles Dickens, Tempos Difíceis, Trad. Domingos Arouca, 2ª ed., Lisboa: Romano Torres, 1957, p. 14. 


Friday, June 12, 2015

SORRISO



"O sorriso da tragédia é ainda dirigido por uma espécie de humor em relação aos deuses. O herói trágico escarnece delicadamente o seu destino. Cumpre-o tão gentilmente que o objecto desta vez não é o homem, mas os deuses."


Jean Genet, Diário de um ladrão, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1973, p. 198. 

Thursday, June 11, 2015

RIVAL


"Criar não é um jogo um tanto frívolo. O criador comprometeu-se numa aventura medonha: assumir sobre si, até ao fim, os perigos corridos pelas suas criaturas. Não se pode admitir uma criação sem ter por origem o amor. Como colocar na nossa frente, com uma força rival da nossa, o que se deverá desdenhar ou odiar."

Jean Genet, Diário de um ladrão, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1973, p. 195. 

Wednesday, June 10, 2015

DIA 10




"Tinha um colar e o olhar ferido
comia bolachas na cama
não podia dormir sozinho
tinha por ele prisioneiros bem conhecidos
descia o som quando tocava o telefone
lágrimas de quem viveu o do amor
meninas de transparência
para servir o braço às armas feito
amava furiosamente o escravo e Leonor
tudo o que fosse trova
em redondilhas passodobles."


João Miguel Fernandes Jorge, "O Roubador de Água", in Obra Poética, 2ª ed., vol. 4, Lisboa: Editoral Presença, 1994, p. 176. 

Tuesday, June 9, 2015

DATA (servindo para a memória de Nuno Melo, ator)



"Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação, São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor."

Fernando Pessoa, Crítica, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 228. 

Sunday, June 7, 2015

OS GANHOS




" - Tenho ainda doze horas de ganho. Posso consagrá-las a isso. 
- Espera! Mas afinal sempre tem coração, mr. Fogg? - disse sir Francis Cromarty. 
- Às vezes, respondeu com simplicidade Phileas Fogg. Quando há tempo."



Júlio Verne, A Volta ao Mundo em 80 Dias, trad. A.M.da Cunha e Sá [atual.], 3ª ed., Lisboa: David Corazzi Editor, 1886, p. 68. 

Saturday, June 6, 2015

ESTADO DE SÍTIO



"é difícil distinguir 
se tomaste o caminho
errado logo
ao princípio da vida
ou se te manténs simples 
mente fora 
de ti
sem te conseguires
perder."

Renato Filipe Cardoso, canibalírico, Porto: Texto Sentido, 2015, p. 16. 

Friday, June 5, 2015

EXTASIADO



"Assim, de tempos a tempos, espalhava-se pelo rosto extasiado do agrilhoado uma luz de serena felicidade, nascida de qualquer sonho ou reminiscências perdidas, que logo se dissolvia para em breve renascer."

Herman Melville, Billy Budd, trad. José Estêvão Sasportes, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 130.

Thursday, June 4, 2015

A DÚVIDA



"É a voz da Natureza. Mas os botões do nosso uniforme falam da nossa lealdade à Natureza? Não, da nossa lealdade ao rei. E apesar do oceano, que é a Natureza primitiva e inviolável, apesar de ser este elemento em que nos movemos e a que pertencemos como marinheiros, será que o nosso dever de oficiais do reino nos coloca numa esfera correspondentemente natural? Claro que não, e ao recebermos as nossas patentes, deixámos, sob os aspectos mais importantes, de ser livres agentes da natureza."


Herman Melville, Billy Budd, trad. José Estêvão Sasportes, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp. 116-117. 

Wednesday, June 3, 2015

FRESCA



"Manhã fresca, reclinada
pela primavera crescente. 
O mais pequenino nada
está como se fora gente. 

De um rapaz louro que finda
(na alameda) uma novela perturbada
uma mulher ainda linda
esperou mas não foi olhada

E na folhagem também
certo desencontro corre:
a primavera que vem
na trovoada que morre."


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação,Lisboa: Assírio & Alvim/BI, 2008, p. 71

Monday, June 1, 2015

SEXTA PORTA



"Estou entre os muros do jardim.
Há três espécies de seres: os vivos
os mortos e os marinheiros. 
As palmeiras quase flutuam. 

Vou pelo muro de terra. 
De um jardim a outro «abençoada a
sua sorte» pelo descer dos caminhos
entre palmeiras cada vez mais ténues. 

Vou por onde cresce a roseira."


João Miguel Fernandes Jorge, "Actus Tragicus", in Obra Poética, vol. 4, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 157.