Friday, January 10, 2025

AS MEIAS DISTÂNCIAS

 



"Como te hei-de fazer ver
as meias distâncias
que nos separam das coisas?

É o nosso conforto num outro sítio
que nos proporciona
o arrepio de estarmos aqui."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Malva 62, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 95.

Thursday, January 9, 2025

RELÂMPAGO NEGRO

 


"Na nossa atual condição desvirtuada, diz Nat, o amor de Deus parecer-nos-ia «negação pura». Sem forma ou vazio. Estás a ver? Uma espécie de relâmpago negro que destrói tudo a que chamamos «vida». Deus é uma espécie de nada sublime. É um terrorista do amor, cujo perdão implacável está condenado a parecer uma afronta intolerável àqueles que não podem entregar-se. Os danados são os que experienciam o infinito «bom» de Deus como um infinito «mau». Do mesmo modo, podemos experienciar aquilo a que os historiadores da arte chamam o sublime (montanhas enormes, tempestades no mar, céus infinitos) como terrível ou magnífico, ou ambos."


Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, pp. 36-37. 

Wednesday, January 8, 2025

OS SONHOS




"De facto, os seres humanos podem alcançar um certo nível de autodeterminação. Mas só o podem fazer no contexto de uma dependência mais profunda de outros semelhantes, uma dependência que é aquilo que faz deles humanos. É isto, como veremos, que o mal nega. A pura autonomia é um sonho do mal."


Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 23.

Tuesday, January 7, 2025

BARROCO PORTUGUÊS

 


"Música e canto; arte formosa moldada, lavrada, bordada, tecida por artistas de fama; e, no conjunto das formalidades, a graça dos movimentos harmoniosos.
Tudo, nesse religioso ambiente de beleza, é lirismo festivo nas almas e nas coisas, desde os artesões da abóbada às fisionomias dos santos, em suas esculturas e seus painéis; no profuso ornato da talha dourada, no retábulo e nas capelas - barroco português onde, nas voltas e arquivoltas, nos frisos (estes, às vezes, séries de cabecitas de querubins alados); nas pilastras gregas, entre silvas de curvas decorativas, bailam, uns com outros, meninos gordinhos, nuzinhos; as grinaldas abraçam-se nos fustes salomónicos; criancinhas, de corpos rosados, afagam pombas que depenicam cachos de uvas; e minhotas flores cristãs, mutuamente, boamente se congratulam com as pagãs folhas de acanto dos capitéis coríntios." 

Antero de Figueiredo, Traição à Arte, 2.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1952, pp. 61-62.

Monday, January 6, 2025

OS ADORADORES

 



"É nos estuários que se concentram os adoradores
porque sabem que algo chega ao fim, algo se cumpre.
Também o vento do mar com os canaviais
e o canto imenso das aves migratórias
os fazem prosternar-se. São adoradores
de ver passar as águas mantendo-se enxutos
na veneração. Movem os templos ao longo das margens
acompanhando as águas para o justo fim.

Mas os mais amados, os verdadeiramente
tocados pela loucura, esses sobem e remontam
fixando-se para sempre as fontes e nascentes."


Carlos Poças Falcão, "A nuvem", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 310.

Sunday, January 5, 2025

MUNDO INCERTO

 



"Eis aqui mil caminhos. Por ventura
Qual destes leva a gente ao povoado?
Todos vão sós; só este vai trilhado;
Mas, se por ser trilhado, me assegura?

Não, que desde o princípio há que lhe dura
Do erro este costume ao mundo dado:
Ser aquele caminho mais errado
O que é de mais passage é fermosura.

Enfim, não passarei, temendo a sorte?
Também, tanto temor é desconcerto;
A quem passar avante, assi lhe importe.

Que farei logo, incerto em mundo incerto?
Buscar nos Céus o verdadeiro norte,
Pois na terra não há caminho certo."



D. Francisco Manuel de Melo, As Segundas Três Musas, 2ª. ed., selec. António Correia de A. E Oliveira, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1966, p. 100.

Saturday, January 4, 2025

FUNÇÕES

 



"Durante os séculos XIX e XX a escola assumiu pouco a pouco todas as funções da educação - nomeadamente as que pertenciam antes de mais - à comunidade e, depois, à família. Hoje é na escola que se aprende a andar na rua e nas estradas, a respeitar o Estado e a Pátria, a obedecer a todas as suas minuciosas prescrições policiais e fiscais - e até mesmo a fazer amor."


Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 18. 

CORTESIA

 



"A cortesia, um dos conceitos então mais difundidos, não constituía uma virtude de pequena importância. A sua origem era ilustre: «A Cortesia desceu do Céu, quando Gabriel saudou a Nossa Senhora e Elisabeth veio ao seu encontro.» Ela abrangia simultaneamente regras de boas maneiras e uma moral comum: não mentir, não se endividar, falar «com honestidade», e também: servir bem o seu senhor à mesa, na intimidade, no trabalho, na corte, na guerra e na caça, saber guardar segredos."


Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 13. 

Friday, January 3, 2025

A ALMA DEPÕE-SE NO OLHAR

 


"Para que o fundo bom de uma criança se manifeste por todos os lados (e ele reluz sobretudo no rosto), o seu olha deve ser doce, respeitador e honrado; os olhos duros são um indício de violência; olhos fixos, sinal de atrevimento; olhos errantes e vagos, sinal de loucura; eles nunca devem olhar de viés, o que é próprio de um sonso, de alguém que prepara uma maldade; também não devem ser desmesuradamente abertos, como os de um imbecil; baixar as pálpebras e piscar os olhos é um indício de frivolidade; mantê-los parados é indício de um espírito preguiçoso - e disso acusou-se Sócrates; olhos perscrutadores denotam irascibilidade; olhos demasiado vivos, ou muito eloquentes, um temperamento lascivo: convém sim que reflitam um espírito calmo e respeitosamente afectuoso. Não foi por acaso, com efeito, que os velhos sábios afirmaram: a alma depõe-se no olhar."


Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 71. 

ANTIGUIDADE

 


" - En la Antigüedad - prosiguió la implacable acusada -, el vicio era sagrado porque el ser humano era fuerte. En nuestro siglo es vergonzoso, porque nace de nuestro agotamiento. Si fuéramos fuertes, y si además tuviéramos quejas contra la virtud, estaría permitido ser vicioso, haciéndose creador, por ejemplo."


Rachilde, Monsieur Venus - Novela materialista, trad. Rodrigo Guijarro Lasheras, Oviedo, KRK Ediciones, 2017, pp. 163-164. 

Thursday, January 2, 2025

TOADA GÓTICA

 




"Seguem-te os alicornes mansamente,
Pastando neve na montanha azul...
Que a tua mão, Senhora, os apascente
Sem nada que os altere ou que os macule!

O céu, coalhado, tem um ar ausente
que nem parece o dum país do sul.
E os alicornes pastam mansamente
- E a neve brilha na montanha azul!

Ondeiam nos pauis fantasmas brancos.
Tal como um sonho que se apaga e esfuma,
Anda a bailar o inverno nos barrancos.

E tu sorris, atrás dos alicornes...
Ó pastorinha de vitral e bruma,
Que sobre mim tua graça entornes!"



António Sardinha, "Chuva da Tarde", in Líricas Portuguesas, 2.ª série, seleção de Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália Editora, 1945, p. 165-166.

Wednesday, January 1, 2025

PRINCÍPIO

 


"O presente é inconsciente como a juventude: - só na idade reflectida se mede o prazer que passou. O prazer é vivaz e efémero; a recordação vem esmorecida, mas pousa e fica. A alegria vale, sobretudo, pelo fio de doçura que deixa a saudade nevoenta...Quando fruímos um prazer, com a ardência do sol em chamas, estamos a preparar o luar desse gozo: o deleite brando e demorado de o relembrar."

 

Antero de Figueiredo, Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 1. 

Tuesday, December 31, 2024

FINDA

 




"E há a solidão de milhões de estrelas
e o clarão de todos os sóis..."



Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 69.

PELA TUA PAISAGEM

 



"Como gostaria de afundar-me
docemente, languidamente,
na ausência do que me rodeia,
mergulhar no sono
como em areia movediça...
Mas há a tua voz
retinindo como campainha
longínqua,
há a visão do teu rosto
na sombra mais profunda,
bem no fundo de mim
projectando-se em «flash»
obsessivo, e então
recomeço a minha peregrinação
- mil vezes iniciada e interrompida -
pela tua paisagem,
por colinas,
vales, rios,
por essa savana pardacenta,
onde se confunde tua pele morena
e, vendo crateras
donde escorreu lava
olho-as hipnotizada,
e lanço-me nelas!"


Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 69.

VOLTARÁ

 



"Amanhã não sei
se me contemplam
as coisas, se de novo
voltará

a miragem desse nada
amachucado. Errante
astro absurdo

as mãos nos bolsos
sobre o soalho
rangendo

vou."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 41.

ININTERRUPTO

 



"Traças a tua rota
numa constelação qualquer,
a face sempre igual
não sendo embora a mesma.
A luz atinge-te
e logo te voltas
num rodopiar insano,
ininterrupto,
numa sucessão de luz e sombra.
Teus dias, tuas noites,
teus sorrisos,
a obsessão de não receber
de não dar.
Permaneces estanque.
E tu que podias ser
cometa,
estrela,
serás talvez um planeta
girando em infinitos despovoados!"



Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 63.

ENTARDECER

 



"Quando generoso gesto se desenha
E sincero adere o coração,
Sem que tempo em seu modo se detenha,
Só a noite escura deste tempo vão

Me claudica, me pára, me interroga.
Nem a rosa com o seu perfume,
No jardim distante onde hoje voga,
Se aconchega ao meu peito, como lume.

Recuo os passos em passeio aflito,
Olhos no chão de vergonha imensa
Pelo não feito, pensado e não descrito.

Pelo que quis, sonhei e não refiz.
Neste estar de embriaguez suspensa,
Sobre a máscara uma expressão feliz."



Risoleta C. Pinto Pedro, Kronos inVersus, Porto: Edições Sem Nome, 2023, p. 13.

BRECHAS

 


"E depois haverá o caos.
Sempre existirá
como acorde final
duma apoteose,
já que nada permanece.
Tudo se degrada,
em rachaduras mínimas,
disfarçadas,
que se tornação brechas
desmesuradas, esfomeadas,
que tudo esmagarão
com o tempo, a indifereça
e a ruína por aliados.
Onde as colunas esguias,
a Fénix adejando
pousando na sombra longa?
Porque desapareceu,
apesar das cinzas,
do renascer
repetido até à saciedade?
O caos, a inevitabilidade,
a consequência,
o acorde final,
a ausência..."


Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 83.

DA FÉ (para a memória de Adília Lopes)

 



"O dia
que se põe
é a noite
que vem

Os ícones
são escuros
e duros
doces
e dourados

Em breve
irei ter
com as fontes
(as fontes
do tempo)

Em breve
morro
e me faço
um morro

Em breve
a nev
o ouro
nupcial

Acendo
a vela
do meu baptismo
e velo

Com os quadros
de Rouault
dentro da cabeça
não perco
a cabeça"



Adília Lopes, in Verbo - Deus Como Interrogação na Poesia Portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 201-202.

Monday, December 30, 2024

DA VIDA DE UM SANTO

 



"Ele conhecia os medos, cuja entrada
como a morte já era e insuperável.
Seu coração foi aprendendo a atravessar devagar, sem mais nada;
criou-o como um filho moldável.

E conheceu inúmeras privações
escuro e sem manhã como tapumes;
e dócil foi entregando sua alma,
enquanto cresceu para que com seus lumes

ficasse junto a seu Noivo e Senhor; e acabou por ficar
só para trás num tal lugar,
em que o estar só tudo exagerava,
e morava longe e nunca palavras desejava.

Mas em troca, de tempos a tempos ficava a saber, mesmo sem
irmãos,
também que a felicidade era nas suas próprias mãos
se colocar como a inteira criatura,
para que pudesse sentir uma ternura."



Rainer Maria Rilke, Novos Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, p. 177.