Wednesday, December 3, 2025

PUPILAS MÍSTICAS



"Os amantes fogosos e os sábios austeros
Amam a valer, na sua idade madura, 
Os gatos ágeis e doces, do lar o orgulho, 
Como eles, friorentos e sedentários. 

Amigos da volúpia e da sabedoria,
Eles procuram o silêncio e o horror das trevas;
Érebro tomá-los-ia por corcéis fúnebres, 
Se à servidão pudessem vergar a altivez.

Ao meditar adotam as poses sublimes
Das rígidas esfinges nos grandes desterros, 
Como se adormecessem num sonho sem fim;

Dos ris fecundos saltam mágicas faúlhas, 
E partículas de ouro, como areia fina, 
Vagamente lhes crivam as pupilas místicas."



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 153. 

Monday, December 1, 2025

INDEPENDÊNCIA




"Engana-te o homem de Estado, o padre, o moralista,
E este lindo trevo, ó Povo, como tu o adoras!
Ai!, mal é possível pensar ou dizer coisa de jeito
Que feroz não vá ferir Estado, Deuses, Costumes."



J. W. Goethe, Poemas, antologia, versão portuguesa, notas e comentários de Paulo Quintela, 4.ª ed., Coimbra: Centelha, 1986, p. 147.

Sunday, November 30, 2025

SANTO ANDRÉ

 


"Ali
onde as águas se abrem
entre brumas e sargaço

Ali 
onde a vida me foi
misturadamente
crucificação e voo

Ali
como uma poita de pedra
farei naufragar meus olhos."



Luísa Dacosta, A Maresia e o Sargaço dos Dias, Alfragide: Edições Asa II, 2011, p. 73. 

METAFÍSICO

 


"Experimentemos falar com o idiota do meu filho sobre ruínas. É que ele ainda não percebeu. Para ele, tudo ainda permanece no estado animal decomposto, do pequeno objecto (-a) perdido - seja cama ou penico, para ele tudo é ainda mais pequeno do que ele próprio e, portanto, objecto sempre à mão, transicional, ruína. Mas ele não lhe dá o nome de «ruína». Afirma apenas: «São coisas como eu. Parecidas comigo. Eu com elas entendemo-nos optimamente. Medimo-nos a palmo, contamo-nos pelos dedos. Até nos partirem, somos brinquedos. Velhos ou novos, enquanto nos encontrarmos à mão de semear e nos mostrarmos manuseáveis, seremos sempre coisas com interesse. Objectos pequenos. Ruínas
É que o «maior» não existe para ele. Tudo o que lhe passa do ombro ou da cabeça, considera-o já de outro mundo. Que não existe. Como lhe explicar, então, a desagregação do grande até ao residual ou ao pequeno? Se eu lho conseguisse explicar, penso que para ele, em breve, a Ruína constituiria uma espécie de Deus. O metafísico."


Fernando Guerreiro, a sagrada família, papéis impossíveis, 2025, p. 39. 

Saturday, November 29, 2025

EMBEBIDO

 



"Borboleta que poisa em flor, noutra e noutra
Em seu voo cabe toda a vida recordada
Todo o infinito, todo o Eterno, toda a Beleza.

E o mais pequeno gesto vem embebido de Sagrado
As mãos outras borboletas sublimes
Abrem nos relógios horas distintas."



Mário T Cabral, O Livro dos Anjos, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2021, p. 61.

À GRAÇA

 



"Há este cansaço que emudece
Profundo desejo de me trancar
O Além dentro dos muros, o mundo fora.

Trago o Mistério vestido como um casaco
Antigo, brando, confortável, indispensável
De mãos nos bolsos deste casaco vou cogitando:

O tempo passa e o que persiste não é meu
Nada me fica a dever à sabedoria mas à Graça
Ao lado de mim o antes e o depois dos espelhos."


Mário T Cabral, O Livro dos Anjos, Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2021, p. 60. 

Friday, November 28, 2025

QUE MAIS FAZER?

 






"Geoffroy de Anjou tocou seu clarim:
Os Franceses, por ordem de Carlos, metem-se ao caminho.
Todos os seus amigos, que encontraram mortos,
Logo são transportados para uma sepultura.
Há muitos bispos e abades,
Monges, cónegos e padres tonsurados,
Que os absolveram e benzeram em nome de Deus.
Põe-se a arder incenso e mirra.
Enaltece-se os corpos com grande pompa,
Para de seguida os enterrar com toda a dignidade.
Depois, abandonam-nos. Que mais fazer?"


Canção de Rolando, CCXV, trad. Amélia Vieira e Pedro Bernardo,Silveira: E-PRimatur/Letras Errantes,2024, p. 166.

Tuesday, November 25, 2025

COM AROMA DE LUZ

 



"Olhava pró infinito absorto, só, esquecido...
A terra estava só. Às vezes um gemido
D'alguma ave nocturna a pairar na amplidão
Fazia palpitar meu pobre coração.
E olhava de repente, em convulsões de susto
Um hercúleo gigante, um pequenino arbusto.
Chegavam-me ao ouvido umas canções ligeiras
De alegres e viris e boas lavadeiras
Que o ar divino e são depressa embalsamava,
Com aroma de luz que ao luar exalava
Um fresco laranjal, no meio dum pomar:
Pinta as flores, Jesus, com ondas de luar..."


Teixeira de Pascoaes, Embryões, Amarante: Officina Noctua, 2025, p. 31.

Monday, November 24, 2025

VEILLANTIF


 

"Quando Rolando vê que o seu amigo morreu, 
Que o seu rosto se virara para o chão, 
Começa ternamente a lamentar-se:
«Sire companheiro, que funesta valentia!
Estivemos unidos todos estes anos e todos estes dias;
Nunca me causaste pesar, causei-o eu a ti, 
A tua morte faz que a vida seja para mim uma dor».
Com tais palavras, o marquês desfalece
Montado no seu cavalo, que tem por nome Veillantif,
Mas firme nos seus estribos de ouro fino, 
Vá para onde for, não saberá sucumbir."



Canção de Rolando, CLIV, trad. Amélia Vieira e Pedro Bernardo,Silveira: E-PRimatur/Letras Errantes,2024, p. 122. 

Sunday, November 23, 2025

UMA LUZ

 



"Ainda existe uma Luz cá neste mundo,
Neste pântano escuro esverdeado,
Neste oceano de dor que não tem fundo,

Nesta raiva feroz dum condenado, 
Nesta lágrima infeliz que o bom Jesus
Derramou, lá no céu, crucificado;

Deixando-a assim cair, como uma lança
Dum soldado que expira moribundo
No espaço infinito da Esperança;

Neste monturo tétrico e medonho,
Neste enorme covil de hipocrisia
Onde a Verdade existe como um sonho;

Neste túmulo triste e sanguinário,
Onde rebenta a flor da podridão, 
Onde caminha o vício milionário...

Essa Luz que ilumina a Solidão, 
Esse facho repleto de esplendor,  
Essa fogueira enorme dum vulcão, 

E que, numa hora e mesmo num momento, 
A Verdade e o Belo e a Alegria
Expiram em um único lamento!..."



Teixeira de Pascoaes, Embryões, Amarante: Officina Noctua, 2025, pp. 47-48. 

BRAMIMONDE

 




"Eis que chega a rainha Bramimonde.
«Amo-vos muito», Sire, diz ela ao conde,
«Pois o meu senhor e seus homens vos estimam bastante.
Enviarei dois colares de ametistas e granadas!
Valem mais que os tesouros de Roma.
O vosso Imperador nunca viu nada tão belo!
Ele recebe os colares, e coloca-os na sua bota."


Canção de Rolando, LI, trad. Amélia Vieira e Pedro Bernardo,Silveira: E-PRimatur/Letras Errantes,2024, p. 50.

Friday, November 21, 2025

O INSTANTE



"Se Deus existe, é porque existe no livro; se os sábios, os santos e os profetas existem, os intelectuais e os poetas, se o homem e o insecto existem, é porque encontramos os seus nomes no livro. O mundo existe porque o livro existe; pois existir é crescer com o próprio nome.
O livro é a obra do livro. É o sol que engéndra o mar, é o mar que revela a terra, é a terra que esculpe o homem; caso contrário, sol, mar, terra e homem seriam lugar de uma luz sem objecto, água movente sem partidas nem regressos, exuberância das areias sem presença, expectativa de carne e de espírito sem vizinhança, sem ter correspondente, sem duplos nem contrários.
A eternidade desafia o instante com o verbo.
O livro multiplica o livro."


Edmond Jabès, O Livro das Questões, trad. Pedro Eiras, Porto: Flâneur, 2021, p. 33.

Thursday, November 20, 2025

PRIMEIROS MOMENTOS


 

 

"Suponhamos que a humanidade deixou passar despercebidos os seus primeiros sentimentos, as suas primeiras emoções. Quando mais tarde deu por ter deixado despercebidos esses primeiros momentos, teve um movimento de recuperação e, pela mecânica da memória, obteve-os de novo e sem adulteração possível. Estavam incólumes. E até ao fim dos tempos cada pessoa leva em si a testemunha dos primeiros momentos da humanidade."

 

Almada. Os Painéis A Geometria e Tudo - As entrevistas com António Valdemar, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 73. 

Wednesday, November 19, 2025

A DIVINA E A HUMANA


 

"Como lhe parece que possa ser comunicada ao homem corrente, como é o intuito destas entrevistas, uma ligação da citação de Schiller com o provérbio grego?

Deste modo: a linha curva e a linha direita são da mesma natureza, a natureza inanimada. Quem faz a curva é o deus, cuja natureza é a das divindades. Quem faz a direita é o homem, cuja natureza é a humana. Ora o que desejamos relacionar? Aquele que faz a curva com aquele que faz a direita? São de naturezas distintas. Mistério. Não poderemos então relacionar senão o que o deus e o homem fazem: a curva e a direita. Estas são abstrações de uma mesma natureza e concretizadas na extensão. Isto é, apenas numa terceira natureza, a inanimada, sem opinião, neutra, encontraremos relação mediata entre as duas outras naturezas fechadas: a divina e a humana."

Almada. Os Painéis A Geometria e Tudo - As entrevistas com António Valdemar, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 76. 

Tuesday, November 18, 2025

TREME EM LUZ A ÁGUA

 



"Treme em luz a água.
Mal vejo. Parece
Que uma alheia mágoa
Na minha alma desce -

Mágoa erma de alguém
Que algum outro mundo
Onde a dor é um bem
E o amor é profundo.

E só punge ver
Ao longe, iludida,
A vida a morrer
O sonho da vida."


Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio, ed. Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 69.

Sunday, November 16, 2025

ALGOFOBIA

 


"As reflexões de Weil sobre a dor causam-nos estranheza. Hoje em dia, somos hostis ou insensíveis à dor. Rejeitamos qualquer forma de dor. A algofobia domina a sociedade. Nem mesmo o amor pode causar dor. Também a arte e a música sucumbem ao delírio da agradabilidade. Tudo é polido para se adequar ao formato do consumo e da vivência. Qualquer intensidade é evitada porque causa dor. O like enquanto analgésico do presente domina não só as redes sociais, mas também todas as áreas da cultura. Nada deve causar dor. A própria vida, moldada pelo consumo, perde toda a profundidade e intensidade. O consumo e a religião são incompatíveis. A algofobia bloqueia o caminho para Deus."

Byung-Chul Han, Conversas sobre Deus - Um Diálogo com Simone Weil, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D'Água, 2025, pp. 74-75. 

POTENTIA

 


"Deus permanece em silêncio, pois ele encarna a potentia absoluta. Qualquer palavra a enfraqueceria. O silêncio de Deus é mais poderoso e magnífico do que qualquer palavra que, comparada com ele, seria apenas ruído."


Byung-Chul Han, Conversas sobre Deus - Um Diálogo com Simone Weil, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D'Água, 2025, p. 59. 

Saturday, November 15, 2025

O ESSENCIAL

 


"O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa, 
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais, 
Te dirão que o preciso, o urgente, 
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não: 
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo, 
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos dum concorrente
Incompetente."


Reinaldo Ferreira, Poemas, Lisboa: Vega, 1998, p. 58. 

Friday, November 14, 2025

A MEMÓRIA DE UM FASTO


 

"Minha alma é obelisco corroído
Ou apenas - quem sabe? - inacabado, 
A memória dum fasto já esquecido 
Ou dum outro talvez antecipado.

Só sei que lhe não sei qual o sentido;
E o erro foi, assim, ter procurado
O que tenha talvez desaparecido
Ou não fosse jamais concretizado.

Na encruzilhada, os viandantes raros,
Se os olhos para ela erguem, avaros, 
Não conservam, sequer, a sua imagem.

Mas erguida, sem nexo, longa e triste,
Ela sabe que é, sente que existe
Na dor com que ensombrece esta paisagem."



Reinaldo Ferreira, Poemas, Lisboa: Vega, 1998, p. 157. 

Wednesday, November 12, 2025

DAS BELAS ILUSÕES

 




"Abençoado o sonhar daquela idade
em que a vida deriva sobre flores, 
buscando o gozo, onde, mais tarde, as dores,
sem ser buscadas, vem!

Por que os sonhos tão rápidos se esvaem?
Das belas ilusões uma não vingas, 
que a gélida razão te não deslusa
com o rir do desdém!"



Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, p. 72.