Sunday, May 31, 2020

MONGIBELO






"Si esfera soy de fuego 
Si Mongibelo soy, si ardiente Libia, 
si cuando estoy más tibia
a diluvios de ardor el alma entrego, 
cómo un favor te niego
dulce Silvano mío
por tener corazón helado, y frío?
si sabes que este amor es más perfeto, 
cómo juzgas el mérito defeto, 
llamando resistencia
a lo que solamente es conveniencia?
mas si tanto respeto no te agrada, 
y llamas al decoro tiranía, 
culpas me da, señor, de recatada
mas vituperios no de amante fría"


Sóror Violante do Céu, Rimas Várias,  Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 118. 

Saturday, May 30, 2020

ROXO



"Roxo às vezes cheirava as flores e olfatava-se de Violeta nas épocas estremes, vigiava os vinhos no colorir da uva americana, semeava favas, estrumava quase todas as plantas da horta e regava, de preferência à tarde, as novidades de Maio. No minguante acanhava-se e raro dava consulta, a não ser que Violeta o viesse visitar às ocultas para criar um serão bem acamado."

Ruben A., Cores, 2.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 28. 

Friday, May 29, 2020

FEMENTIDO




"Descobre novo mundo o pensamento,
Estende as asas, não respeita a vida, 
E em fantásticos bens sem fundamento 
Traz a leve esperança repartida;
O tempo é leve e corre mais que o vento, 
A fortuna, mudável, fementida; 
O desejo ao mor risco se oferece, 
Amor com falsas mostras aparece."


Francisco Rodrigues Lobo, Poesias, seleç. Afonso Lopes Vieira, 2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1955, p. 68. 

Thursday, May 28, 2020

VIGÉSIMO QUARTO ANO




"Padre Dourado retrocedeu um passo, mais outro, outro mais, intimidado pelo ar desvairado de Mestre Severino. Por fim, levou o lenço à boca, reprimindo a risada, as costas contra a parede da cela. E com energia, quase gritando:
- Tire essa tolice da cabeça, Mestre Severino! Não seja bobo. As misérias deste mundo não sobem para o outro. Fique tranquilo. Lá é tudo diferente!"


Josué Montello, Cais da Sagração, 6.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981, p. 213. 

Wednesday, May 27, 2020

CLARIDADE


"D. Branca morava no Porto e sofria, por vezes, de chiliques inofensivos. Era um costume dos últimos anos que a dominavam nas tardes de mau génio. Ficava então toda e toda confundida num deixar-se apoderar de outras cores. D. Branca virava-se encurvada, apopléctica, sem ter mão em si barafustava até ir tudo razo. Para as criadas, nos momentos assim, a vida com D. Branca era negra. Mourejavam o pão e só respiravam claridade quando D. Branca estava a dormir. No sono ela parecia uma pomba mostrando seus cabelos grisalhos."

Ruben A., Cores, 2.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 13. 

Tuesday, May 26, 2020

ESGARÇADO



"Olhou, mais uma vez o céu limpo, todo azul, com leves manchas de nuvens esgarçadas para os lados do nascente, anteviu a noite de lua, ampla, lavada, desimpedida, quase sem estrelas, de vento propício a encher as velas de seu barco. Como conhecia o caminho de cor e salteado, não precisava de bússola na imensidão das águas, sob a claridade do plenilúnio."

Josué Montello, Cais da Sagração, 6.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981, p. 153. 

Monday, May 25, 2020

DA GUARDA




"O meu anjo da guarda está sempre a dizer-me: De que estás à espera? Vá, anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua presença! 
Não sei o que o meu anjo da guarda quer que eu adivinhe em tais palavras. 
Outras vezes, o meu anjo da guarda pede-me para que seja eu o anjo da guarda dele."


Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, introd. Jerónimo Pizarro, rev. e actualização ortográfica Susana Tavares Pedro, Lisboa: Guimarães, 2010, p. 56. 

Sunday, May 24, 2020

TRANQUILAMENTE (em homenagem a Maria Velho da Costa)



"Tranquilamente, do direito que toda a mulher adquire perseverando na ausência, arma do resistente cuja fraqueza é tenaz, isto diz - lembras-te da alegria? Sê então constante naquele fervor que só o jogo, a beleza concertam."

Maria Velho da Costa, Da rosa fixa, 2ª ed., Lisboa: Quetzal, 1999, p. 129. 

Saturday, May 23, 2020

NO DIA DA HUMANIDADE



"Eu sou Sem. No dia em que saía do corpo, quando o meu pensamento permanecia no corpo, despertei como de um pesado sono. E quando me levantei como do fardo do meu corpo disse: «Como a natureza envelheceu, assim também no dia da humanidade. Bem-aventurados são aqueles que conhecem em que poder descansou quando dormem o seu pensamento»."

"Paráfrase de Sem", in A Revelação de Pedro e outros Textos Gnósticos, Biblioteca de Nag Hammadi, III, trad. Luís Filipe Sarmento, Lisboa: Ésquilo, 2015, pp. 149-150. 

Friday, May 22, 2020

TEORIA




"Teoria da verdadeira civilização. Não está no gás, nem no vapor, nem nas mesas giratórias. Está na diminuição dos vestígios do pecado original."

Charles Baudelaire, O Meu Coração a Nu, LIX, trad. João Costa, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 86. 

Thursday, May 21, 2020

PASSAGENWERK




"Para as pessoas, tal como se apresentam hoje, existe apenas uma novidade radical, que é sempre a mesma: a morte."


Walter Benjamin, "Parque Central", in A Modernidade, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 163. 

Wednesday, May 20, 2020

GERAÇÃO



" - Sim, todos nós somos uns mortos. Incapazes de dar dois passos para salvar, ali no Terreiro, alguém que pertenceu à nossa família. 
- Sim, somos impotentes contra a lei das convenções. É o costume, é o que está escrito que nos guia. E que por vezes se alquimia num instinto cruel. 
- Não sei bem se isto é instinto, ou medo ao destino. O Nevoeiro que diga. Quase não se pode respirar. A criação de perus e galinhas morreu toda. Os coelhos andam lunáticos e os pombos da Torre desapareceram na bruma. A asma sufoca os brônquios e torna-se impossível respirar sem abanar a cabeça procurando fios de ar puro pelas frestas da garrafeira e da cisterna da Torre. 
- Passa. Tudo passa. É uma questão de tempo."


Ruben A., A Torre da Barbela, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 199. 

Tuesday, May 19, 2020

CTÓNICO



"As massas de Baudelaire. Atravessam-se como um véu diante do flâneur, são a nova droga do solitário. - Depois, apagam todos os vestígios do indivíduo: são o novo asilo do proscrito. - São, finalmente, no labirinto da cidade, o novo labirinto inexplorável. Elas trazem à imagem da cidade traços ctónicos até então desconhecidos."

Walter Benjamin, As Passagens de Paris, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 575. 

Monday, May 18, 2020

FENÓMENO (para a memória do Divino Michel Piccoli)



"Todos conhecemos dos sonhos o terror das portas que não se fecham. Em termos exactos, são as portas que parecem estar fechadas sem o estarem. Apercebi-me deste fenómeno de forma potenciada num sonho em que ia acompanhado por um amigo e subitamente me apareceu um fantasma à janela do rés-do-chão de uma casa à nossa direita. E à medida que íamos avançando ele acompanhava-nos do interior de todas as casas. Atravessava todas as paredes e permanecia sempre à mesma altura. E eu via tudo isso, apesar de ser cego. A travessia que fazemos das Passagens é também, no fundo, um destes caminhos de fantasmas em que as portas cedem e as paredes se abrem."

Walter Benjamin, As Passagens de Paris, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 536. 

Sunday, May 17, 2020

REVENANT




"Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão-de istmar-se. 

Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida, 
que acaba na áfrica de uma agonia ardente, 
suicida!

Há ânsias de... não ter ânsias, Senhor; 
a ti aponto-te o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração. 

A primavera volta, volta e partirá. E Deus, 
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo. 

Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor, 
quando me dói o sonho gravado num punhal, 
há ânsias de ficar plantado neste verso!"


César Vallejo, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 37. 

Saturday, May 16, 2020

ATUALIZAR



"Nunca antes a escala do «mais pequeno» teve tanta importância. E isso inclui também o mais pequeno em termos de quantidade, o «menos». Trata-se de medidas que se afirmam há muito nas construções da técnica e da arquitectura, antes de a literatura dar sinais de querer apropriar-se delas. No fundo, estamos perante as primeiras formas de manifestação do princípio da montagem."

Walter Benjamin, As Passagens de Paris, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 275. 

Friday, May 15, 2020

SUSPENSO




"O mundo revelava-se do inédito e estava carregado de uma atmosfera de sons ou imagens, apanhava as conversas à distância ou à proximidade, e ruminando no seu significado deitavam fora o ranço das falas mais taradas. 
E a multidão que no Jardim dos Buxos entretinham o tempo, em nada se diferenciava das outras multidões: apenas não se viam - viviam no suspenso dos sons."


Ruben A., A Torre da Barbela, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 70. 

Thursday, May 14, 2020

O MUNDO



"O mundo também vivia de contradições: uns, a sofrerem por amor; outros, a passarem o tempo."

Ruben A., A Torre da Barbela, Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 42. 

Wednesday, May 13, 2020

SURPREENDER




"É cada vez mais difícil surpreendê-lo. Ele defende-se (ou seremos nós que nos defendemos dele?), refugia-se em lugares cada vez mais afastados, inóspitos por vezes: pântanos, grutas abandonadas. 

Tudo cresce no silêncio. Tudo cresce em silêncio. Desde o ácer até a vulgar tradescância. Mas quem melhor se adapta são, sem dúvida, os miosótis. Depois de alguns minutos em silêncio já não te consegues mexer, com receio de os pisares."


Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 98. 

Tuesday, May 12, 2020

ASSOMBRA




"A sombra assombra e arromba
quem apenas vê a sombra
como novelo de cardos
como pancada que estala
a porcelana da alma. 

A sombra tomba e ensombra
quem leva luto ou no ombro
o peso todo das caves
todo o pó acumulado
nos séculos da sua idade. 

A sombra é escombro ou recato
caverna de suplício
ou a senha do ofício
de manter tudo abrigado
na gaveta do opaco."

João Rui de Sousa, Lavra e Pousio, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005, p. 113.

Monday, May 11, 2020

A OLHAR PARA QUANDO



"Estamos a olhar para quando
não mais veremos o que agora vê
estarmos a olhar. E ficamos
rodeados da luz de estar a ver. 
Ou será só que, iluminados
por seu poente, a glória afez
os objectos a irem mostrando aquele lado
em que são vistos por irmos a correr
e a sermos por eles igualmente amados
e pelo brilho da noite que nos vem?"


Fernando Echevarría, "Figuras II", in Poesia, 1987-1991, Porto: Afrontamento, p. 115. 

Sunday, May 10, 2020

O JARDIM



"O jardim é muito bonito, é um velho jardim dividido em talhões quadrados em que se cultivam flores das de antigamente, flores velhíssimas que só já se encontram em quintas muito velhas e em quintais de padres velhíssimos..."


Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, 2.ª ed., trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, p. 69. 

Saturday, May 9, 2020

AS COISAS



"A luz do céu verde é tão humana, 
é tão divina a parede com luar
da casa tranquila, 
que não parece
que o céu e a casa não se vêem. 

Que aspiração na parede radiante
da casa tranquila;
que presença no céu verde e alto!
Parece que se vêem!"


Juan Ramón Jiménez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p. 111. 

Friday, May 8, 2020

MUDANÇA



"Do mesmo modo a estética transcendental não pode contar entre os seus dados a priori o conceito de mudança: porque não é o próprio tempo que muda, apenas muda algo que está no tempo. Para isso requere-se a percepção de uma certa existência e da sucessão de suas determinações, por conseguinte a experiência."

Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, I, prg. 7, trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Lusboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 78. 

Thursday, May 7, 2020

NABEL



"Coro - Assim se comportam os novos deuses, que tudo dominam sem preocupações com a justiça. Diante dos meus olhos está este trono a escorrer sangue, da base ao cimo, o umbigo da terra, carregado da mancha terrível dum assassínio."

Ésquilo, Euménides, 163-166, in Oresteia, trad. de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 192. 

Wednesday, May 6, 2020

LOUVAR




"Cassandra - Ó condição humana! A felicidade, uma simples sombra basta para a alterar; quando se é infeliz, uma esponja húmida destrói de um golpe a pintura. E das duas mudanças esta última é a que me parece mais para lamentar."


Ésquilo, Agamémnon, 1328-1330, in Oresteia, trad. de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 84. 

Tuesday, May 5, 2020

DIAFRAGMA




"O que se seguiu não vi, não posso dizê-lo, mas as artes de Calcas não são vãs. Na balança da Justiça, o prato da aprendizagem desce para os que sofreram. O futuro poderás conhecê-lo depois de acontecido. Entretanto esquece-o, dado que antecipá-lo é o mesmo que chorar antes de tempo: ele virá, claro, na madrugada com os seus raios."
´

Ésquilo, Agamémnon, 248-254, in Oresteia, trad. de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: Edições 70, 1991, p. 34. 

Monday, May 4, 2020

UMA POR ETERNIDADE




"E a pouco e pouco tomou consciência de que tudo tinha sido um sonho, um simples sonho, e nada mais. E essa ideia perseguia-o. 

- Quando vêm os sonhos? - perguntou em voz alta. 
E quando o Sr. von Kranz o veio ver à tarde, contou-lhe o seguinte: 
- A vida é tão vasta e encerra, no entanto, tão poucas coisas, uma por eternidade. E essas esperas angustiam-nos e fatigam-nos. Quando eu era miúdo, fui uma vez a Itália. Fiquei apenas com uma vaga lembrança. Mas lá, no campo, quando se pergunta a um camponês que se encontre à beira da estrada: «A aldeia ainda é longe? - Un' mezz'ora» é a resposta. E o seguinte a mesma coisa e o terceiro igualmente, como se tivessem feito promessa. E caminha-se durante todo o dia e nunca se chega à aldeia. O mesmo acontece na vida. No sonho, tudo se encontra mais próximo. Não temos medo. No fundo, nós somos feitos para sonhar, não possuímos os órgãos necessários à vida, somos uma espécie de peixes que pretende voar a todo o custo."



Rainer Maria Rilke, "Ewald Tragy", in Histórias do Bom Deus e outros textos, trad. Maria Gabriela Cardote, Lisboa: Livros do Brasil, 1989, p. 152. 

Sunday, May 3, 2020

MATERNIDADE




"Todas as mães têm casas dentro dos olhos
e praias escondidas nos bolsos, e flores
a prender os cabelos dos dias. Todas as mães
têm gelados guardados no coração para os fins
de tarde mais alegres, e bolo de iogurte e leite
morno para as manhãs invernosas dos desgostos
dos filhos. Todas as mães têm vestidos largos
para abrirem melhor os braços, e é de pétalas
o agasalho do seu riso quando o colo se abre
ao cansaço e cresce para embalar as tardes."


Virgínia do Carmo, Ecos de Green Rose, Poética Edições, 2019, p. 39. 

Saturday, May 2, 2020

CRIANÇA




"Era talvez a areia do meu corpo. Nela caminho
à procura de alguém. Prossigo e talvez este seja o início
de todo o conhecimento. Mas o que se aprende
só em mim é que pode existir. Talvez ali comece 
o que se encontra perdido, este lugar simples
que nos acolhe. Ficaram os meus olhos cerrados
e os lábios quase imóveis. Por vezes adormeço
porque tudo o que possuo há-de conservar-se oculto."


Fernando Guimarães, "Na Voz de um Nome", in  Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 327. 

Friday, May 1, 2020

LUGAR NENHUM




"E de súbito nesse penoso lugar nenhum, de súbito surge
o sítio invisível, onde a pura escassez
incompreensivelmente se transforma -, dá o salto
para esse excesso vazio.
Onde sem números 
se abre a conta de muitas parcelas."


Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno, V, 3.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, p. 81.