Tuesday, January 10, 2017

IMPRECISA



"Que estranha vida, portanto. E sem poder apresentar uma reclamação, nem tentar remédios, nem encontrar uma explicação que liberte os espíritos. E sem poder sequer convencer os outros, das outras casas, que não sabem. Mas que coisa será, pois, esta gota, perguntam com exasperante boa fé, um rato talvez? Um sapo saído das caves? Não exactamente. 
E então, insistem, será por acaso uma alegoria? Quer-se-á, por assim dizer, simbolizar a morte? Ou algum perigo? Ou os anos que passam? Nada a fazer, senhores: é simplesmente uma gota, só que sobe pelas escadas. 
Ou, mais subtilmente, pretende-se figurar os sonhos e as quimeras? As terras imprecisas e longínquas onde se presume a felicidade? Algo poético, em suma? Não, absolutamente não. 
Ou os lugares mais longínquos ainda, no fim do mundo, aonde nunca chegaremos? Mas não, digo-vos, não é uma brincadeira, não há duplos sentidos, trata-se, felizmente, apenas duma gota de água, tanto quanto é dado entender, que de noite vem pelas escadas acima. Tic, tic, misteriosamente, de degrau em degrau. E é por isso que se tem medo."


Dino Buzzati, "Uma Gota", in Pânico no Scala, trad. Carlos Leite, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2007, pp. 97-98

No comments: