"Como te hei-de fazer ver
as meias distâncias
que nos separam das coisas?
É o nosso conforto num outro sítio
que nos proporciona
o arrepio de estarmos aqui."
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Malva 62, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 95.
"Na nossa atual condição desvirtuada, diz Nat, o amor de Deus parecer-nos-ia «negação pura». Sem forma ou vazio. Estás a ver? Uma espécie de relâmpago negro que destrói tudo a que chamamos «vida». Deus é uma espécie de nada sublime. É um terrorista do amor, cujo perdão implacável está condenado a parecer uma afronta intolerável àqueles que não podem entregar-se. Os danados são os que experienciam o infinito «bom» de Deus como um infinito «mau». Do mesmo modo, podemos experienciar aquilo a que os historiadores da arte chamam o sublime (montanhas enormes, tempestades no mar, céus infinitos) como terrível ou magnífico, ou ambos."
Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, pp. 36-37.
"De facto, os seres humanos podem alcançar um certo nível de autodeterminação. Mas só o podem fazer no contexto de uma dependência mais profunda de outros semelhantes, uma dependência que é aquilo que faz deles humanos. É isto, como veremos, que o mal nega. A pura autonomia é um sonho do mal."Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 23.
"Música e canto; arte formosa moldada, lavrada, bordada, tecida por artistas de fama; e, no conjunto das formalidades, a graça dos movimentos harmoniosos.Tudo, nesse religioso ambiente de beleza, é lirismo festivo nas almas e nas coisas, desde os artesões da abóbada às fisionomias dos santos, em suas esculturas e seus painéis; no profuso ornato da talha dourada, no retábulo e nas capelas - barroco português onde, nas voltas e arquivoltas, nos frisos (estes, às vezes, séries de cabecitas de querubins alados); nas pilastras gregas, entre silvas de curvas decorativas, bailam, uns com outros, meninos gordinhos, nuzinhos; as grinaldas abraçam-se nos fustes salomónicos; criancinhas, de corpos rosados, afagam pombas que depenicam cachos de uvas; e minhotas flores cristãs, mutuamente, boamente se congratulam com as pagãs folhas de acanto dos capitéis coríntios."
"Durante os séculos XIX e XX a escola assumiu pouco a pouco todas as funções da educação - nomeadamente as que pertenciam antes de mais - à comunidade e, depois, à família. Hoje é na escola que se aprende a andar na rua e nas estradas, a respeitar o Estado e a Pátria, a obedecer a todas as suas minuciosas prescrições policiais e fiscais - e até mesmo a fazer amor."
Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 18.
"A cortesia, um dos conceitos então mais difundidos, não constituía uma virtude de pequena importância. A sua origem era ilustre: «A Cortesia desceu do Céu, quando Gabriel saudou a Nossa Senhora e Elisabeth veio ao seu encontro.» Ela abrangia simultaneamente regras de boas maneiras e uma moral comum: não mentir, não se endividar, falar «com honestidade», e também: servir bem o seu senhor à mesa, na intimidade, no trabalho, na corte, na guerra e na caça, saber guardar segredos."
Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 13.
"Para que o fundo bom de uma criança se manifeste por todos os lados (e ele reluz sobretudo no rosto), o seu olha deve ser doce, respeitador e honrado; os olhos duros são um indício de violência; olhos fixos, sinal de atrevimento; olhos errantes e vagos, sinal de loucura; eles nunca devem olhar de viés, o que é próprio de um sonso, de alguém que prepara uma maldade; também não devem ser desmesuradamente abertos, como os de um imbecil; baixar as pálpebras e piscar os olhos é um indício de frivolidade; mantê-los parados é indício de um espírito preguiçoso - e disso acusou-se Sócrates; olhos perscrutadores denotam irascibilidade; olhos demasiado vivos, ou muito eloquentes, um temperamento lascivo: convém sim que reflitam um espírito calmo e respeitosamente afectuoso. Não foi por acaso, com efeito, que os velhos sábios afirmaram: a alma depõe-se no olhar."
Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 71.
" - En la Antigüedad - prosiguió la implacable acusada -, el vicio era sagrado porque el ser humano era fuerte. En nuestro siglo es vergonzoso, porque nace de nuestro agotamiento. Si fuéramos fuertes, y si además tuviéramos quejas contra la virtud, estaría permitido ser vicioso, haciéndose creador, por ejemplo."
Rachilde, Monsieur Venus - Novela materialista, trad. Rodrigo Guijarro Lasheras, Oviedo, KRK Ediciones, 2017, pp. 163-164.
"O presente é inconsciente como a juventude: - só na idade reflectida se mede o prazer que passou. O prazer é vivaz e efémero; a recordação vem esmorecida, mas pousa e fica. A alegria vale, sobretudo, pelo fio de doçura que deixa a saudade nevoenta...Quando fruímos um prazer, com a ardência do sol em chamas, estamos a preparar o luar desse gozo: o deleite brando e demorado de o relembrar."
Antero de Figueiredo, Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 1.