"Nas nossas trevas não há um espaço para a Beleza. Todo o espaço é para a Beleza."
René Char, Furor e Mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 271.
"Nas nossas trevas não há um espaço para a Beleza. Todo o espaço é para a Beleza."
"Aquele que declarou esta guerra em si próprio, está em paz com os seus semelhantes, e, embora seja por inteiro o campo de batalha mais violenta, no interior do seu interior reina uma paz mais activa do que todas as guerras juntas. E quanto mais reina a paz no interior do seu interior, no silêncio e na solidão central, mais se encarniça a guerra contra o tumulto das mentiras e da ilusão inumerável."
"então, um grande silêncio, um pesado silêncio dilatar-se-ia primeiro que tudo, um silêncio grávido de mil trovões."
"Não pôde ser deixado naquele estado à vista de todos. Na noite de 19, foi decidido levá-lo e depositá-lo na Capela das Febres para lhe dar uma sepultura provisória. A operação, contada por Burckard, transforma-se numa farsa macabra e sórdida: «Foi depositado perto de uma parede, num canto do lado esquerdo do altar. Esta tarefa foi realizada por seis carregadores muito rústicos, que se divertiam e injuriavam o papa e o seu cadáver, e dois mestres carpinteiros, que lhe fizeram um caixão demasiado estreito e curto. Não havia qualquer tocha ou iluminação, nem ninguém para cuidar do corpo, pelo que acabaram por fazê-lo entrar aos socos no caixão, deformando a mitra. Em seguida, cobriram o corpo com o tapete antigo já referido."
"Antes de prosseguirmos, desejamos lembrar ao leitor a história da pedra que, atirada do alto de um monte, começa por deslizar devagarinho, rodeando obstáculos. Mas quando toca o termo da viagem e adquire força, vence grandes distâncias de cada salto, transpõe barrancos e muros e a sua carreira torna-se cada vez mais rápida e impetuosa à medida que se aproxima do momento de ser condenada a repouso eterno."
"O reencontro é caloroso. Muito feliz por tornar a vê-los, o papa fá-los sentar nos degraus do seu trono. Após este episódio, a família marca encontro para o dia 22 de Maio, em S. Pedro, a fim de celebrarem o Pentecostes. Neste dia, para grande escândalo de Burckard, as damas de honor, para melhor desfrutarem do espectáculo, trepam, atrás de Lucrécia e Sancha, as estalas dos cónegos e vão instalar-se no ambão, onde se canta a epístola e o Evangelho. Longe de se melindrar, Alexandre alegra-se até ao riso: na Basílica venerável, que é a da autoridade suprema da Cristandade, parece ter sido ultrapassado o limite entre o cumprimento do ritual e o prazer dos sentidos."
"Quando, pois, Irmãos dilectíssimos, celebramos o Natal do Senhor, dia que foi escolhido, entre todos os dos tempos passados, conquanto a ordem dos acontecimentos materiais, como os tinha destinado o decreto eterno, já tenha passado, e a humildade do Redentor já tenha sido toda elevada à glória da majestade do seu Pai, «para que ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos infernos, e toda a língua confesse que Jesus é Senhor e tem glória igual à do Pai», contudo não cessamos de adorar o próprio parto da Virgem que nos traz a salvação; e aquele indissolúvel união do Verbo e da carne não menos a contemplamos deitada no presépio do que sentada no altíssimo trono de seu Pai."
"O outro caso é o de Domingas Domingues, que apresenta uma história deveras interessante e bem complexa e elucidativa do contexto e das implicações da cura. De novo, na presença do túmulo da rainha e das testemunhas anteriormente referidas, compareceu Domingas Domingues, que narra o seu caso, referindo que em tempos «que não sabia quando» bebera uma sanguessuga e que devido a isso tinha frequentes «golfadas de sangue», que alguns diziam ser de uma dor que ela tinha, outros da referida sanguessuga.Para pôr fim a tal desgraça, aconselharam-na a ir à Fonte do Alfafar para beber da sua água, e que tal não resultara, e depois fora ainda a um barco, chamado o «veleiro», junto a Penela, e que igualmente bebera de uma água, que também não surtiu qualquer efeito. Depois foi a São Brás de Coumbra, e ainda a Santa Maria da Parede da Igreja de São Bartolomeu e nada disto resultou, até que foi aconselhada a ir junto do túmulo da rainha Isabel em Coimbra. Aí pedira-lhe «do coração e de vontade" que rogasse a Deus por ela e que a aconselhasse sobre o que fazer com o seu sofrimento, e lançando muito sangue sobre o túmulo sai-lhe pelo nariz a referida sanguessuga, ficando curada."
"Sou o excluído e o cumulado de graças. Termina-me, beleza que aplainas, pálpebras ébrias mal cerradas. Todas as chagas mostram à janela os seus olhos de fénix despertos. A alegria da resolução canta e geme no outro da parede."
"Vislumbro o dia em que alguns homens que não se julgarão generosos e absolvidos, visto que terão conseguido expulsar o desânimo e a submissão ao mal do trato com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que terão atacado e dominado as forças da chantagem que de todas as partes os reclamavam, vislumbro o dia em que alguns homens empreenderão sem astúcia a viagem da energia do universo. E, como a fragilidade e a inquietude se alimentam de poesia, será exigido no regresso a esses altos viajantes que se dignem a lembrar-se."
" - Trouxe-vos até aqui, capitão Waverley, não só por me lembrar de que a paisagem vos agradaria, como também porque as poesias montanhesas perderiam muito do seu valor sem o cenário que lhes compete. Servindo-me da linguagem poética da minha pátria, digo que o trono mais apropriado para a musa céltica é o outeiro solitário, envolto em neblina, embalado pelo murmúrio das águas. Aquele que a invoca deve preferir a rocha estéril ao vale arborizado e fértil, a solidão do deserto ao ruído dos palácios."
"Eu tinha a vaga esperança de que surgisse um sismo ou um furacão, de maneira a poder renascer num mundo tranquilo e luminoso."
"Não existe hábito que mais se enraíze do que o de ler sem método nem fim determinado, principalmente se encontramos ensejo e facilidade para o fazer."
"Neste momento, os meus pensamentos gelaram. Uma vida singular, ímpar, fora criada em mim, porque a minha vida estava presa a todas as existências que me rodeavam, a todas as sombras que tremeluziam à minha volta. Senti uma profunda e inseparável relação com o mundo, com o movimento de todas as criaturas e com a natureza. Todos os elementos, meus e da natureza, estavam ligados pelos caudais invisíveis de uma qualquer corrente agitada e perturbadora. Nenhum pensamento ou imagem eram para mim antinaturais. Eu compreendia os segredos das antigas pinturas, os mistérios de tratados filosóficos difíceis e a eterna tolice das formas e das normas, porque neste momento eu participava na rotação da Terra e dos planetas, no crescimento das plantas e nas actividades do mundo animal. O passado e o futuro, distante e próximo, partilhavam a minha vida sensível e eram unos comigo."
"Que este dia seja tão doce e tão perfeito que nos seja possível evitar as forças das trevas até atingirmos o termo da nossa vida, fixado por Deus na felicidade."
"Esperando que um mundo seja desenterrado pela linguagem, alguém canta no lugar onde se forma o silêncio. Logo verificará que não porque se mostre furioso existe o mar, nem igualmente o mundo. Por isso cada palavra diz o que diz e além disso mais e outra coisa."
"Debandava tudo de seus lugares e quem estivesse irremediavelmente preso à casa, ao mester, apelava para a misericórdia divina, como único salvatério, esforçando-se por merecê-la com preces, penitências, votos de toda a ordem, de que nunca mais conseguiria desonerar-se, se alguma vez buscasse cumpri-los. Mas era como as promessas impossíveis a Santa Bárbara, que só o são enquanto a trovoada está armada ou vai ribombando das nuvens prenhes de raios e coriscos."
Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 126.
"Os homens, no geral, à luz do dia e sempre que empunhavam a vara do mundo eram monstruosos tiranos, e ignóbeis na animalidade debaixo de telha."
"Só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito."
"Estavam ambos na orla do mundo conhecido, e cairiam no desconhecido porque a vertigem não os deixava explicar-se melhor."
"Ele, o homem, através de todos os tormentos, já sentia o paraíso. Farejava-o como provisão prometida a todos os mártires da carne. Como devia ser bom, comparado com a fealdade da existência! Desde o começo da vida deste mundo, as coisas complicavam-se."
"Por sorte havia o céu. Como é que poderíamos viver sem nos lembrarmos do céu? Como bem sabíamos, aqui nos encontrávamos de passagem."
"A manipulação destas ideias provocava-me uma euforia crescente. Acumulei provas que demonstravam que a minha relação com os intrusos era uma relação entre seres de diferentes dimensões. Nesta ilha poderia ter sucedido uma catástrofe imperceptível para os seus mortos (eu e os animais que a habitavam); depois teriam chegado os intrusos."
"Assim era pelos vistos nos tempos longínquos e obscuros, quando havia profetas, quando havia menos ideias e menos palavras, quando era jovem a lei terrível que fazia pagara morte com a morte, quando os animais ainda tinham amizade com o homem e o relâmpago lhe estendia a mão - assim, naqueles tempos longínquos e estranhos, o transgressor ficava exposto às mortes; a abelha picava-o, o touro de cornos aguçados marrava contra ele, a pedra esperava pela hora da sua queda para partir a cabeça descoberta do homem; e a doença rasgava-o à vista de todos, como um chacal rasga uma carcaça; e todas as setas, desviando-se do seu voo, procuravam o seu coração negro e os seus olhos baixos; e os rios mudavam o seu curso, fazendo aluir a areia sob os seus pés, o seu próprio potentado oceano lançava à costa as suas ondas alterosas e, rugindo, enxotava-o para o deserto.Milhares de mortes, milhares de túmulos."
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que fala da porta da torre
que dá para donde vim."
José de Almada Negreiros, Poemas, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, pp. 167-168.